por Valdete Souto Severo*
O conteúdo dos diálogos trocados entre Moro e acusadores compromete a lisura da Lava Jato, como também do processo eleitoral recente
Defender o Estado Democrático de Direito não é tarefa fácil, pois implica deixar de lado uma série de questões que precedem a discussão, tal como a função que o Estado e o Direito desde sempre assumiram na lógica de uma sociedade de trocas. Essa função torna-se cada vez mais evidente no presente momento histórico, que talvez seja estudado, no futuro, como período de ocaso da forma de organização social que por mais de dois séculos insistimos em manter, conforme depreendemos da leitura do livro de Alysson Mascaro (MASCARO, Alysson Leandro. Estado e Forma Política. São Paulo: Boitempo, 2013).
O fato é que reconhecer que o Estado e o Direito, enquanto instituições, têm compromissos de origem, digamos assim, com a manutenção de um sistema que de certo modo apenas tenta nos convencer de uma igualdade quase sempre (ou sempre) ausente não nos isenta de defender suas bases filosóficas e políticas, contra arbítrios que agucem a dominação – e, nesse sentido, vale conferir o texto de Claudia Dadico publicado recentemente no Justificando.
A premissa que assumo aqui, portanto, é a de que o ordenamento jurídico instituído a partir do parâmetro constitucional precisa ser observado, pois se o Direito é de certo modo instrumento de dominação, reflexão esta que desenvolvo na obra: SEVERO, Valdete Souto. Elementos para o uso transgressor do direito do trabalho: compreendendo as relações sociais de trabalho no Brasil. São Paulo: Ltr, 2016.
Parece certo afirmar que sua simples inobservância, de acordo com o gosto do intérprete, é ainda mais nociva àqueles que estão alijados do poder, do que a observância das regras jurídicas, também em certa medida comprometidas com a ideia de dominação. Portanto, deixo propositadamente de lado a discussão acerca da correlação de forças entre Estado, Direito e capital.
Assumo o fato de que estamos em uma sociedade que se autoproclama Democrática Social e de Direito, para analisar o que significa, diante disso, a normalização do discurso de que é possível que o Ministério Público e o Poder Judiciário “combinem” como será feita a investigação, quais provas serão utilizadas, quem será investigado e até mesmo como a imprensa será tratada diante de sua curiosidade pelo caso concreto.
E relembro que as regras jurídicas também desempenham função contra hegemônica. Tanto o direito penal quanto o direito do trabalho são exemplos claros disso. A dificuldade em fazê-los valer, para a maioria absoluta das pessoas, apenas reforça a convicção de que essa função é complexa, pois desafia a ordem das coisas, na exata medida em que se propõe a efetivamente reduzir as desigualdades que não decorrem apenas da condição econômica, mas sobretudo da posição política que determinada pessoa detém na sociedade.
O número de pessoas encarceradas sem que haja o trânsito em julgado de uma condenação penal, a superlotação dos presídios, assim como o desemprego estrutural, o valor (e o desrespeito à prática de seu pagamento) do salário mínimo ou os índices de descumprimento dos direitos fundamentais trabalhistas são alguns dos tantos exemplos dessa dificuldade.
Pois bem, quando um Ministro da Justiça afirma publicamente que é normal diálogos como aqueles divulgados pelo The Intercept Brasil, o que ele fere não é apenas a honra e a lisura de todos os intérpretes aplicadores do direito. É o próprio Estado Democrático de Direito, pois sua afirmação compromete a necessidade de observância de todo o sistema jurídico e atinge todos os seus aplicadores.
Ora, o juiz responsável pelo julgamento do processo no caso do Triplex, no dia em que houve manifestação de Lula, praticamente lançando sua campanha à presidência, pouco antes de ser preso, mandou mensagem após às 22h, dizendo ao Ministério Público: “talvez vcs devessem amanhã editar uma nota esclarecendo as contradições do depoimento com o resto das provas ou com o depoimento anterior dele”, “Por que a Defesa já fez o showzinho dela”. A subserviência do Ministério Público se revela na resposta: “Podemos fazer. Vou conversar com o pessoal”.
Em outro diálogo, Deltan Dallagnol avisa Sérgio Moro de que faria uma denúncia e pede que ele decida antes do plantão. A resposta: “pensem bem se é uma boa ideia”, “Teriam que ser fatos graves”. Aliás, são vários comandos para o Ministério Público, inclusive questionando recursos. Nesse episódio, Dallagnol, em atitude de subserviência, dá uma série de explicações, depois das quais o juiz da causa ainda repreende a atitude.
Em dezembro de 2015, Sérgio Moro vai além e indica uma prova para ser utilizada pelo Ministério Público. Em fevereiro de 2016, determina a inversão da ordem de duas operações planejadas pela Lava Jato, e em fevereiro de 2016, refere-se a Ministério Público e Poder Judiciário como se fossem parceiros, quando afirma “Deveríamos rebater oficialmente?” e obtém como resposta “não, porque não tem repercutido e daremos mais visibilidade ao que não tem credibilidade”.
Em março de 2016, Deltan Dallagnol faz rasgados elogios a Sergio Moro, que responde “Parabéns a todos nós”. Em junho de 2016, o Ministério Público informa a Sergio Moro que as investigações apontam irregularidades e ilicitudes em relação a vários políticos, dentre os quais Michel Temer, Eduardo Cunha, Aécio Neves e Alckmin. Moro responde: “a revelação dos fatos e abertura dos processos deveria ser paulatina”. Em agosto, Moro reclama a falta de operações da Lava Jato e a explicação que recebe do Ministério Público é de que “as operações estão com as mesmas pessoas que estão com a denúncia do Lula. Decidimos postergar tudo até sair essa denúncia”.
O conteúdo dos diálogos trocados entre Moro e acusadores compromete a lisura da Lava Jato, como também do processo eleitoral recente
Defender o Estado Democrático de Direito não é tarefa fácil, pois implica deixar de lado uma série de questões que precedem a discussão, tal como a função que o Estado e o Direito desde sempre assumiram na lógica de uma sociedade de trocas. Essa função torna-se cada vez mais evidente no presente momento histórico, que talvez seja estudado, no futuro, como período de ocaso da forma de organização social que por mais de dois séculos insistimos em manter, conforme depreendemos da leitura do livro de Alysson Mascaro (MASCARO, Alysson Leandro. Estado e Forma Política. São Paulo: Boitempo, 2013).
O fato é que reconhecer que o Estado e o Direito, enquanto instituições, têm compromissos de origem, digamos assim, com a manutenção de um sistema que de certo modo apenas tenta nos convencer de uma igualdade quase sempre (ou sempre) ausente não nos isenta de defender suas bases filosóficas e políticas, contra arbítrios que agucem a dominação – e, nesse sentido, vale conferir o texto de Claudia Dadico publicado recentemente no Justificando.
A premissa que assumo aqui, portanto, é a de que o ordenamento jurídico instituído a partir do parâmetro constitucional precisa ser observado, pois se o Direito é de certo modo instrumento de dominação, reflexão esta que desenvolvo na obra: SEVERO, Valdete Souto. Elementos para o uso transgressor do direito do trabalho: compreendendo as relações sociais de trabalho no Brasil. São Paulo: Ltr, 2016.
Parece certo afirmar que sua simples inobservância, de acordo com o gosto do intérprete, é ainda mais nociva àqueles que estão alijados do poder, do que a observância das regras jurídicas, também em certa medida comprometidas com a ideia de dominação. Portanto, deixo propositadamente de lado a discussão acerca da correlação de forças entre Estado, Direito e capital.
Assumo o fato de que estamos em uma sociedade que se autoproclama Democrática Social e de Direito, para analisar o que significa, diante disso, a normalização do discurso de que é possível que o Ministério Público e o Poder Judiciário “combinem” como será feita a investigação, quais provas serão utilizadas, quem será investigado e até mesmo como a imprensa será tratada diante de sua curiosidade pelo caso concreto.
E relembro que as regras jurídicas também desempenham função contra hegemônica. Tanto o direito penal quanto o direito do trabalho são exemplos claros disso. A dificuldade em fazê-los valer, para a maioria absoluta das pessoas, apenas reforça a convicção de que essa função é complexa, pois desafia a ordem das coisas, na exata medida em que se propõe a efetivamente reduzir as desigualdades que não decorrem apenas da condição econômica, mas sobretudo da posição política que determinada pessoa detém na sociedade.
O número de pessoas encarceradas sem que haja o trânsito em julgado de uma condenação penal, a superlotação dos presídios, assim como o desemprego estrutural, o valor (e o desrespeito à prática de seu pagamento) do salário mínimo ou os índices de descumprimento dos direitos fundamentais trabalhistas são alguns dos tantos exemplos dessa dificuldade.
Pois bem, quando um Ministro da Justiça afirma publicamente que é normal diálogos como aqueles divulgados pelo The Intercept Brasil, o que ele fere não é apenas a honra e a lisura de todos os intérpretes aplicadores do direito. É o próprio Estado Democrático de Direito, pois sua afirmação compromete a necessidade de observância de todo o sistema jurídico e atinge todos os seus aplicadores.
Ora, o juiz responsável pelo julgamento do processo no caso do Triplex, no dia em que houve manifestação de Lula, praticamente lançando sua campanha à presidência, pouco antes de ser preso, mandou mensagem após às 22h, dizendo ao Ministério Público: “talvez vcs devessem amanhã editar uma nota esclarecendo as contradições do depoimento com o resto das provas ou com o depoimento anterior dele”, “Por que a Defesa já fez o showzinho dela”. A subserviência do Ministério Público se revela na resposta: “Podemos fazer. Vou conversar com o pessoal”.
Em outro diálogo, Deltan Dallagnol avisa Sérgio Moro de que faria uma denúncia e pede que ele decida antes do plantão. A resposta: “pensem bem se é uma boa ideia”, “Teriam que ser fatos graves”. Aliás, são vários comandos para o Ministério Público, inclusive questionando recursos. Nesse episódio, Dallagnol, em atitude de subserviência, dá uma série de explicações, depois das quais o juiz da causa ainda repreende a atitude.
Em dezembro de 2015, Sérgio Moro vai além e indica uma prova para ser utilizada pelo Ministério Público. Em fevereiro de 2016, determina a inversão da ordem de duas operações planejadas pela Lava Jato, e em fevereiro de 2016, refere-se a Ministério Público e Poder Judiciário como se fossem parceiros, quando afirma “Deveríamos rebater oficialmente?” e obtém como resposta “não, porque não tem repercutido e daremos mais visibilidade ao que não tem credibilidade”.
Em março de 2016, Deltan Dallagnol faz rasgados elogios a Sergio Moro, que responde “Parabéns a todos nós”. Em junho de 2016, o Ministério Público informa a Sergio Moro que as investigações apontam irregularidades e ilicitudes em relação a vários políticos, dentre os quais Michel Temer, Eduardo Cunha, Aécio Neves e Alckmin. Moro responde: “a revelação dos fatos e abertura dos processos deveria ser paulatina”. Em agosto, Moro reclama a falta de operações da Lava Jato e a explicação que recebe do Ministério Público é de que “as operações estão com as mesmas pessoas que estão com a denúncia do Lula. Decidimos postergar tudo até sair essa denúncia”.
Não há como expressar, de modo mais nítido, o real objetivo da Lava Jato ou, no mínimo, sua prioridade. Nem há como disfarçar a concordância do juiz da causa com essa seletividade, pois a resposta a essa explicação é um lacônico “ok”. Cai por terra, então, qualquer argumento no sentido de que a intensa troca de mensagens entre Ministério Público e Poder Judiciário tivesse objetivo público ou de algum modo isento das preferências e objetivos pessoais de seus interlocutores.
A promiscuidade segue.
Em dezembro de 2016, Sergio Moro determina ao Ministério Público que deixe de lado parte das investigações; em março de 2017 Moro reclama da atuação de uma Procuradora e, em seguida, ela é retirada da escala. O então juiz ainda passa informação recebida de uma deputada, para que o Ministério Público investigue. Nesse momento, assume claramente um híbrido de juiz, promotor e informante.
Em abril de 2017, Sergio Moro questiona Dallagnol: “Tem alguma coisa mesmo seria do FHC?”. Com a confirmação de que se trata de possibilidade de caixa 2, o então juiz da causa ainda questiona se estaria prescrito. O Ministério Público responde que a prescrição não foi analisada “de propósito. Talvez para passar recado de imparcialidade” e então Sergio Moro responde: “Acho questionável pois melindra alguém cujo apoio é importante”. Note-se a gravidade da escolha de palavras a revelar intenção de finalidade nas investigações levadas a cabo pelo Ministério Público sob instruções do juiz da causa.
Aqui, o juiz da causa está praticamente determinando ao Ministério Público que não investigue uma das pessoas em relação as quais foram obtidas prova de procedimento ilícito, tornando certa a ausência de isenção necessária para a condução dos processos que resultaram de tais investigações e a falácia do argumento de moralidade, pois se de combate à corrupção se tratasse, certamente não haveria espaço para “corruptos de estimação” – expressão tomada de empréstimo da obra imperdível de Juremir Machado da Silva: SILVA, Juremir Machado. Corruptos de estimação. Porto Alegre: Sulina, 2016.
As interferências seguem e a notícia é de que há muito mais a ser revelado. Do conteúdo já publicizado, tem-se ainda que em maio de 2017, Sergio Moro repreende o Ministério Público: “que história é essa que vcs querem adiar?”, “Não tem nulidade nenhuma, é só um monte de bobagem”. O Ministério Público imediatamente altera a estratégia. Em junho, Moro ainda instrui o Ministério Público a agilizar um julgamento.
O material divulgado nos oferece farta prova de que as relações entre Ministério Público e Poder Judiciário, no âmbito da operação Lava Jato, foram marcadas pela parcialidade, revelando promíscua união entre esses poderes de Estado.
Ainda assim, Sergio Moro, que em 2016 negou qualquer possibilidade de entrar para a política e dias atrás admitiu publicamente no Senado haver sido sondado para o cargo de Ministro antes mesmo do segundo turno das eleições e, portanto, enquanto ainda atuava como juiz responsável pelos processos ligados à operação Lava Jato, referiu que não viu “qualquer infração nos diálogos” e que “é comum que magistrados se comuniquem com policiais, procuradores e advogados”. Seria cômico, se não fosse trágico.
As afirmações do Ministro da Justiça desafiam a inteligência da população brasileira e sugerem que a atuação conjunta de Ministério Público e Poder Judiciário para condenar alguém e providenciar sua prisão antes mesmo do trânsito em julgado da decisão seriam práticas comuns.
Essa afirmação pode soar menos grave aos ouvidos de quem embarcou na demonização de um partido ou líder político nos últimos anos. Pode até mesmo tentar ser justificada pelo argumento de que nesse caso, excepcionalmente, era o que devia ser feito, afinal de contas precisávamos acabar com a corrupção no país.
O que precisamos pensar é que, se se tratasse de extirpar a corrupção da prática política brasileira, não haveria eleitos nem protegidos. Todos seriam igualmente investigados. E mais: se há confiança nessas instituições, representantes de nosso anseio contra práticas corruptas, não haveria necessidade alguma de aconselhamento ou conluio. O Ministério Público teria feito a sua parte, e o Poder Judiciário também, cada um agindo com a lisura e a isenção que suas posições republicanas exigem.
Também não serve o argumento de que alguns réus condenados por Sergio Moro tiveram seus processos julgados em segunda instância, como é o caso do ex-Presidente Lula.
O vício insanável que contamina todo o procedimento judicial não é convalidado por se prolongar no tempo. Basta pensarmos que até mesmo em um campeonato de futebol no qual se identificasse um árbitro que agiu deliberadamente para favorecer determinado time, subvertendo as regras do jogo, e cujo resultado final fosse a vitória do time beneficiado, teria de ser totalmente anulado. Ainda que algumas partidas tivessem sido apitadas por árbitros idôneos, a subversão das regras e a prova de promiscuidade entre árbitro e determinado time de futebol teria como resultado inevitável a anulação de todo o torneio.
Em um procedimento judicial não pode ser diferente. Pelo contrário, as graves consequências para a vida de alguém processado e condenado penalmente exigem o respeito incondicional às garantias previstas em nossa Constituição, claramente violadas no âmbito da operação Lava Jato.
No caso do ex-Presidente Lula não é apenas a sua vida pessoal que está em jogo. As denúncias vindas a público tornam evidente a contaminação, inclusive, do pleito eleitoral ocorrido em 2018. Lula foi preso quando contava com a maioria absoluta das intenções de voto e foi impedido de concorrer à Presidência da República em razão de procedimentos que, como agora fartamente comprovado, estão eivados de vícios insanáveis.
Sergio Moro não apenas sentenciou Lula em tempo recorde, após determinar a conduta do Ministério Público, como também retirou o sigilo do primeiro anexo da delação premiada do ex-ministro Antonio Palocci a seis dias do primeiro turno das eleições.
Após a sentença e a segregação do candidato favorito para o pleito eleitoral – enquanto ainda atuava como juiz do feito – esse mesmo agente público recebeu oferta para exercício de cargo na cúpula do Poder Executivo, por parte do candidato diretamente beneficiado com a prisão, decretada antes mesmo do trânsito em julgado do processo penal.
Para perceber o quanto qualquer linha de argumentação que de algum modo justifique a conduta de Sergio Moro fracassa diante dos fatos já noticiados e quão injustificável foi o comportamento ironicamente premiado com o cargo público de Ministro da Justiça, basta pensarmos em um juiz de vara de família que, em caso de separação com filhos menores, combinasse com uma das partes as estratégias e os ritmos do processo, com a finalidade de conceder a guarda das crianças apenas a um dos cônjuges, impedindo o outro, inclusive, de convívio com os filhos.
O mesmo exemplo pode ser dado em relação a quaisquer outros casos submetidos ao Poder Judiciário, não importa. O que Sergio Moro afirmou ao Senado Federal é que tais condutas são normais. Ou seja, que não há isenção ou imparcialidade nos julgamentos, comprometendo com isso a conduta de todos os juristas.
Se admitirmos que é regular a conduta evidenciada nos diálogos que se tornaram públicos, já não teremos mais juízes e sim inquisidores. Aliás, é bom que se diga, já não teremos mais função para órgãos como o CNJ, nem poderemos mais invocar o código de ética ou os direitos fundamentais previstos em nossa Constituição. E isso não valerá apenas para os inimigos de ocasião. Terá que valer para todas as pessoas sujeitas a um procedimento judicial. O resultado, é fácil perceber, será o completo falimento do nosso sistema jurídico.
Ora, não há devido processo legal quando uma das partes tem acordo com o órgão julgador, acerca dos passos a serem dados durante o procedimento judicial e, sobretudo, acerca do resultado do processo.
A realidade das denúncias realizadas nos últimos dias pelo site The Intercept Brasil não permite qualquer contemporização com as práticas espúrias adotadas no caso da operação Lava Jato.
Conforme nota emitida pela AJD – Associação Juízes para a Democracia, a tentativa do Ministro da Justiça de emprestar ares de normalidade para atitudes completamente dissociadas do que estabelece o Código de Ética da Magistratura, ofende toda a magistratura que observa padrões lícitos de conduta em suas atividades jurisdicionais. Aliás, ofende também a advocacia, pois se se trata de conduta comum, estão todos necessariamente nela implicados.
Ocorre que as declarações do Ministro não refletem a realidade. Ao contrário, certamente se algum outro juiz ou juíza tivesse agido do mesmo modo, certamente já teria sido alvo de investigação disciplinar e punição.
A forma peculiar de compreender e praticar o exercício da função judicante, pelo atual Ministro da Justiça, fica ainda mais clara se lembrarmos o caso de Rogerio Favreto, desembargador do TRF4 que, durante seu plantão, proferiu decisão fundamentada determinando a soltura do ex-Presidente Lula.
Aliás, esse exemplo é emblemático também por revelar o verdadeiro objetivo da operação Lava Jato e até que ponto os agentes públicos nela envolvidos estavam dispostos a ir, ignorando os procedimentos legais, para conseguir o objetivo final de intervir no resultado das eleições presidenciais.
O desembargador Rogério Favreto não apenas foi “desautorizado” pelo então juiz Sergio Moro, que mesmo em férias proferiu decisão impedindo a libertação, como também é alvo de processo, pela suspeita de que “tenha participado de “ato orquestrado” envolvendo parlamentares petistas”. Favreto foi investigado, a procura de qualquer informação ou mensagem que indicasse acordo com os defensores de Lula, para a interposição do habeas e a prolação da decisão. Ainda que nada tenha sido encontrado, a Procuradora Geral da República Raquel Dodge instaurou inquérito.
Enquanto isso, Sergio Moro teve 34 processos ajuizados contra ele, arquivados pelo CNJ. Um recente pedido de providências, referindo os fatos de que em março de 2016, Sergio Moro divulgou áudios fruto de interceptação telefônica do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva com a finalidade de interferir politicamente no país; em julho de 2016, agiu no período de férias, contra a ordem de um desembargador, para invalidar um habeas corpus que havia determinado a soltura de Lula; e ainda deu publicidade a um termo de depoimento sigiloso da delação do ex-ministro Antonio Palocci em meio ao período eleitoral, também foi arquivado, sob a alegação de que as acusações de parcialidade eram genéricas. Não há mais como sustentar tal ponto de vista.
O conteúdo já revelado das conversas entre Sérgio Moro e os procuradores compromete completamente a validade da operação Lava Jato e dos processos que dela resultaram, revela o caráter sectário e político das perseguições empreendidas sob o falso manto do combate às corrupção e torna clara a ilicitude das prisões que daí derivaram. O que é ainda mais grave: compromete a lisura do processo eleitoral levado a cabo no último ano.
Ora, a defesa de um Estado Democrático de Direito em que as regras processuais sejam devidamente observadas pelos agentes políticos responsáveis por efetivá-las não é algo que atenda aos interesses dos juízes. Antes, é condição de possibilidade de cidadania para todas e todos.
A imprensa internacional vem há tempo denunciando o fato de que, a exemplo do que já ocorreu em outros países e também em nossa história recente, o discurso do combate à corrupção tem sido utilizado para retirar pessoas do poder, para definir pleitos eleitorais e eleger bodes expiatórios. Essa denúncia agora está balizada por provas, cujo conteúdo, é bom que se diga, não foi desmentido por seus interlocutores.
Não é mais possível, portanto, seguir fingindo que nada de grave está ocorrendo em nosso país. Nem admitir que Sérgio Moro, que renegou a magistratura exonerando-se para aderir ao quadro do novo governo, siga dizendo que procedeu dentro dos parâmetros éticos que devem orientar a conduta judicial.
A operação Lava Jato não pode ser ungida como instância superior e infensa ao ordenamento jurídico, tampouco é possível, em uma ordem democrática, admitir a existência de paladinos da justiça, para os quais as regras constituam apenas sugestões, a serem ou não observadas e distorcidas, de acordo com a finalidade que se pretende dar a determinado procedimento judicial.
A forma promíscua, sectária e ilícita com que uma mega operação foi montada para o fim de condenar determinadas pessoas e, com isso, interferir no pleito eleitoral de 2018, também se revela, de modo incontestável, pela inércia da aludida operação após a prisão do ex-Presidente Lula.
Se estamos realmente comprometidos em combater a corrupção, que seja toda a forma de corrupção, inclusive aquela pela qual são corrompidas as regras que nos garantem o convívio democrático. E nem se diga que a declaração de nulidade, ou mesmo de inexistência, de processos em que evidenciada prevaricação entre Ministério Público e Poder Judiciário, seria uma forma de “libertar corruptos”.
Aliás, para que tal argumento seja válido, precisamos antes de tudo definir de que corrupção estamos falando. Não é menos corrupto quem corrompe as regras processuais para atingir uma finalidade que serve a sua vontade pessoal. O fato é que, de qualquer modo, a declaração de nulidade ou mesmo inexistência de atos processuais não exime ninguém de se sujeitar a um processo penal.
O que não é admissível é que cidadãos sejam submetidos a processos viciados em sua origem, nos quais os procedimentos são distorcidos para que se alcance o resultado desde o início desejado pelo juiz da causa.
Não se discute que todas as pessoas contra as quais haja prova de conduta passível de ser classificada como crime devam se sujeitar a um processo. O que se exige, em um Estado Democrático de Direito, é que elas se sujeitem ao devido processo legal, na forma da Constituição, com garantia de ampla defesa, verdadeiro contraditório e, sobretudo, com garantia da imparcialidade do Poder Judiciário.
Essa é uma importante conquista da modernidade. Os processos inquisitórios nos quais a mesma pessoa assumia a função de acusar e julgar não cabem em um contexto de Estado Democrático de Direito.
É preciso que retomemos a seriedade na prática e no discurso, sob pena de comprometermos definitivamente a frágil democracia construída no país a partir da década de 1980. E isso não serve apenas para os agentes envolvidos nas conversas tornadas públicas pelo The Intercept. Serve para qualquer agente público que subverta a ordem jurídica para alcançar interesses espúrios.
É urgente, portanto, a declaração de nulidade, ou mesmo de inexistência, dos processos deflagrados pela operação Lava Jato; a soltura imediata das pessoas presas em razão desses procedimentos, bem como a nulidade do pleito eleitoral realizado sem a observância das regras constitucionalmente estabelecidas.
E, se Sergio Moro tiver ainda algum compromisso com a moralidade que tanto apregoa, deverá ter a decência de renunciar ao cargo de Ministro da Justiça.
Valdete Souto Severo é Presidenta da AJD – Associação Juízes para a Democracia. Diretora e Professora da FEMARGS – Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do RS; Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP e Juíza do Trabalho.
Fonte: Carta Capital