Uma tragédia incalculável foi o incêndio no Museu Nacional na Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro. Seu presente de 200 anos foi cortes orçamentários como resultado da política de arrocho do governo Temer. O descaso com a memória e o patrimônio cultural levou à completa destruição de seu prédio e de cerca de 20 milhões de peças.
No casarão da Quinta da Boa Vista viveu a Família Real Portuguesa entre 1808 e 1822 e a Família Imperial Brasileira de 1822 a 1889. Foi lá onde instalou-se a primeira Assembleia Constituinte Republicana entre 1889 e 1891. O Museu Nacional, fundado por Dom João VI em 1818 em outra localidade, foi transferido para a Quinta da Boa Vista em 1892, onde permaneceu até o fatídico incêndio em 2 de setembro de 2018.
Perdemos um acervo Histórico, Arqueológico, Antropológico, Etnológico, Paleontológico, Geológico e de História Natural, respeitado internacionalmente. Havia a maior coleção de meteoritos do Brasil. Minerais do acervo de José Bonifácio de Andrada e Silva. Dezenas de milhares de fósseis de plantas e animais desde a Era Paleozoica, o que incluía peixes, tartarugas, dinossauros, pterossauros e a animais da megafauna do pleistoceno, como a preguiça gigante e o tigre-dentes-de-sabre. O museu possuía uma grande quantidade de amostras da pré-história, especialmente brasileira, o que incluía o crânio de Luzia, a mais antiga habitante do atual território nacional já encontrada, com cerca de 13 mil anos.
Tínhamos a maior coleção egípcia da América Latina, com 700 peças, incluindo múmias humanas, de gatos, íbis, peixes e filhotes de crocodilos. A múmia da cantora do templo egípcio de Karnak, Sha Amun en Su, que viveu há 2,8 mil anos (um dos poucos exemplares no mundo que ainda estava dentro de seu sarcófago selado) era a peça favorita da coleção particular de Dom Pedro II. A coleção contava ainda com estelas votivas e funerárias, estatuetas, joias e amuletos de vários períodos da história egípcia. Foi consumida pelas chamas, uma biblioteca insubstituível, com obras raríssimas como os livros da expedição de Napoleão no Egito e o diário de viagem de Dom Pedro II às pirâmides e ao templo egípcio de Karnak, em Luxor.
A coleção do Mediterrâneo também era respeitada, com peças gregas, romanas, etruscas e italiotas, o que incluía artefatos de Herculano e Pompeia, cidades soterradas pela erupção do Vesúvio. O acervo pré-colombiano abarcava povos andinos, amazônicos e mesoamericanos. Da América do Sul, havia peças de culturas como Nazca, Moche, Huari, Lambayeque, Chimu, Chancay e Incas, o que incluía inclusive múmias. Culturas amazônicas como Marajoaras, de Santarém, do Rio Trombetas, Miracanguera, Maracá e Tupi-Guarani se faziam presentes, junto com as mesoamericanas do México e Nicarágua. Incluía ainda a parte etnográfica dos índios brasileiros e das tribos africanas Iorubá, Ecóris, de Angola e Madagascar. Até mesmo de culturas do Pacífico como Polinésia, Nova Zelândia e Nova Guiné compunham este rico e respeitado patrimônio do Brasil e da humanidade
Perdemos ainda, parte da cultura material remanescente do Brasil Império.
Com isto, pesquisas em andamento viraram pó. Mestrandos, doutorandos, pós-doutorandos e pesquisadores tiveram seus trabalhos perdidos. A imagem do Brasil perante o mundo se desgasta e dificilmente algum país se aventurará tão cedo a oferecer peças para quem demonstra incapacidade de cuidar do que já possui.
Por que será que tantos museus foram incendiados em São Paulo e no Rio de Janeiro nos últimos anos? Em episódios da chamada “guerra híbrida” imposta pelos Estados Unidos a países do Oriente Médio, é comum que a destruição de sítios arqueológicos e museus entre no repertório das inúmeras táticas de humilhação nacional. Aqui no Brasil, quem destrói seu patrimônio é o próprio governo, que contingencia verbas e negligencia a conservação de seu legado histórico. Incêndios são as consequências.
A memória e a ciência brasileira e mundial estão em luto. Uma dor irreparável! Que nestas eleições, haja um compromisso de políticos com a memória, a história e a ciência. Toda solidariedade a todos os trabalhadores e pesquisadores do Museu Nacional do Rio de Janeiro.
*Thomas de Toledo é doutorando em Arqueologia pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo – USP.
Fonte: Vermelho.org