Quando o veneno está no seu prato de comida

Em sua sede incontrolável pelo lucro, o capitalismo vem envenenando maciçamente toda a cadeia de alimentos, toda a produção alimentar.

Foto: reprodução da internet

No Brasil, este tema já foi alvo de um primeiro documentário do cineasta Sílvio Tendler, “O veneno está na mesa”, seguido por um segundo “O veneno está na mesa – II” que, nesta nota, procuramos resenhar.

Em primeiro lugar, esse documentário é impactante e movido por uma sensibilidade à flor da pele ao drama do trabalhador rural e urbano, ambos – e suas famílias –, vítimas da escalada de venenos usados na agricultura e na criação de animais pelos capitalistas. Explicita o conflito aberto entre o agronegócio – e seus métodos tóxicos de produção – e a saúde coletiva. Também o conflito entre o agronegócio e a perda da autonomia do pequeno agricultor em relação às sementes, aos insumos agrícolas.

E expõe o papel do Estado burguês como agente da expansão do agronegócio com suas commodities [tipo soja, milho, algodão, cana etc] e inimigo da qualidade de vida da classe trabalhadora no campo e na cidade.

Um mérito essencial do documentário é o de propor uma resistência social a tudo isso. E denunciar, de forma direta e didática a devastação promovida pela agricultura dos venenos e que se estende por todos os poros da nossa vida, desde a aniquilação progressiva do rio São Francisco, por exemplo, até o envenenamento dos grãos, hortaliças e frutas que consumimos na nossa refeição cotidiana.
Nessa medida, é um manifesto para ser discutido em sala de aula e organismos de massas.

Uma medida elementar de conscientização de massas seria justamente essa: a discussão nas escolas e por todo lado onde haja qualquer forma de ativismo social; a discussão e o debate aberto e crítico desse documentário.

Esteticamente muito bem elaborado, envolvente e impactante ao longo de sua uma hora de duração, é uma peça pedagógica à qual todo professor deveria recorrer.
Pela denúncia, pela proposta de resistência a tudo isso.

No entanto, no próprio debate se coloca a necessidade de questionar a perspectiva política em que o documentário se coloca – que vem a ser a do próprio Tendler, que marca todos os seus documentários – e também sua perspectiva, digamos assim, programática. E as ilusões que cria em relação à própria saída agrícola.

Naturalmente esse documentário explicita o inimigo central: a burguesia do agronegócio, seus bancos e barões da terra. E agita a bandeira da reforma agrária.

No entanto perpetua um debate, um senso comum na esquerda mais, digamos assim, “ambientalista”, que é o de colocar, no centro do palco, como solução programática e histórica, a pequena agricultura familiar, o pequeno produtor agrícola.

Com a vitória final do pequeno agricultor resolveríamos o problema da demanda de alimentos, orgânicos no caso, e também a crise agrária no Brasil. Nesse passe de mágica o agronegócio aparentemente desapareceria. Algo assim como conseguir ocupar todas as terras e fatiá-las entre os sem-terra. E apoiar, a partir do Estado, sua produção de alimentos. Organicamente.

Com alguns detalhes a mais essa parece ser a proposta do documentário.
O realismo está em entender que podemos e devemos ter uma agricultura sem venenos.

A falta de realismo está em deixar de tomar o capitalismo de conjunto, não ter uma proposta consequente para o agronegócio e imaginar que somando mais e mais pequenos agricultores familiares e ecológicos iremos, em algum ponto do futuro, a alguma emancipação para as grandes massas da classe trabalhadora.

Em suma: a velha crença de certa esquerda de imaginar uma reforma no capitalismo “a partir de baixo”, sem encampar o agronegócio, diga-se de passagem, a única forma de aniquilar seu poder político; e, ao mesmo tempo, em termos agrícolas a curiosa ideia de imaginar que se trata de retalhar todo e qualquer latifúndio produtivo.

O que equivale a não ter claro que sim, os latifúndios devem ser ocupados pelos próprios trabalhadores que, em assembleias, lado a lado com trabalhadores urbanos, decidam o que fazer com cada um deles, inclusive torná-los unidades produtivas sob gestão do trabalhador agrícola. Em suma: reforma mais revolução agrária, neste caso o Estado expropriando o agronegócio.

Para além desse problema programático e de perspectiva, o documentário padece de um outro, politicamente grave, que é embelezar os governos petistas, de Lula a Dilma. O filme, claramente, alimenta essa ilusão reacionária: de que com o lulo-petismo, governos de conciliação de classe, poderia ter havido a saída para o campo, para a questão agrária. Ou para a agroecologia.

Lula jamais quis realizar a reforma agrária, sempre promoveu benesses para o agronegócio, sempre fechou os olhos para a agricultura dos venenos, e não foi por falta de tempo ou de mandatos políticos.

Nunca foi projeto do PT e seus governos vencer o poder do agronegócio. Lula sempre se aliou politicamente com ele, nomeou ministros e quadros do agronegócio para dirigir ministérios decisivos no assunto, jamais democratizou ou colocou sob controle popular as agências controladoras de venenos agrícolas nem nada parecido.

Fez concessões aqui e ali à pequena agricultura mas nada mais, não foi até o fim em nenhum ponto das demandas das massas pobres do campo. Nem da luta contra os venenos no nosso prato de comida.

É preciso muita imaginação e fundamentalismo lulista para pensar o contrário. Sequer coisas fáceis como abolir, por um decreto presidencial, a criminosa pulverização de venenos com aviões, desarmar o latifúndio, banir agrotóxicos já banidos em outros países, sequer pequenas medidas exemplares como essas jamais foram tomadas pelo lulo-petismo.

A Anvisa, controladora oficial dos venenos, sempre esteve nas mãos erradas, sempre monocrática e jamais sob controle democrático que pudesse impedir a pressão dos oligopólios vendedores de agrotóxicos etc.

No entanto, o filme oferece como perspectiva o lulo-dilmo-petismo.

Pura miséria da estratégia.

E em um plano mais estrutural, agrícola, Tendler absolutiza a agroecologia na base do pequeno produtor independente [e capitalista: produzindo para o mercado e, frequentemente contratando força de trabalho].

O que fazer com o agronegócio, que já abarca as melhores terras cultiváveis, que mais nos envenena [embora o pequeno agricultor também o faça, incentivado que é pelo governo das multinacionais químicas]? Não é tema para o documentário [para além de propor, genericamente, a reforma agrária].

Acontece que, no real, o Brasil é o país do agronegócio, tanto politicamente quanto do ponto de vista agrário, e o filme passa ao largo de avaliar até o fim, aonde leva essa lógica. Daqui decorre sua postura: nenhuma proposta do que fazer com a grande indústria de venenos ou com o barão de terras.

Bastaria, supõe-se, tocar a pequena agricultura familiar, ecologicamente correta, sem venenos, e nosso futuro estaria garantido.

Portanto, Tendler, o nosso querido “cineasta dos vencidos”, propondo-se a tomar partido pelos vencidos – e realmente o faz – termina vendendo ilusões. Propondo, corretamente, resistir [ao agronegócio e seus cúmplices], no entanto, não vai muito além disso. Bem ao gosto da política petista.

Na sua ótica, a pequena produção agrícola, ecológica, em si mesma, já seria o elemento central da resistência. Coisa que não pode ser.

Sua defesa enfática da agroecologia, da agrofloresta, de toda experiência que aponte para uma agricultura e pecuária sem venenos é positiva, e consiste no lado progressista e esteticamente mais tocante do filme, lado a lado com a sensibilidade para os mais oprimidos e contra o grande capital no campo.

Mas a verdade é que se faz necessário discutir estratégia e saída política. Sempre.

E não há saída sem a aliança entre os trabalhadores do campo, os defensores da agroecologia e os trabalhadores urbanos, uma aliança política e com independência de classe, sem qualquer vínculo com partidos da patronal, incluindo PSB, PDT e o próprio PT, que preservou e promoveu as Kátia Abreu e a grande agricultura de commodities e dos venenos.

É a mesma ilusão reacionário-populista do Tendler do “Os anos JK’ ou do seu “Jango”, a crença de que com alguma burguesia “progressista” iremos a algum lugar que não seja dar passagem para a direita, aliar-se com ela [como fez Lula todo o tempo, inclusive com a famigerada “bancada ruralista”, enquanto distribuía algumas migalhas, crédito e clientelismo estatal para “os de baixo”].

E quanto à pequena agricultura – que deve ter total apoio de um governo revolucionário – ela não resolveria, nem imediatamente nem mediatamente, o problema alimentar das grandes massas urbanas.

Está bem defendida, no filme, a bandeira de todo apoio a uma agricultura “orgânica” [sem venenos], sim, mas mesmo esta bandeira, fica sem chão político ou histórico, se não há uma proposta clara para o que fazer com as grandes terras nas mãos dos barõesagrários, do agronegócio, para além da sua repartição com os sem-terra.

No capitalismo, historicamente, o pequeno camponês independente [e sua família, onde trabalham a mulher, as crianças] é invariavelmente arruinado pelo grande, sua terra tomada pelo grande dono de terras. Entre nós, isso já ocorreu, inclusive, com alguns assentamentos. Não existe saída “pequeno-camponesa” em escala de massa, para os mais de 200 milhões de brasileiros.

Tomemos como exemplo o açúcar. E nos façamos a pergunta: um grande canavial produtivo [e sua usina], que usa venenos, que contrata e espolia um grupo de trabalhadores, deve ser desmantelado – como unidade produtiva em larga escala – e suas terras distribuídas ou deve ser mantido inteiro, como unidade produtiva, confiscado pelo Estado e agora sob controle daqueles trabalhadores agrícolas e, sob sua gestão, eliminar com todo e qualquer veneno? E esse raciocínio – deliberado entre os trabalhadores agrícolas – não valeria, por exemplo, para os grandes cafezais etc?

É quase senso comum na esquerda fugir desse debate. Tampouco Silvio Tendler consegue abordá-lo.

E isso pode comprometer – programaticamente – um belo filme.

É preciso pensar como girar TODA a agricultura, grande ou pequena, para a produção sem venenos. Correto.

Mas também abrir o grande debate: além da ocupação e expropriação das terras do agronegócio, além da reforma agrária em vários lados do Brasil, por assembleias de trabalhadores com independência de classe, aliados com os sindicatos da cidade, quais as propostas, também na esfera da grande produção de cana, de café etc em termos da produção sem veneno?

Ou seja, para além de todo apoio à pequena produção agroecológica, como fazer funcionar grandes unidades agrícolas já existentes – de café ou de cana, como foi citado – sob gestão dos seus trabalhadores mas com métodos agroecológicos, com consorciamento de culturas, ou de animais e plantas, de adubação orgânica etc etc de forma que também essas grandes fazendas públicas democratizadas se imponham como parte fundamental da “nova forma de produzir alimentos” para grandes massas.

Temos consciência de que o debate é bem mais extenso e necessita incluir todos aqueles/as que já refletiram ou fizeram experiências nesse terreno, em chave revolucionária, na perspectiva dos pobres do campo. Mas o que nós sugerimos é que essa pauta não seja reduzida, programaticamente, aos limites estabelecidos por esse belo documentário, por cuja elaboração seus produtores e editores estão de parabéns.

O documentário pode ser assistido aqui:

Fonte: Esquerda Diário

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