Por Mariângela Magalhães
Mudanças de paradigmas no Direito Penal em relação à mulher marcam outros tempos e devem continuar para novas transformações
Terminado o carnaval, várias reportagens noticiam a prisão de foliões que praticaram condutas caracterizadas como importunação sexual (Lei 13.718/18). Comportamentos como tentar sentar-se no colo da mulher contra a sua vontade, tocar as partes íntimas de mulher que estava brincando num bloco, se encostar em mulher de forma libidinosa, esfregar-se contra o corpo da mulher que não aceitou ser paquerada ou colocar as pernas por cima de mulher que descansava na calçada são apenas alguns exemplos dos crimes que foram registrados nas delegacias nos últimos dias.
O que pode parecer exagero por parte de quem se acostumou em enxergar a mulher como um objeto para a satisfação sexual de homens, não é mais do que um claro sinal de que os tempos mudaram.
Embora comportamentos como os acima descritos continuem sendo praticados e possivelmente demorem a ser compreendidos por todos como afrontosos à dignidade das mulheres, o fato é que o direito penal vem passando por profundas mudanças no que diz respeito à proteção das mulheres, e isso não pode ser ignorado.
Tão ou mais significativo do que a previsão de penas a quem agride sexualmente as mulheres é a constatação de que o direito penal passou, nos últimos anos, a considerá-las efetivamente como sujeitos com dignidade sexual a ser protegida.
Até 2005, por exemplo, a legislação penal brasileira trabalhava com uma lógica que vinha sendo perpetuada desde os tempos das Ordenações Filipinas, ou seja, desde 1603. A mulher, cujo papel era essencialmente passivo na sociedade, sujeitava-se à vontade do pai quando solteira, e passava ao domínio do marido ao se casar. A família, então, caracterizava-se por ser uma unidade sob o comando do homem, e era nesse contexto que as condutas abusivas contra o corpo das mulheres eram criminalizadas.
Enquanto esteve em vigor o Código Criminal do Império (1830-1890), por exemplo, a pena do estupro contra mulher considerada “honesta” era significativamente maior do que a pena para a mesma conduta se a vítima fosse prostituta. A justificativa para a disparidade de tratamento não estava apenas no fato de uma mulher ter mais “dignidade sexual” do que a outra (o que, aos olhos de hoje, é inadmissível), mas na constatação de que o que estava sendo objeto de proteção não era a liberdade sexual da mulher – mero objeto voltado à satisfação do marido –, mas a honra familiar.
Isso explica, portanto, não só a diferente proteção dispensada às mulheres, a depender de como eram categorizadas na sociedade, mas também a existência de norma bastante comum que dizia respeito à não punição do crime caso a mulher viesse a se casar depois. Ainda segundo a mesma lógica, se ao estupro (leia-se: ter relação sexual mediante violência física ou ameaça) sucedesse o casamento com a vítima, a honra familiar estaria reparada – circunstância suficiente para satisfazer moralmente o pai (e a família) da mulher estuprada.
Esse tratamento jurídico dispensado ao estupro pode parecer algo muito distante da atual realidade brasileira, tendo em vista especialmente as recentes mudanças legislativas que permitem sejam levados à prisão quem “apenas” encosta o corpo numa mulher que não quer ser paquerada.
Ocorre, no entanto, que essa distância é pequena. Há menos de quinze anos ainda estava em vigor, em nosso código penal, a regra segundo a qual o estuprador não seria punido se viesse a se casar com a vítima; da mesma forma, o criminoso também não seria punido se a vítima viesse a se casar com terceiro, desde que o estupro tivesse sido praticado com violência presumida (art. 107, VII e VIII).
Por meio desses exemplos é possível perceber que faz muito pouco tempo que o nosso direito penal passou a enxergar a mulher como sujeito digno de proteção contra abusos e violências sexuais, e que tem direito à tal tutela pelo simples fato de ser mulher.
Impressiona o fato de ter sido apenas em 2005 que a mulher deixou de ser vista, para o direito penal, como merecedora de maior ou menor proteção a depender de seu comportamento sexual (mulheres recatadas e “do lar” versus prostitutas ou mulheres de “vida fácil”).
Chama a atenção, também, que só há quatorze anos aos homens que estupram mulheres deixou de ser dada a oportunidade de ter extinta a punibilidade se se casassem com as vítimas.
Quando olhamos para o direito penal a partir de uma perspectiva histórica, portanto, constatamos a importância do momento que estamos vivendo. Pouco mais de quinhentos anos de história e durante praticamente todo esse tempo nossa sociedade conviveu com um direito penal que não via nas mulheres indivíduos dignos de dignidade e liberdade sexual. Não é fácil superar todo esse passado, muito menos se essa tarefa não for dividida com outros setores da sociedade.
Por outro lado, em menos de vinte anos não só foram afastadas incriminações que não mais se ajustavam ao papel da mulher na sociedade, como foram incorporadas atualizações jurídicas importantes para protegê-la. O tratamento penal dado a condutas como o assédio sexual, o feminicídio, a violência doméstica e, mais recentemente, a importunação sexual, o estupro corretivo e a divulgação de fotografia ou vídeo com cenas de sexo sem o consentimento da vítima, apontam para uma diferente concepção da mulher em nossa sociedade.
Embora sempre seja possível questionar qual é a melhor maneira de proteger as mulheres em sua liberdade e dignidade sexual, a mudança de paradigma ocorrida no direito penal brasileiro no século 21 é bastante expressiva do caminho a ser seguido.
Fonte: Carta Capital