Para sociólogo português, no Brasil e outros países há várias esquerdas e todas elas têm pecado pelo sectarismo e pelo isolacionismo
O resultado das eleições desta semana mostrou a necessidade de novas estratégias para que as esquerdas sobrevivam e consigam ampliar seu público. Para isso, o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, professor da Universidade de Coimbra, Portugal, defende que a esquerda precisa parar de falar para os convertidos e começar a estudar elementos importantes a uma grande parcela da população brasileira.
“A esquerda tem de abandonar a obsessão das reuniões secretas e de linguagem altamente codificada que só converte os convertidos. Têm de estudar as estratégias das igrejas neopentecostais para aprender o que se deve e o que não se deve fazer”.
Para ele, o erro do PT nos últimos meses foi “foi ter subestimado a eficácia da demonização do petismo” e ter mirado apenas para o potencial de voto a Lula, sem refletir sobre novas oportunidades.
O sociólogo, autor do livro A difícil democracia e Esquerdas do mundo, uni-vos! (editora Boitempo), destaca ainda que os movimentos sociais podem ser uma das saídas para os problemas das esquerdas no Brasil. “Os movimentos sociais são a chave para a reinvenção das esquerdas e são o seu grande teste para a capacidade de elas prevalecerem num contexto hostil. Os movimentos sociais são os territórios físicos, sociais e culturais onde as esquerdas se podem curar tanto do sectarismo como do entreguismo”. Leia a entrevista concedida por e-mail a CartaCapital.
CartaCapital: O que significa a vitória de Bolsonaro?
Boaventura de Sousa Santos: Significa a prova cabal de que sistema político brasileiro precisa ser profundamente reformado. Tal como está: transforma o compadrio, a corrupção, as alianças perigosas, a incoerência política e a confusão ideológica em condições incontornáveis de governabilidade; promove o isolamento das elites partidárias em relação às privações e aspirações das grandes maiorias sobretudo das mais pobres ou mais vulneráveis à discriminação e à violência; não permite que os três órgãos de soberania (Executivo, Legislativo e Judiciário) exerçam os seus poderes com contenção, ou seja, sem violarem gravemente as competências de uns de outros.
CC: Essa escolha diz o que sobre a sociedade brasileira? E sobre os partidos políticos que se apresentam hoje?
BSS: Diz que a sociedade brasileira é uma sociedade que apresenta uma combinação tóxica de três tradições de desigualdade e discriminação: capitalismo, colonialismo e hetero-patriarcado. A história continua a pesar demasiado para o Brasil poder deixar de ser o eterno país do futuro. E depois destas eleições o futuro ficou ainda um pouco mais distante do presente. Mas as últimas semanas também mostraram que os democratas brasileiros têm mais apego à democracia do que o registado pelo Latinobarómetro. O medo não matou a esperança.
CC: Como o campo progressista brasileiro pode se organizar para que um novo paradigma de senso comum crítico e racional permeie o processo decisório popular brasileiro?
BSS: O Brasil é hoje um laboratório de significado mundial. Está a mostrar que a democracia liberal representativa não se sabe defender dos antidemocratas. Para se defender tem de se articular com a democracia participativa. Para isso o campo progressista tem de voltar aos territórios onde gente digna sobrevive em condições indignas. Tem de abandonar a obsessão das reuniões secretas e de linguagem altamente codificada que só converte os convertidos. Têm de estudar as estratégias das igrejas neopentecostais para aprender o que se deve e o que não se deve fazer. E tem sobretudo de recuperar a memória dos círculos de cultura e das comunidades eclesiais de base.
CC: A atmosfera social brasileira durante o processo eleitoral deflagrou episódios de violência motivados e potencializados pelo discurso de intolerância. Segundo o filósofo Karl Popper, a tolerância ilimitada leva, paradoxalmente, ao desaparecimento da tolerância. Como a sociedade brasileira pode estabelecer limites às ondas de intolerância?
BSS: A tolerância é um termo pernicioso apesar de popular.A gente só tolera o intolerável, aquilo com que nada partilhamos nem com que nos podemos enriquecer. O problema é outro, é o da cultura de convivência democrática com a diferença política, social, cultural e comportamental. O problema é o reconhecimento do direito mais fundamental: o direito a ser iguais quando a diferença nos inferioriza e o direito a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza.
CC: Tentando fazer uma distinção entre os erros das partes, na opinião do senhor, quais foram os principais equívocos do PT e quais foram os de Fernando Haddad nessa eleição?
BSS: O maior erro do PT foi ter subestimado a eficácia da demonização do petismo. Eu compreendo o erro. Um partido que sempre governou com a direita dificilmente poderia imaginar que pudesse ser identificado com o “perigo comunista”. O PT apenas valorizou que Lula da Silva era o candidato mais popular nas sondagens. Negligenciou que logo abaixo dele estava Bolsonaro, a versão mais primária e visceral do ódio ao PT tão laboriosamente construído pela Globo.
CC: Acredita que o nome de Haddad saiu mais forte do pleito? Na sua opinião, ele tem chances de ser o novo nome no campo de esquerda e/ou progressista?
BSS: Saiu bastante mais forte sobretudo porque teve de tolerar uma partida tardia e afirmar uma identidade própria sem o apoio entusiasta de alguns setores do PT. Será certamente um novo nome se não for apenas um nome novo para um passado que, mal ou bem, foi rejeitado. Para isso, terá de entender que o tempo do hegemonismo partidário terminou. Só será um nome novo se souber articular-se de forma leal e horizontal com outros nomes novos, nomeadamente com a Manuela D’Ávila, o Guilherme Boulos e a Sonia Guajajara.
CC: Quais aspectos Haddad deveria melhorar em si mesmo para se tornar uma liderança política para a população nos próximos anos?
BSS: Tem apenas que continuar a ser o que sempre foi: um político honesto que usa a sua inclinação moderadora e moderada para unir as forças de esquerda e não para se unir às forças de direita que apenas o aceitarão enquanto o puderem usar, como aconteceu no passado recente.
CC: O que deverá acontecer com a esquerda brasileira nos próximos anos? Ou no que precisam estar preocupados para sobreviver?
BSS: No Brasil como noutros países há várias esquerdas e todas elas têm pecado pelo sectarismo e pelo isolacionismo. No atual contexto tal tipo de conduta é o caminho para o suicídio. As esquerdas têm de voltar a ir para as periferias e para as retaguardas (não para as vanguardas onde a auto-congratulação é fácil e viciante) e têm de unir-se sem perder as suas respetivas identidades. Apenas muito cientes que o que as une é mais do que as separa. O que as une é elas serem no seu conjunto os garantes da continuidade da democracia. Isto é novo e difícil de fazer crer às próprias esquerdas mas é, em meu entender, o que decorre da natureza do ciclo reacionário em que globalmente nos encontramos. De maneira chocante, a direita brasileira vem-nos a dar desde 2015 (para me referir apenas ao período mais recente) um espetáculo triste e aterrador: só é democrática quando se pode servir da democracia para perpetuar os seus privilégios.
CC: Os movimentos sociais que ressurgiram nessa eleição deverão perdurar ou ocorrerá certa resignação a partir de agora? Acredita que se manterão sem uma ligação fisiológica com os partidos políticos?
BSS: Os movimentos sociais são a chave para a reinvenção das esquerdas e são o seu grande teste para a capacidade de elas prevalecerem num contexto hostil. Os movimentos sociais são os territórios físicos, sociais e culturais onde as esquerdas se podem curar tanto do sectarismo como do entreguismo. Os movimentos sociais não têm um DNA de esquerda. Há movimentos sociais de extrema-direita.
Fonte: Carta Capital