Um breve comentário sobre “O Poço”: a panna cotta e os trabalhadores

por  Gabriella Farabras

Foto: UOL

Essa não se pretende a ser uma análise profunda sobre o filme O Poço como fez Gabriel “Biro” muito bem; mais inspirado por Andre Acier me dediquei também um tempo para escrever um breve comentário sobre o novo filme da netflix que virou trending topic no Twitter e assunto nas estações do metrô, já avisando que essa é uma conversa com quem assistiu o filme, por isso os spoilers serão muitos.

Em muitas pessoas o filme gerou um incômodo de ver que o filme partia de uma “natureza humana” egoista, cruel e selvagem; mas como um filme aberto, que não amarra todas as pontas, essa seria a única interpretação possível?

De alguns pontos temos que partir: 1. o poço e seus níveis não são iguais as classes sociais, pois não se muda de classe social de maneira irracional e/ou ocasional, e não é verdade que não importa onde vc esteja sempre existirão os de cima e os de baixo. 2. o egoísmo, a crueldade e a violência não são intrínsecos do ser humano, a humanidade não se reduz a isso e acreditar nisso é negar qualquer possibilidade de um futuro melhor; para os revolucionários é negar a possibilidade do socialismo.

E talvez seja nesses dois pontos que o filme erra pois é muito fácil tirar essas conclusões porque o filme as sugerem muito. No fim a maioria saiu do filme com mais ódio dos presos do poço do que da chamada administração, a que seria responsável pela existência de tal mecanismo.

Levar a panna cotta aos trabalhadores

Agora vou me focar em elementos que me interessaram muito: o primeiro é o tal senhor muito sábio, que diz a Goreng e Baharat que eles devem levar a mensagem aos trabalhadores da cozinha e que a panna cotta seria essa mensagem.

A panna cotta – se chegou, como aponta algumas análises que acreditam que a menina não existia e o que subiu foi a sobremesa – não leva a mensagem necessária e os trabalhadores da cozinha são punidos pelo chefe que, conscientemente, diz que a panna cotta apenas não foi comida por conter um fio de cabelo – como demonstra uma das cenas fora da linearidade temporal do poço.

Mesmo que a mensagem não tenha chego aos trabalhadores é muito valioso esse ímpeto do senhor muito sábio de saber que se alguém conseguiria mudar e por um fim ao poço, esse alguém seriam os trabalhadores.

A premissa e razão do poço existir era forçar uma solidariedade humana, como revela a funcionária da administração, Imoguiri, que por livre e espontânea vontade, no fim de sua vida, entra no poço. Assim a panna cotta seria uma mensagem de que essa solidariedade, mesmo que mínima entre duas pessoas, ocorreu; então, se os trabalhadores entendessem que a panna cotta significava que os presos no poço tomaram consciência eles poderiam se rebelar contra a administração e reivindicar o fim do poço, pois como trabalhadores são eles que detém o poder sobre a produção dos alimentos, que é o que mantém a lógica do poço.

Imoguiri, a funcionária da administração

Este é mais um elemento que me chamou a atenção. Imoguiri trabalhava para a administração e acreditava na razão do poço existir e tentava ao máximo forçar que acontecesse a tal “solidariedade humana”. Ela acreditava que o banquete possuía uma ração exata para cada preso do poço, pois o poço tinha 200 andares e 2 presos por andar.

Quando Imoguiri acorda no andar 202 comete suicidio e se enforca, pois descobre que ela trabalhou para uma administração mentirosa, acreditou na mentira de que havia 400 presos, e sendo assim haveria comida suficiente para todos; se há mais de 200 andares, mais de 400 presos, então ela teria chego a conclusão de que não era possível forçar a tal “solidariedade”, sempre haveria pessoas que passariam fome. Resumindo: o poço em nada era justo, por isso ele não serviria para forjar uma solidariedade.

Se acreditamos no poço como uma metáfora do sistema em que vivemos, é fato que existem funcionárias da administração que creem ser possível uma especie de capitalismo mais humano, que basta que os homens sejam mais solidários entre si para que haja comida para todos, alguns por ingenuidade, outros não. O que falta para aqueles que acreditam por ingenuidade tomar consciência de que o problema é muito mais profundo e não existe a possibilidade do sistema existente ser justo? É trabalho dos revolucionários refletir acerca disso.

No poço os presos são aquilo a que são forçados a ser

Se o poço não é justo, a administração não espera que os presos sejam justos ou solidários entre si. O poço existe para perpetuar um sistema de opressão, ele é um fetiche da administração e não serve a nenhum propósito

Não é responsabilidade dos presos serem cruéis para buscarem pra si uma sobrevivência; o poço fez deles egoistas e canibais, nada disso é da natureza humana ou Intrinseco a eles, mas fruto de uma condição material a que eles estão presos. A panna cotta serviria para contar essa história aos trabalhadores da cozinha. Cabe a outros Gorengs a tarefa de tentar e tentar e tentar levar essa mensagem a eles, que são os sujeitos capazes de destruir o poço, sem nenhuma confiança em seus chefes e/ou na administração.

Fonte: publicado originalmente em Esquerda Diario

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