Artaud, teatro, crítica e denúncia contra o Estado arbitrário de direitos

Onde outros propõem obras eu não pretendo senão mostrar o meu espírito.

A vida é queimar perguntas.

Não concebo uma obra isolada da vida. Não amo a criação isolada. Também não concebo o espírito isolado de si mesmo. Cada uma de minhas obras, cada um dos planos de mim próprio, cada uma das florações glaciares da minha alma interior goteja sobre mim.

Reconheço-me tanto numa carta escrita para explicar o estreitamento íntimo do meu ser e a castração insensata da minha vida, como num ensaio exterior a mim próprio, que me surja como uma gestação indiferente do meu espírito.

Sofro por o espírito não estar na vida e por a vida não ser o espírito, sofro por causa do espírito-órgão, do espírito-tradução ou do espírito-intimidação das coisas para as fazer entrar no espírito.

Este livro, suspendo-o na vida, quero que seja mordido pelas coisas exteriores, e em primeiro lugar por todos os sobressaltos cortantes, todas as cintilações do meu eu por vir.

Todas estas páginas se arrastam como pedaços de gelo no espírito. Perdoe-se-me a minha liberdade absoluta. Recuso-me a estabelecer diferenças entre qualquer um dos momentos de mim mesmo. Não reconheço no espírito nenhum plano.

É preciso acabar com o espírito, tal como com a literatura. Afirmo que o espírito e a vida comunicam a todos os níveis. Gostaria de fazer um livro que perturbasse os homens, que fosse como uma porta aberta e os conduzisse onde nunca teriam consentido ir, uma porta simplesmente conectada com a realidade.

E isso é tão pouco um prefácio a um livro, quanto, por exemplo, os poemas que o balizam ou a enumeração de todas as raivas do mal-estar.

Isto não é senão um pedaço de gelo mal digerido.

(Artaud: O Umbigo dos Limbos, in: O Pesa-Nervos; 1991, pg.13-14)

1. DOR… TEATRO… SOLIDÃO…

Antonin Maria Joseph Artaud (um nome completo raramente mencionado e surpreendentemente sugestivo), nasceu em 4 de setembro de 1896 na cidade de Marselha. Primogênito de uma família de nove irmãos, dos quais apenas três chegaram a idade adulta, em 1901 é acometido de uma grave meningite, da qual não se salvará sem seqüelas. Apenas o início de uma vida de constantes sofrimentos físicos e psíquicos originados de distúrbios no sistema nervoso central. Esse sofrimento, que Artaud nunca desistiu de tentar descrever das mais variadas formas, é de fundamental importância para a compreensão de seu teatro e suas idéias. Constantemente afligido por dores e uma sensação de opressão na cabeça, ombros e pescoço, Artaud afirmava ter sérias dificuldades em ordenar seus pensamentos e dar-lhes uma forma exterior.

Foto: Léo Vieira

A horrível compressão da cabeça e do alto da coluna vertebral, o peito opresso, as visões de sangue e de morte, os torpores, as fraquezas sem nome, o horror geral em que me encontro mergulhado com um espírito no fundo intacto, tornam inútil esse espírito.

(Artaud citado por Virmaux: Artaud e o Teatro;1978, pg10)

Esse “espírito intacto” era o que lhe garantia a lucidez necessária para a criação e para a capacidade de expor seu mal sem, entretanto, conseguir alivia-lo. Com o passar dos anos, Artaud torna-se obcecado com a idéia de que sua agonia (que não deixou de ser um estímulo cruel à sua necessidade imperativa de expressão que acabaria por leva-lo à arte e ao teatro) tinha uma origem metafísica:

Eu não tenho vida!!! Minha efervescência interna está morta! (…) Asseguro-te que não há nada em mim, nada naquilo que constitui a minha pessoa, que não seja produzido pela existência de um mal anterior a mim mesmo, anterior à minha vontade, nada em nenhuma das minhas mais hediondas reações, que não venha unicamente da doença e não lhe seja, em qualquer dos casos, imputável.

(Artaud citado em: Artaud e o Teatro;1978, pg.11)

Essa deterioração corporal e psíquica tornava extremamente difícil seu convívio social e a criação de elos verdadeiros com seus semelhantes. Artaud usa o teatro e sua capacidade única de expressão física, intelectual e – como não cansa de reiterar – metafísica, como seu meio privilegiado de comunicação, de grito. Sua prática teatral é permanentemente voltada para a idéia de uma “cura cruel”, para si mesmo e para a raça humana. Seu “corpo sem órgãos”, seu corpo novo, reconstruído, imortal, finalmente senhor de seu próprio destino e de sua própria anatomia.

Os primeiros passos no teatro dão-se a partir de 1920, quando muda-se para Paris, depois de passar por constantes internamentos em sanatórios, particularmente para desintoxicações, necessárias para manter em níveis aceitáveis a dependência do ópio, adquirida por ocasião dos primeiros tratamentos.

Preciso encontrar uma certa quantidade cotidiana de ópio. (…) pois tenho o corpo ferido nos nervos das medulas e isto é irremediável, incurável, absolutamente irremissível, não existe operação cirurgical que possa restituir ao organismo os nervos que ele perdeu.

(Artaud citado em: O Artesão do Corpo Sem Órgãos; 1999, pg.79)

Apesar de seu estado de quase miséria, sobrevivendo muitas vezes graças à cortesia de amigos que lhe ofereciam abrigo e comida, Artaud mantém uma atividade intelectual e profissional frenética, atuando em diversos espetáculos, publicando artigos e poesias e obtendo uma posição de destaque no movimento surrealista (que, posteriormente, criticaria por seu posicionamento político, de forma lúcida, porém cortante). O período de 1920 até 1932 viu o nome da Artaud crescer como uma figura ímpar e polêmica do teatro e da poesia francesas. Trabalhou em todas as frentes da atividade teatral: ator, encenador, cenógrafo, iluminador, escritor, sonoplasta e produtor, participando de inúmeras companhias sem pertencer realmente a nenhuma, exceto – em termos – o conhecido experimento do “Teatro Alfred Jarry”, cujos frutos foram quatro espetáculos e oito representações, entre 1926 e 1930. Além disso, não lhe faltaram oportunidades para trabalhar no cinema, em filmes notórios e raros como “A Paixão de Joana d’Arc”, de Dreyer (1928) e “Napoleão”, de Gance (1925-1927), interpretando Marat. Sem contar o desenvolvimento de roteiros de sua própria autoria, como “A Concha e o Clérigo”, mas suas relações com cinema serão sempre tumultuadas e frustrantes.

Em meros doze anos, Artaud notabilizou-se como um artista enérgico ao defender suas idéias. Suas críticas ao teatro de cunho psicológico, centrado no texto, deixando a encenação em último plano, eram correntemente reiteradas em seus artigos e manifestos, publicados nos periódicos artísticos da época.

(…) apresso-me em dize-lo desde já, um teatro que submete ao texto a encenação e a realização, isto é, tudo o que é especificamente teatral, é um teatro de idiota, louco, invertido, gramático, merceeiro, antipoeta e positivista (…)

(Artaud: O Teatro e Seu Duplo; 1993, pg.35)

Foto: Léo Vieira

Evidentemente, idéias defendidas de forma tão apaixonada e agressiva raramente passavam despercebidas, mesmo quando rechaçadas por críticos tão veementes quanto antiquados. Apesar das polêmicas, Artaud era um artista respeitado, muito embora esse reconhecimento não tornasse as coisas mais fáceis para um homem eminentemente solitário, morando em quartos alugados e tendo pouquíssimos amigos e, muito menos, amores (seu relacionamento com a atriz Génica Athanasiou teria sido sua paixão mais intensa e, em muitos aspectos, a mais frustrante).

Evocando o comportamento quotidiano de Artaud durante a época de sua participação no grupo surrealista, André Masson enfatizou “seu lado dandy, seu lado não gregário que o fazia chegar após os outros, partir antes de todo mundo, sempre só” (…). É também o testemunho de Anaïs Nin: “Irritável. Gagueja em alguns momentos. Sempre sentado em algum canto isolado, ele se afunda em uma poltrona como em uma caverna, como se estivesse na defensiva”(…)

(Virmaux: Artaud e o Teatro; 1978, pg. 161)

Esses fatores contribuíram para que, até o fim de sua vida, as cartas fossem uma de suas formas favoritas de expressão e onde sutilezas de sua obra podem ganhar aspectos esclarecedores.

2. CRUELDADE… ORIENTE… PESTE… TEATRO… E SEUS DUPLOS…

Mas foi a partir de 1931 que a crescente carreira de Antonin Artaud começou a tomar o rumo que o tornaria uma figura única na História do Teatro. Durante a Exposição Colonial, em Paris, assiste a uma apresentação de um grupo teatral de Bali. Esse contato com o Teatro Oriental marcará profundamente seu pensamento, quase como uma revelação.

Antonin Artaud, In Manifest/ Munish Foto: Léo Vieira

Nas evoluções dos “atores/bailarinos”, nos gestos perfeitamente codificados e nas temáticas de caráter metafísico e arquetípico, Artaud encontra os elos que faltam na formulação de suas próprias idéias sobre o Teatro e seu papel na Arte. Para Artaud, um teatro eficaz é aquele capaz de refazer a vida, o que não seria possível sem refazer profundamente a cultura no Ocidente. Toda a sua obra é guiada pelo desejo incessante de reencontrar um ponto de utilização mágica das coisas, recusando uma consciência estética fundada em simulacros e aparências face à realidade empírica das coisas. Ele coloca a questão da linguagem e da manipulação de signos em termos de forças mágicas e da relação mantida, através deles, com o cosmos e com o divino. Para Artaud, o Ocidente europeu é doente pois perdeu sua ligação com o divino, com a consciência cósmica.

Entre 1932 e 1935 publica em diversas revistas os textos que seriam futuramente organizados na forma do livro “O Teatro e Seu Duplo”, editado em 1938. Neles Artaud desenvolve seu projeto maior de refazer o Teatro Ocidental, apontando de maneira contundente os seus vícios, camisas de força e denunciando o abandono dos espetáculos por um público ansioso por emoções verdadeiras que não mais consegue encontrar num teatro que não representa verdadeiramente sua época.

O teatro de Bali revelou-nos uma noção de teatro física, não verbal, na qual o teatro está contido nos limites de tudo o que pode acontecer num palco, independentemente do texto escrito, enquanto que, tal como nós o concebemos no Ocidente, o teatro se aliou ao texto e por ele se encontra limitado. Para o teatro ocidental a Palavra é tudo e não há, sem ela, possibilidade de expressão; o teatro é um dos ramos da literatura, uma espécie sonora da linguagem e mesmo que admitamos uma diferença entre o texto falado no palco e o texto lido pelos olhos, se restringirmos o teatro ao que acontece entre as deixas, não conseguimos, mesmo assim aparta-lo da noção de um texto representado.

(Artaud: O Teatro e Seu Duplo; 1999, pg. 75)

Diante dessa “ditadura do texto”, Artaud responde com uma proposta ampla de reestruturação da linguagem teatral, devolvendo ao teatro os elementos que considera “naturais” (no sentido de “primordiais”) na encenação e que foram, pouco a pouco, abandonados por um ocidente por demais atado às limitações do racionalismo.

Para mim, a questão que se impõe é de se permitir ao teatro reencontrar sua verdadeira linguagem, linguagem espacial, linguagem de gestos, de atitudes, de expressões e de mímicas, linguagem de gritos e onomatopéias, linguagem sonora, mas que terá a mesma importância intelectual e significação sensível que a linguagem das palavras. As palavras serão apenas empregadas em momentos determinados e discursivos da vida como uma luz mais preciosa e objetiva aparecendo na extremidade de uma idéia”

(Artaud:Linguagem e Vida; 2004, pg. 80)

Refazer a linguagem teatral para trazer o teatro de volta as suas origens ritualísticas. Nada de espetáculos de entretenimento, nada de psicologismos e narrativas sobre indivíduos. Artaud concebe um teatro para além do imediatismo político, social, psicológico ou moral, um teatro que expresse questões metafísicas (termo constantemente empregado em “O Teatro e Seu Duplo”).

Enquanto a alquimia, através de seus símbolos, é como um duplo espiritual de uma operação que só tem eficácia no plano da matéria real, também o teatro deve ser considerado como o duplo não dessa realidade cotidiana e direta da qual ele aos poucos se reduziu a ser apenas uma cópia inerte, tão inútil quanto edulcorada, mas de uma outra realidade perigosa e típica, onde os Princípios, como os golfinhos, assim que mostram a cabeça apressam-se a voltar à escuridão das águas.

(Artaud: O Teatro e Seu Duplo; 1999, pg 49)

No “Manifesto do Teatro da Crueldade”, Artaud propõe a sua visão à comunidade teatral. De forma compacta e desconcertantemente direta, oferece os enunciados básicos de uma prática teatral que sempre se apressou a considerar “mais fácil de fazer do que de dizer”. Um teatro que utilizaria de uma linguagem de imagens e signos para oferecer uma “cura cruel” ao público, numa experiência mágica coletiva, na qual cada elemento da encenação – voz, corpo, iluminação, som, figurino, cor – seria meticulosamente planejado para levar o espectador a um estado de transe, uma transformação. Artaud concebe um espetáculo circular, através de um palco giratório, onde os espectadores ficam no centro e toda ação se dá ao redor, não havendo espaços vazios, integrando o espectador à própria encenação. Temas de caráter universal, uso de textos clássicos (como tragédias) como uma simples base para uma total re-criação em cena, personagens ampliadas à dimensão de deuses, de heróis, monstros, presença no palco de manequins gigantes, máscaras e objetos desproporcionais representando os duplos de ações, eventos e personagens acentuando o caráter metafísico da encenação, um jogo cuidadosamente planejado aonde nada pode ser deixado ao acaso, sob pena de sacrificar os efeitos mágicos específicos que o espetáculo deve provocar. Artaud, portanto, defende veementemente o domínio do encenador para orquestrar cada pequeno aspecto de uma montagem, numa época em que aquilo que se refere como parte da encenação, em contrapartida ao texto, costumava ser alvo de desprezo pela comunidade teatral. Para além dos temas e objetivos, o teatro de Artaud é um teatro que começa e se realiza no palco, com uma linguagem que se dá exclusivamente no palco, sendo o encenador (e não o autor de um texto pré-escrito) o responsável pela “escrita” dessa linguagem.

Ator: Munish
Foto: Léo Vieira

Nesse contexto, o ator é um elemento essencial mas passivo, já que sua iniciativa pessoal deve estar submetida às exigências da encenação.

O ator é, ao mesmo tempo um elemento de primeira importância, pois é da eficácia de sua interpretação que depende o sucesso do espetáculo, e uma espécie de elemento passivo e neutro, pois toda iniciativa pessoal lhe é rigorosamente recusada. Este é, aliás, um domínio em que não há regras precisas; e, entre o ator a quem se pede uma simples qualidade de soluço e aquele que deve pronunciar um discurso com suas qualidades de persuasão pessoais, há toda a distância que separa um homem de um instrumento.

(Artaud: O Teatro e Seu Duplo; 1995, pg. 95)

Nos capítulos “Um atletismo afetivo” e “O Teatro de Seraphin”, Artaud procura esboçar as técnicas e qualidades que o ator do Teatro da Crueldade deve buscar. No ator existe uma musculatura de atleta físico e uma outra musculatura que corresponde a localizações físicas dos sentimentos. Essa musculatura afetiva funciona como um duplo da outra, embora não atue no mesmo plano, e deve ser exercitada através da respiração. Para cada alteração dos sentimentos, existe uma respiração apropriada.

O ator, ao mostrar um sentimento, um estado de espírito, fisicamente pode parecer estar delirando, mas na verdade está consciente de tudo o que está fazendo, mantendo o controle através da respiração. O uso da memória emotiva ocorre apenas num primeiro momento, guardando as imagem das reações físicas e da respiração provocadas no corpo para usa-las num segundo, num terceiro, e em vários momentos, constituindo um repertório para o ator. Os sentimentos não devem ser interpretados como abstrações, mas como elementos “materiais”, palpáveis, sob as quais ele pode ter um domínio. “Através da respiração o ator pode representar um sentimento que ele não tem”, ou seja, ele pode chegar num sentimento através da respiração, e a respiração pode nascer de um sentimento.

Saber que a paixão é matéria, que ela está sujeita às flutuações plásticas da matéria (…) Alcançar as paixões através de suas forças ao invés de considerá-las como puras abstrações, confere ao ator um domínio que o iguala a um verdadeiro curandeiro. Saber que existe uma saída corporal para a alma permite alcançar essa alma num sentido inverso e reencontrar o seu ser através de uma espécie de analogia matemática.

(Artaud: O Teatro e Seu Duplo; 1995, pg. 131)

Saber reconhecer o tempo do sentimento é saber reconhecer o tempo da respiração, e essa respiração pode ser dividida em três tempos, que Artaud denominou NEUTRO, MASCULINO e FEMININO.

A respiração FEMININA é uma respiração mais prolongada, interiorizada, baseada no diafragma, que se localiza na região do plexo solar, tendo várias características que essa região contém, como abandono, angústia, apelo, invocação, súplica. A respiração MASCULINA ou melhor, de tempo masculino, é uma respiração mais pesada, rápida, torácica, focada na localização dos rins, que é fisicamente, onde o homem joga a força multiplicada de seus braços. As características que correspondem aos rins, no físico afetivo são: culpa, depressão, humor, impaciência, indecisão, isolamento, obsessão, paranóia, solidão, vitimização e heroísmo.

Esse treinamento baseado na respiração, que Artaud formulou tanto a partir de suas experimentações pessoais quanto de seus estudos da cabala, alquimia e disciplinas orientais, foi constantemente praticado por Artaud até o fim de sua vida e através dele o ator seria capaz de reconstruir não apenas sua arte mas sua própria constituição física e espiritual, tornando possível as visões de Artaud para seu Teatro.

Como Craig, Artaud baseia a sua teoria do ator no princípio da despersonalização. Não só o personagem, no sentido tradicional da palavra, é expulso desse teatro, mas também a personalidade do ator é ocultada pelo tipo de intervenção (não se ousa mais falar em desempenho) que ele exige. Em última instância, o ator artaudiano não é mais um indivíduo de carne e emoções, mas suporte e veículo de um complexo sistema semiótico articulado em torno de uma convenção hieroglífica – a expressão é freqüentemente repetida nos escritos de Artaud – do figurino, do gesto, da voz, etc.

(Roubine: A Linguagem da Encenação Teatral;1998, pg189)

Paralelamente à escrita e organização desses textos, Artaud dedica-se de maneira apaixonada a pôr em prática seu projeto, mas esbarra constantemente nas crescentes dificuldades. Primeiramente as de cunho filológico, os mal-entendidos e acusações a respeito do uso do termo “crueldade”, que Artaud responde de maneira clara na primeira das “Cartas sobre a Crueldade” em “O Teatro e Seu Duplo”. Mas o pior e mais incisivo são as dificuldades técnicas e financeiras de uma proposta teatral de tamanha complexidade. Desde as montagens do Teatro Alfred Jarry até as tentativas frustradas de tirar do papel sua encenação de “A Conquista do México”, mencionada no “Segundo Manifesto do Teatro da Crueldade”, suas tentativas de convencer o público (e, particularmente, os investidores) eram constantemente mal-entendidas embora representassem experimentos “performáticos” notáveis numa visão retroativa, particularmente a conferência que resultaria no texto de “O Teatro e a Peste” que foi relatada por Anaïs Nin, em seus diários:

De forma quase imperceptível Artaud largava o fio que seguíamos e começava a interpretar o papel de um homem a morrer de peste. Ninguém viu em que momento começou a faze-lo. Para ilustrar a conferência, representava uma agonia. (…) Tinha o rosto em convulsões e os cabelos ensopados de suor. (…) Estava em plena tortura. Berrava. Delirava. Representava a sua própria morte, a sua própria crucificação. As pessoas começaram a ficar com a respiração cortada. Depois desataram a rir. Toda a gente ria! Assobiava. Por fim as pessoas foram saindo uma a uma em meio a um grande ruído, a falar alto, a protestar. Ao saírem batiam com a porta. (…) Mais protestos. E vaias também. Mas Artaud continuava até o último suspiro. E lá ficou, no chão.

(Nin citada por Virmaux em sua introdução para: História Vivida de Artaud-Momo; 1995, pg.17)

Tudo isso para fazer a platéia compreender – fisicamente, portanto efetivamente – o que linhas como essas pretendem expressar:

Tal como a peste, o teatro é uma crise, que tem o desenlace na morte ou na cura. E a peste é um mal superior porque é crise completa e depois da qual não resta mais nada do que a morte ou uma extrema purificação. De igual forma, o teatro é um mal porque equilíbrio supremo só alcançável com destruição. Convida o espírito a um delírio que lhe exalta as energias; e, para terminar, podemos ver que a ação do teatro, como a da peste, sob o ponto de vista humano é benéfica porque levando os homens a verem-se como são faz cair a máscara, põe a mentira à mostra, e a baixeza, a hipocrisia; sacode a inércia asfixiante da matéria que tudo ganha até às mais claras certezas dos sentidos; e revelando às coletividades o seu poder sombrio, a sua força oculta, convida-as a assumir perante o destino uma atitude heróica e superior que, sem isso, nunca teriam tido.

(Artaud: O Teatro e Seu Duplo; 1999, pg 28-29)

O ápice dessas tentativas de materialização do “Teatro da Crueldade” foi a montagem de “Os Cenci” (1935), projeto ambicioso de uma tragédia na qual os preceitos da visão artaudiana de um teatro que constituísse uma “cura cruel” revelou-se uma grande decepção, para o público, para os envolvidos e, acima de tudo, para o próprio Artaud, que viu-se incapaz de enfrentar os inúmeros percalços financeiros, materiais e humanos que se interpuseram à realização de seus ideais numa montagem real.

Antonin Artaud, In Manifest

“Antonin Artaud, In Manifest” retrata o pensamento de Antonim Artaud sobre sua época, a sociedade e a arte feita na França do inicio do século XX.  A peça  teatral faz uma releitura do momento em que vivemos na nossa sociedade atual, através dos manuscritos de A. Artaud  no seu livro “ O Teatro e seu Duplo”, que se faz atual e necessário de reflexão. Questiona a arte, o teatro que se submete  e a burguesia que pauta o sistema em que todos estamos inseridos,  vivendo de forma inconsciente e manipulada por pensamentos que idiotiza toda uma sociedade. A direção é assinada por Iolene Di Stefano, dramaturgista e ator Munish.

A peça é produzida pelo Leela Grupo Teatral, e estréia em cartaz neste final de semana (30, 1º e 2º de dezembro) na Funnarte (Rua Januária, 68, Centro, Belo Horizonte – MG). O valor do ingresso é de R$ 20,00 e meia entrada de R$ 10,00 (professores, alunos entre demais categorias).

 

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