Apoiados por bispos e pastores, candidatos neopentecostais batalham com laicos, que defendem o Estatuto da Criança e do Adolescente
A polarização política no Brasil ganhou um novo capítulo no domingo 6. Normalmente desprezada pela sociedade, a eleição dos conselhos tutelares virou o novo campo de batalha entre os progressistas laicos e a banda mais reacionária das igrejas. Uma intensa campanha dos dois grupos resultou em um afluxo incomum de votantes às urnas. A fila em Belo Horizonte surpreendeu o advogado Willian Santos, ex-presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB de Minas Gerais: “A espera era superior a duas horas. Havia uma presença maciça de candidatos e cabos eleitorais. Para mim, foi inédito”. Os números oficiais ainda não foram apurados, mas uma coisa é certa: a participação popular neste ano foi bem superior àquela da disputa de 2016.
O aumento de eleitores tem a ver com a reação de movimentos sociais à tentativa das igrejas neopentecostais, em especial da Universal do Reino de Deus, do bispo Edir Macedo, de conquistar o maior número de vagas nos conselhos, responsáveis, entre outras funções, por fiscalizar a aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente. Macedo engajou-se pessoalmente na campanha. “É importante ter pessoas com valores e princípios e que, acima de tudo, tenham compromisso com Deus”, defendia um texto publicado no site da Universal.
A influência dos pastores, diz Santos, funcionou em Belo Horizonte. “Ainda não temos os números finais, mas acredito que entre 60% e 70% dos eleitos receberam apoio das igrejas. O voto era solicitado nos púlpitos.” A maioria do colegiado, justamente aqueles que nos próximos anos serão responsáveis pela orientação e encaminhamento de processos ao Ministério Público e ao Poder Judiciário, está ligada aos evangélicos e seguirá a orientação de seus líderes. “É um contrassenso. Os conselheiros são obrigados a acatar as regras do Estatuto e não preceitos religiosos. O problema é que essa maioria é declaradamente contrária ao ECA. Poderemos vir a ter conflitos jurídicos gravíssimos”, lamenta o advogado.
Em Porto Alegre, 185 candidatos concorreram a 50 vagas. Análises preliminares e extraoficiais estimam que a corrente laica ficou com 20 cadeiras. A presença de eleitores também disparou, alta de 173% em relação à eleição anterior. Segundo o teólogo e publicitário Tiago Santos, deu-se na capital gaúcha “o aparelhamento das organizações religiosas com a finalidade política de eleger seus representantes”. As candidaturas “abençoadas” pelos religiosos eram promovidas nos cultos. “Teve vigília de oração pela cidade e não raro os pastores chamavam os candidatos para orar pelas suas vidas. Eram formas dissimuladas de apresentá-los sem infringir a lei eleitoral.” Marcia Gil Rosa, psicóloga, ativista social e conselheira mais votada em toda história das eleições porto-alegrenses, com 3.629 votos, acredita que os números finais refletem as rupturas no panorama político geral provocadas por uma onda fundamentalista que busca ocupar os espaços de representação. “As disputas político-ideológicas e religiosas tomaram o processo de escolha dos conselheiros.”
No Recife não foi diferente. A eleição teve boca de urna, transporte de eleitores, distribuição de cestas básicas e apoio das igrejas. Em Curitiba, a votação foi cancelada logo após o encerramento, sem concluir a apuração. Durante todo o dia, diversas urnas eletrônicas apresentaram problemas: as fotos dos candidatos não coincidiam com os respectivos números. Em São Paulo, venceram os laicos. Dos 245 eleitos, 119 integravam as listas dos movimentos sociais. Três regiões da cidade vão realizar novas eleições: Pinheiros, Pirituba e Lajeado.
No Rio de Janeiro, o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente recebeu mais de 300 denúncias de fraude. O coordenador Carlos Roberto Laudelino admitiu tratar-se de uma eleição atípica. Há uma guerra entre milicianos, traficantes, católicos e evangélicos, afirma. “Isso é uma certeza. Estamos em uma cidade sitiada. Queremos evitar que a eleição seja impugnada.” O prazo previsto para os recursos encerrou-se na quinta-feira 10. Até o fechamento desta edição não havia uma definição oficial sobre a disputa fluminense. Ainda serão confirmados os nomes dos 95 conselheiros titulares e 95 suplentes.
Nascido para defender o Estatuto da Criança e do Adolescente, o foro virou um campo de batalha entre laicos e religiosos
Na avaliação de Felipe Tau, gestor do projeto “Rede Peteca – Chega de Trabalho Infantil”, os neopentecostais, por conta de sua capilaridade nas periferias, têm obtido sucesso em ampliar sua influência nas diversas instâncias de participação da sociedade. Para fazer frente ao projeto político dos bispos, Tau sugere um processo contínuo de mobilização e conscientização popular. “E isso inclui os conselhos tutelares, que precisam ser ocupados pela sociedade civil para não serem capturados por algum tipo de interesse de grupos ou corporações específicas. A disputa eleitoral deste ano foi a prova dessa ganância social.”
Marcelo Nascimento, ex-conselheiro tutelar e consultor de Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes, atribui ao poder público grande parcela de responsabilidade pela mixórdia eleitoral, na medida em que o processo de mobilização e conscientização do papel dos conselhos tutelares não se realiza a contento. “A desinformação favorece os candidatos ligados a certas instituições, entre elas as igrejas, que conseguem se mobilizar e eleger seus candidatos.” Nascimento propõe a revisão da Lei Geral dos Conselhos Tutelares, principalmente no quesito de controle social das ações de cada conselheiro. “O compromisso do colegiado é com o Estatuto da Criança e do Adolescente. Trata-se, além do mais, de um espaço laico, cujo objetivo é garantir que nossas crianças e adolescente não tenham seus direitos violados. São pontos inegociáveis.”
Os conselhos correm, no entanto, o risco de se tornarem mais um púlpito para o proselitismo religioso.
Fonte: Carta Capital