Menino e menina vestem o que quiserem

por Letícia Parks

Foto: G1

A “nova era” que a ministra anuncia é a mesma velha e patriarcal era em que ninguém – friso, ninguém, não apenas as mulheres – pode ser sujeito das próprias decisões. Damares Alves, suspeita de tráfico de pessoas, amiga do sionismo e inimiga das mulheres, não vai limitar as cores do meu arco-íris.

A cena é intragável. Uma investigada por tráfico de pessoas exaltada comemora os velhos costumes como novos. Ao lado dela, um político agita a bandeira de Israel, Estado responsável pelo genocídio do povo palestino.

Ela diz, eufórica: “é uma nova era para o Brasil: menino veste azul e menina veste rosa”. Ela lidera um ministério criado por Bolsonaro, inexistente até então no país, o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Nesses dias, denunciamos aqui nesse mesmo diário que Bolsonaro excluiu a população LGBT das diretrizes dos Direitos Humanos, liberalizando a perseguição e violência que que hoje já é responsável por dados recordes para o Brasil no que diz respeito à violência de gênero, inclusive com o maior número de LGBTs e travestis mortas em todo o mundo.

As verdadeiras cores de uma nova era?

Não sei de que nova era a tal ministra fala. Nas fotos antigas, vejo meus tios avós escravizados pelas mesmas regras cromáticas que a ministra comemora como grandes novidades. A era que ela quer inaugurar está mais viva do que nunca. Para além da verdadeira limpeza de gênero que se promove em um país onde LGBTs são mortos na frequência em que se mata no Brasil, a realidade que ela quer representada nessas cores também está viva na realidade do trabalho precário, onde as mulheres recebem 1/3 a menos que os homens, e quando negras, 60% a menos.

Da mesma franquia de “ele brinca de carrinho e ela de boneca”, as mulheres representam um enorme exército de trabalhadoras domésticas, muitas delas vítimas de abusos sexuais e psicológicos, com jornadas intermináveis e direitos que agora o novo presidente quer eliminar.

Consigo ver duas coisas novas no horizonte, que pode ser do que a ministra realmente esteja falando:

De um lado, a “nova-velha” era de um país que foi dirigido por dois anos por juízes que não foram eleitos por ninguém e que vivem como milionários. Juízes que pariram essa aberração que é Bolsonaro, que só chegou a ser presidente fruto desse golpe institucional, dado em nome dos interesses do imperialismo norte-americano, doido pra resolver a sua crise recolonizando toda a América Latina. As cores dessa “nova era” da qual a cara ministra se orgulha não são nada mais que o aprofundamento do papel feminino, uma divisão tão fundamental para a superexploração que querem os capitalistas da bandeira yanquee. Desconfio que enquanto a boca dela fala azul e rosa, o coração bate forte azul e vermelho, cheio de estrelinhas brancas e pele laranja.

Do outro lado, cara ministra, o seu pavor, a verdadeira nova era, onde duas cores são incapazes de descrever. As caras femininas se recusam, como você quer, a ficar por detrás do fogão. Junto delas, caras masculinas que sabem que essa opressão não serve pra ninguém. Junto delas e deles, uma multidão que botou fogo no armário e que inventa novos pronomes, explica que talvez a sopa de letrinhas LGBT não seja suficiente. Aqui, cara ministra, há cores que seu cerébro arcaico é incapaz de interpretar, que seu coração yankee estremece até quase parar. Uma massa cada vez maior de bandeiras liláses, lenços verdes, bandeiras multicoloridas.

Uma parte dessas mulheres te mete mais medo ainda, e por isso você estremece sua voz quando diz que quer voltar a esse joguinho de cores miseravelmente imbecil. Aquela parte das mulheres que se recusa a se irmanar apenas do gênero, que sabe que apesar de mulher, você e tantas outras como você são as agentes ferozes do patriarcado. Aquela parte das mulheres que quer superar os limites das burocracias sindicais e retomar os sindicatos em suas mãos e de seus companheiros homens trabalhadores, que querem superar as estratégias reformistas estéreis, que frente a Bolsonaro e a você querem esperar até 2022 e se eleger sobre o desgaste.

A sua “ofensividade”, Damares, é a ofensividade daqueles que se sabem minoria, desses fracos que regulam o mundo em torno de regras estáticas e maniqueístas como “rosa e azul”, um punhado de regras frágeis para tentar reencontrar equilíbrio em mundo colapsado pela crise econômica, um mundo que se preenche de amarelo na França, de verde na Argentina, de rosa a Índia, das cores que paralisaram universidades pelo debate de gênero na Hungria. Deve ser difícil viver em mundo que ameaça constantemente o seu poder. Um mundo onde a burguesia criou seus próprios coveiros, a classe trabalhadora, hoje e cada vez mais com cara de mulher.

São essas mulheres, Damares, que vão começar a falar sobre cores. E nossos interesses são bem diferentes dos seus. Imagino que nossas cores serão mais lindas, mais fortes, mais ousadas e muito, muito mais duradouras e corajosas. Esse é meu mundo. Onde menino e menina vestem o que quiserem.

Fonte: publicado em Esquerda Diário

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