“O nazismo não é exclusivo aos judeus. Holocausto foi tragédia humana”

Para marcar o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, CartaCapital entrevistou integrante do coletivo Judeus pela Democracia

Foto: Reprodução da internet

Dez dias após um membro do governo de Jair Bolsonaro performar o discurso do nazista alemão Joseph Goebbels, o mundo soleniza o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, em 27 de janeiro. A data foi oficializada pela Organização das Nações Unidas (ONU). Neste mesmo dia, em 1945, as tropas soviéticas libertavam o campo de concentração e de extermínio de Auschwitz-Birkenau, o maior centro de assassinatos em escala industrial.

Segundo a Unesco, dos cerca de 1,1 milhão de indivíduos que foram assassinados no local, quase 1 milhão eram judeus, principal grupo social perseguido pelos nazistas. Dados do Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos estimam 6 milhões de judeus mortos na Segunda Guerra. Milhões de civis soviéticos, poloneses, sérvios, ciganos, testemunhas de Jeová, ativistas e homossexuais também são apontados pelo Museu como vítimas de assassinato no período.

Setenta e cinco anos depois, uma variedade de museus, entidades internacionais, veículos jornalísticos e até livros didáticos ainda relembram os horrores do Holocausto. Porém, o desconhecimento, o negacionismo e até o entusiasmo sobre o nazismo parecem tomar suspiros de fôlego cada vez maiores. O presidente da República diz que o nazismo é de esquerda, setores da sociedade defendem que o Holocausto não existiu e, recentemente, uma autoridade do Palácio do Planalto encena um texto do ministro da Propaganda de Adolf Hitler em pleno vídeo institucional da Secretaria Especial da Cultura.

“Assustador, mas não surpreendente”, avalia a arquiteta judia Maria Fiszon, de 33 anos. Mestra em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal Fluminense (UFF), ela é integrante do coletivo Judeus pela Democracia, no Rio de Janeiro, grupo que anunciou um ato para a sexta-feira 31, como forma de protesto às declarações de Roberto Alvim, o autor do vídeo. Em entrevista a CartaCapital, Maria conta que o coletivo prepara uma exposição no bairro da Cinelândia, em conjunto com outros grupos ativistas, para relembrar as consequências nefastas do genocídio.

Segundo ela, o evento tem o objetivo de revisitar a discriminação contra as minorias por meio da identificação por triângulos, símbolos que os nazistas atribuíam a judeus, ciganos, LGBTs e demais grupos sociais. A mostra terá a participação da militante transexual Alessandra Ramos, da judia Ana Miranda, da representante da ONG Para Todos Ana Cecilia Melo, do militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) Heitor César, do comunicador Anapuaka, coordenador da rádio indígena Yandé, e do cigano Jucelio.

Para Maria, mesmo que os judeus tenham sido sistematicamente exterminados na Segunda Guerra, o nazismo não pode ser encarado como uma perseguição exclusiva a este grupo. “A gente tem um entendimento sobre o Holocausto como uma tragédia humana”, ela argumenta.

Foi com este lema que o coletivo nasceu, durante as eleições presidenciais de 2018, no auge das manifestações do #EleNão. Um grupo de judeus já estava descontente com o discurso de ódio que Bolsonaro proferiu no Clube Hebraica, em 3 de abril de 2017, contra negros, indígenas, mulheres, gays, refugiados e integrantes de ONGs. Na época, o então deputado recebeu aplausos e gritos de “mito” da plateia do clube judaico, mas setores da comunidade fizeram questão de repudiar o ato.

Hoje, Maria estima que cerca de 140 pessoas militem ativamente para dar seguimento aos trabalhos do coletivo, só no Rio de Janeiro. No Facebook, uma página do grupo tem quase 8 mil seguidores. Há iniciativas semelhantes também em São Paulo e no Recife, capital pernambucana, segundo ela. Vez em quando, se articulam para promoverem atividades em conjunto.

Para a arquiteta, a sociedade brasileira tem errado em “deixar passar” a construção diária dos discursos de ódio. Foi assim que o nazismo se estabeleceu, ela avalia. “Tudo isso faz parte de algo maior. A gente não pode ignorar esses pequenos sinais”, afirma.

Confira, a seguir, a entrevista de CartaCapital com a integrante do grupo Judeus pela Democracia, Maria Fiszon.

CartaCapital: O que vocês farão no dia 31?

Maria Fiszon: A origem do ato vem não só após a fala do [Roberto] Alvim, mas também do fato de ele ter pedido desculpas direcionadas ao judeus. Como se a questão do Holocausto fosse exclusiva aos judeus. A gente tem um entendimento sobre o Holocausto como uma tragédia humana. O Holocausto não pertence somente aos judeus, pertence à humanidade. É importante a gente lembrar isso sempre. O pessoal todo do coletivo, quanto a gente conversou, todo mundo pensa que a opressão nazista não foi exclusiva aos judeus, ainda que, em números, os judeus tenham sido o maior grupo. É uma perseguição que se atém ao ideal nazista, tanto aos ideais de raça ariana, como nos ideais políticos, de superioridade de raça, subordinação de outros povos. A gente queria trazer isso para a exposição.

Uma das coisas que se passa [na exposição] e que é muito importante é a questão dos triângulos. Nos campos de concentração, eram usados triângulos nas roupas dos prisioneiros para identificá-los. Isso, inclusive, fez parte da desumanização dos prisioneiros. Eles deixam de ser pessoas, perdem nome e identidade própria, e viram triângulos e números escritos nos braços. Esses triângulos dividiam os grupos. São vários triângulos com a representação de vários grupos. O que ficou mais conhecido foi o triângulo amarelo com um triângulo invertido, que identificava os judeus. Mas você teve triângulos marrons para os ciganos, roxos para os testemunhas de Jeová, rosas para homossexuais, e por aí vai.

Não é uma exposição num sentido amplo, estamos montando uma pequena exposição explicando um pouco sobre esses triângulos e que grupos eram esses. Também mostramos como o nazismo acontece. Porque o nazismo não surge do dia para a noite. As pessoas têm o imaginário do campo de extermínio e da câmara de gás, mas isso não surge do nada. Há todo um projeto de discriminação e de perseguição do outro, do diferente, que chega nesse extremo, no extermínio em massa. Genocídio é uma palavra que foi criada para explicar o que aconteceu ali.

Algumas atitudes podem ser ignoradas, porque “não tem nada demais”. A gente não se incomoda porque é o outro grupo que é discriminado. É essa coisa de ir “deixando passar” que a gente tem visto nesse governo. Houve censura, deixam passar. Discriminação de negros, deixam passar. Discriminação contra indígenas, deixam passar. Falas machistas… Tudo isso faz parte de algo maior. A gente não pode ignorar esses pequenos sinais. A discriminação não é um ato contra uma pessoa, é um ato contra a sociedade e a democracia.

CC: Então será uma exposição artística?

MF: Não é artística. É uma exposição de painéis ao ar livre na Cinelândia, no Rio de Janeiro. Tem outro detalhe também. Convidamos representantes de outros grupos, tanto os que são “triângulos” também, ciganos, testemunhas de Jeová, como grupos que vêm sofrendo hoje em dia, as religiões de matrizes africanas, movimentos negros de maneira geral. Eles farão algumas falas para mostrar que o nazismo não é uma preocupação apenas dos judeus.

CC: Como foram as reações imediatas dentro do coletivo após receberem a notícia sobre as declarações de Alvim?

MF: Foi bem assustador, mas não surpreendente. Quando a gente viu o vídeo, mesmo sem sabermos que era uma réplica de uma fala [do ministro nazista Joseph Goebbels], verificamos a estética nazista da propaganda ali. Talvez porque conheçamos bem a história do Holocausto, ou porque temos muitos historiadores em nosso grupo. Foi muito incômodo. A gente lançou uma nota muito rápido, entramos em um debate juntos sobre isso e, ao mesmo tempo, havia um pensamento de: a gente não pode “não se manifestar”, mas também não podemos fingir que isso foi um ato isolado. Como é que a gente mostra que não foi um ato isolado?

É um momento escancarado de um conjunto de ações e discursos que vêm acontecendo no último ano nesse governo. Esse secretário não estava ali por acaso. Ele era um membro de uma gestão que tem esse discurso, ainda que seja subliminarmente. Mas não se tem dado a devida importância aos momentos em que esses discursos com essa estética aparecem.

Houve a nossa reação e, depois, quando Alvim pediu desculpas citando os judeus, expusemos uma nova indignação. Ninguém pode achar que esse discurso é contra os judeus, até porque, no discurso, ele não cita judeus em nenhum momento. Não é porque vem de uma estética nazista que o discurso ofende e agride unicamente os judeus.

CC: O presidente Jair Bolsonaro e membros do governo já associaram o nazismo à esquerda. Como vocês avaliam essa posição?

MF: O nazismo é um movimento de extrema-direita. Há toda uma estrutura histórica que explica isso. A associação que eu vejo, em geral, é de que ditaduras são de esquerda. Uma ditadura é um governo totalitarista em que há repressão e tortura, e aí você pode ter isso em qualquer espectro político. O Bolsonaro foi ao Museu do Holocausto, em Israel, e lá disseram para ele que o nazismo é de extrema-direita. E ele resolveu continuar dizendo que é de esquerda.

Para mim, é um revisionismo histórico. É uma maneira de associar tudo o que não é bom à esquerda. É uma forma de dizer que temos que nos afastar da esquerda porque todas as coisas ruins são da esquerda. Então, você muda os elementos históricos em benefício próprio, sem nenhum tipo de embasamento.

CC: Além da declaração do Roberto Alvim, vocês percebem outros sinais de fortalecimento de grupos nazistas no Brasil?

MF: Até existem algumas células nazistas no Brasil, mas o nazismo é específico. É um movimento histórico específico. Há um nacionalismo exacerbado, que a gente tem no Brasil atualmente. O lema do governo é “O Brasil acima de tudo”. E isso é muito parecido com o discurso da Alemanha nazista. É difícil de dissociarmos. A gente tem um governo que defende que o país é cristão, que é contra a laicidade do Estado, que é a favor de que as maiorias dominem as minorias. São discursos fascistas e o nazismo é, digamos, uma forma de fascismo.

A eliminação do diferente, o extermínio do outro, a impossibilidade de o outro existir são características do fascismo e a gente as vê no que está acontecendo. Hoje, não temos direito às terras indígenas, religiões de matrizes africanas têm seus terreiros atacados e ninguém do governo se manifesta, ninguém fala nada, porque tudo bem, o país é cristão e não precisa de outras religiões. Talvez, o grande momento em que isso passou a ser ignorado foi quando o atual presidente fez uma homenagem a um torturador, em plena Câmara dos Deputados, e nada foi feito. É o início de uma aceitação de um discurso inaceitável.

CC: Mas apesar de o governo apresentar essas características, o presidente Jair Bolsonaro demonstra aproximação com Israel. Vocês percebem isso de que forma?

MF: Olha, essa é uma pergunta que eu acho muito difícil, na verdade. Ele tem uma aproximação muito grande com o atual governo de Israel, de [Benjamin] Netanyahu. Não significa, por exemplo, que em uma troca de governo isso se mantenha. É muito similar ao que acontece nos Estados Unidos, ele [Bolsonaro] tem uma aproximação com o presidente [Donald] Trump. Se o Trump não for reeleito esse ano, essa aproximação se mantém? A aproximação dele é no caráter personalista.

Visitar Israel e conhecer o país, o Lula também fez isso. Isso não demonstra uma aproximação. Bolsonaro se coloca muito próximo de Israel a partir de uma idealização cristã. É uma relação muito maior com o eleitorado evangélico, que também tem essa aproximação com Israel, do que de fato com o país que existe lá. Tel Aviv tem uma das maiores passeatas LGBTs do mundo, é gigantesca. A união homoafetiva é reconhecida há muito tempo [desde 1993]. O aborto é legalizado em Israel. Então, que Israel é essa de que Bolsonaro é próximo, mas que é um Estado bem diferente do que ele defende aqui? Essa aproximação é mais complexa do que uma amizade com Israel.

CC: Os impactos do Holocausto podem ser sentidos ainda hoje, de alguma forma?

MF: O Holocausto, para mim, não é muito antigo. Minha tia-avó sobreviveu, ela estava em Auschwitz e faleceu em 2015, aos 93 anos. Não é distante. Talvez seja distante no imaginário brasileiro, em que se conhece poucas pessoas que estiveram ali. Mas se você for na Europa, por exemplo, vai encontrar muita gente que viveu a guerra. Então, o Holocausto é bem próximo para muita gente. Para mim, também. O meu avô veio para o Brasil fugindo, uma pessoa com quem eu cresci, do meu lado.

Eu não digo que a gente aprendeu alguma coisa, ainda que, por exemplo, tenha surgido a própria Organização das Nações Unidas (ONU) [órgão foi criado em 1945, como resposta à Segunda Guerra Mundial]. A oficialização dos direitos humanos foi uma consequência do Holocausto. Mas o aprendizado é sempre difícil de a gente colocar. O que significa aprender? Que vimos o quão longe a sociedade pode chegar? Quão grandes podem ser os horrores da humanidade? É, sim, mas eu não acho que isso seja um aprendizado.

Agora, como os discursos de ódio vão sendo naturalizados, é uma coisa que deveríamos ter aprendido com o Holocausto. Perseguições nunca podem ser toleradas. Só que uma coisa é dizer que deveríamos ter aprendido a partir daí, outra é dizer que de fato se aprendeu. Eu não posso dizer que sim.

Fonte: Carta Capital

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