A pauta identitária e a divisão da esquerda

 por Vitor Fernandes

Foto: Brasil 247

Recentemente, em uma aula, após passar o documentário “The mask you live in” que discute os papeis de gênero, mais precisamente como a cultura do machismo afeta os homens também, um aluno reclama: “professor eu queria assistir um documentário de direita também”. O aluno, que se identifica como direitista, pressupunha que o documentário era “esquerdista”.

Em outra aula, essa de política, quando perguntei o posicionamento político dos alunos, o que majoritariamente foi apresentado como identificação política eram os posicionamentos frente às questões da “pauta polêmica” ou da “pauta identitária”: casamento lgbt, feminismo, legalização da maconha, “bandido bom é bandido morto”, cotas para negros em universidades, etc.

Esses exemplos, associados a vários outros, deixam claro, a meu ver, que a pauta identitária (a pauta polêmica de modo geral) têm se sobreposto de longe às pautas típicas da esquerda, ou seja, a pauta classista, focado nas questões econômicas, de promoção de uma revolução socialista (cada vez mais fraca) ou de políticas de redução das desigualdades sociais.

É só ir a uma manifestação política da esquerda que veremos a enorme força da pauta identitária e como os “novos” movimentos sociais (movimento feminista, negro, lgbt, etc.) têm muito mais força que os movimentos classistas. Isso é visível nas camisas dos manifestantes, na quantidade destes e principalmente nos seus discursos.

Têm se tornado cada vez mais comum os discursos começarem apresentado a “identidade” do falante. Ex.: “eu, mulher, negra, periférica, lésbica…”, “Eu, homem, lgbt…” ou “Eu, mulher, negra, favelada, socialista”, etc. Achei especialmente interessante essa última apresentação quando ouvi, pois o “socialista” foi apresentado por último e me fez pensar: por quê? Agora é claro para mim que não é por acaso a “identidade” classista ter ficado por último. É que ela é menos importante de fato em parte significativa dos “novos” movimentos sociais.

Lembro de o Mauro Iasi, grande intelectual marxista brasileiro, ex-candidato a presidente pelo PCB, ser acusado de racista por integrantes do movimento negro em uma palestra e que esses mesmos integrantes desse movimento disseram que “preferiam mais Obamas que Che Guevaras na América”. Isso deixa claro o quanto a pauta “racial” ou “racialista” é mais importante que a pauta classista para esse movimento.

Em outra situação um coletivo Ana Montenegro, um coletivo feminista-marxista, tentou levar para a marcha das vadias (um importante ato do movimento feminista) no Rio de janeiro, uma faixa, com claro teor marxista dizendo: “gênero nos une, classe nos divide” (ou algo do tipo) e foi impedida pela liderança do movimento.

Em outra situação, um chargista (que foi meu aluno rs) Vini Oliveira fez uma charge em que criticava a cantora Beyoncé por explorar o trabalho de costureiras asiáticas que ganhavam um salário miserável para a sua grife famosa. Sua página foi atacada por membros do movimento negro e do movimento negro-feminista, que fizeram diversas denúncias ao facebook, e fizeram sua página sair do ar. O chargista foi acusado de racista, machista, etc.

Eu, quando escrevi o texto que viralizou no fim de 2016, “professor, o senhor é gay?”, em que relatava uma aula sobre gênero e sexualidade, fui acusado por várias pessoas de estar querendo tomar à frente na fala, pois sou um homem branco, hétero que estava falando sobre gênero e sexualidade e esse não era o meu “local de fala”.

O fortalecimento dos discursos identitários pode ser visto nos discursos e posts sobre a morte da vereadora Mariele Franco (PSOL/RJ), o que predominou foi o discurso que ela foi morta por ser mulher, negra e lésbica, o que considero no mínimo um enorme exagero e um erro de análise e apaga o seu importante trabalho como vereadora que investigava a ocupação militar e denunciava a violência policial em áreas pobres.

Outro exemplo é o mapa de votos do deputado federal Jean Wylys, que é fortemente concentrado em áreas ricas da cidade do Rio de Janeiro, especialmente a zona sul. Embora o Jean seja do PSOL, um partido de esquerda, o seu eleitor, é o do movimento LGBT, contendo muitos com posicionamentos políticos à direita, que pressionam cada vez mais o Jean pela troca de partido.

Esses exemplos que dei acima mostram o quanto a pauta identitária têm suplantado as pautas classistas na esquerda e a própria esquerda têm usado essa estratégia de focar parte significativa de seu discurso e de sua ação nessa pauta, que está em voga.

A meu ver, isso mostra o quanto o capitalismo é triunfante em nosso momento histórico e até parte significativa da esquerda têm se esquecido cada vez mais da pauta classista e focado na pauta identitária e é um dos muitos fatores que explica o voto da esquerda se concentrar nas camadas médias e raramente penetrar a classe baixa. Mas esse ponto, eu desenvolverei em outro artigo, junto com a questão ideológica (no sentido marxista) dos novos movimentos sociais.

O foco na pauta identitária acaba funcionando como um véu que esconde, de certo modo, as contradições de classe na sociedade e afasta parte do “cidadão médio”, geralmente conservador, da esquerda e o entrega de mãos beijadas para a direita conservadora ou até fascista como Bolsonaro e cia.

Não estou aqui criticando esses “novos” movimentos sociais de modo geral, mas o que para mim são os seus “excessos”. Esses movimentos são extremamente importantes e explicitam outras opressões que historicamente a esquerda também negligenciou, e isso precisa ser corrigido.

No entanto, o clima de acusação, de “caça” ao branco, machista, hétero, de classe média, onde parte da esquerda parece estar o tempo todo chamando uns aos outros de “esquerdomacho”, “transfóbico”, “heteronormativo”, fazer “coisa de branco”, etc. não ajuda em nada… mesmo que eu reconheça a legitimidade dessas pautas.

Enquanto isso, a direita está passando o rodo em todos nós, o golpe vai muito bem, obrigado, Bolsonaro está com quase 20% de intenções de voto, nossos direitos trabalhistas e previdenciários históricos estão indo pro ralo, estamos regredindo vinte anos em 2, etc..

Mas setores da esquerda ou da “esquerda” querem colocar no centro do debate se Anita cometeu ou não “apropriação cultural” com o seu último corte de cabelo…

Precisamos retomar a questão de classe, pois a direita está passando o “rodo” em nós e na esquerda fica um chamando o outro de “esquerdomacho”, “transfóbico”,

Ah, claro que serei acusado de ter escrito esse texto por ser homem, hetero, machista, homofóbico, branco, etc. por ter escrito esse artigo. Afinal, o que importa é a identidade, no é?

Fonte: publicado em Jornal do Centro do Mundo

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