Em 17 de março, quando a epidemia do novo coronavírus estava em um estágio inicial no Brasil, a ONU Mulheres Américas e Caribe divulgou um documento alertando que as medidas de isolamento necessárias para o enfrentamento do vírus poderiam resultar em aumento de casos de violência doméstica.
Na ocasião, a entidade divulgou um documento com 14 recomendações para autoridades nacionais e locais adotarem no âmbito das ações de combate à pandemia como forma de minimizar o impacto sobre as mulheres. O órgão alertava, na época, que as trabalhadoras do setor de saúde, trabalhadoras domésticas, mulheres na economia informal, migrantes, refugiadas e mulheres em situação de violência são alguns dos segmentos da sociedade mais expostos aos impactos da covid-19. Na mesma linha, o Instituto Maria da Penha divulgou nesta semana um vídeo em que alerta que a violência doméstica teve um aumento de até 50% durante o período de confinamento, com o objetivo de incentivar as mulheres em situação de violência a procurarem as autoridades e denunciarem os agressores.
No Rio Grande do Sul, o primeiro balanço de dados de criminalidade da Secretaria de Segurança Pública (SSP) que levou em conta o período da quarentena foi divulgado em abril, com os dados referentes a março. Na ocasião, o número de feminicídios permaneceu estável em relação ao ano anterior e foi registrada queda nos demais crimes cometidos contra as mulheres. No entanto, com a divulgação dos indicadores de criminalidade referentes ao mês de abril nesta quinta-feira (14), o cenário mudou.
Entre todos os indicadores de criminalidade, o único que teve aumento expressivo foi o de feminicídios. Dez mulheres foram assassinadas por motivações de gênero no Estado no mês passado, quatro a mais do que no mesmo período de 2019, o que representa uma alta de 66%. Nenhuma das 10 vítimas havia feito registro de ocorrência anterior.
O caso de maior repercussão no período foi o assassinato da advogada Maria Elizabeth Pereira, 65 anos, que foi morta com um tiro nas costas no dia 17 de abril, em Porto Alegre. O principal suspeito do crime é o namorado dela, um policial militar da reserva. Ela foi morta em casa e atingida por um disparo quando tentava fugir do agressor.
Para o governo do Estado, não é possível inferir que o aumento dos feminicídios em abril seja influenciado pelas medidas de distanciamento social implementadas para o enfrentamento do coronavírus, porque já havia uma tendência de alta nos meses de janeiro e fevereiro, antes do início das restrições. Desde janeiro, o Estado já registra 36 feminicídios em 2020, o que representa 71,4% a mais do que os 21 registrados no mesmo período de 2019.
A SSP informou ainda que os demais indicadores de violência contra a mulher reduziram em abril. As ameaças passaram de 3.085 em 2019 para 2.026 no último mês (-34,3%), as lesões corporais caíram de 1.719 para 1.259 (-26,8%), os estupros diminuíram de 107 para 78 (-27,1%) e as tentativas de feminicídios reduziram de 37 para 18 (-51,4%). No entanto, a própria pasta reconhece a possibilidade de aumento da subnotificação desses indicadores pelo medo das vítimas em um momento em que elas convivem mais com parceiros agressores durante o isolamento.
Para Ariane Leitão, advogada a coordenadora da Força-Tarefa de Combate aos Feminicídios no RS, o aumento já era esperado e pode sim ser relacionado ao isolamento. “No momento em que as mulheres têm menos condições de denunciar, como é o caso da pandemia, a possibilidade de ocorrer o feminicídio cresce”, diz.
Suelen Ayres Gonçalves, uma das pesquisadoras responsáveis pelo Atlas do Feminicídio, destaca também que o número de casos de feminicídios é um indicador de que os demais crimes estão subnotificados no período de quarentena, uma vez que o assassinato é a “ponta do iceberg” da violência contra as mulheres. “A gente percebe, pela literatura, que o feminicídio é o ponto final de um ciclo de violência que essa mulher está inserida”, diz. “No período anterior à pandemia, já era complexo para as mulheres acessarem esses espaços. No contexto da pandemia, pelos dados, fica nítido que houve uma diminuição de casos de estupro e outros tipos de violações, que se justifica pelo não acesso das mulheres a uma rede que poderia pensar esses crimes”.
Antes da divulgação dos dados oficiais, Suelen e a colega com quem divide a coordenação do Atlas realizavam uma clippagem diária em jornais de alcance estadual e em veículos regionais de casos registrados de violência contra as mulheres. O levantamento encontrou 11 casos de feminicídio em abril. Um a mais do que a SSP. Ela afirma que o Atlas registra casos de feminicídios desde 2012, quando a SSP passou a divulgar dados separados de feminicídios, e que, se os números de 2020 mantiverem a mesma proporção dos quatro primeiros meses do ano, 2020 poderá ter os maiores índices desde então.
Suelen diz que também é preciso problematizar o tipo de feminicídio que está sendo registrado. “Acredito que estamos diante, majoritariamente, de feminicídios íntimos, em que o companheiro ou o ex-companheiro é o autor. E nós não temos a dimensão dos feminicídios não íntimos, que são outras pessoas que praticam o crime. Até por conta desse isolamento social, as mulheres não estão mais vulneráveis na rua a outros caos em que o crime não é cometido pelo seu companheiro ou ex-companheiro, é outro homem que vitima essa mulher. Possivelmente, esses diminuíram, e os feminicídios íntimos ampliaram, e ampliaram por conta dessa cultura machista, misógina, que fica mais potente num espaço de isolamento, num espaço de crise econômica forte. Como romper com um ciclo de violência se, por exemplo, a autonomia financeira está comprometida? Como sair dessa casa onde vive essa situação de violência se não há outro espaço onde pode viver com dignidade com os filhos?”, questiona.
A pesquisadora complementa que a situação da queda de renda torna mais difícil para mulheres romper com o ciclo de violência e que, neste sentido, se fariam ainda mais urgentes políticas públicas mais efetivas para garantir a segurança econômica e financeira das mulheres. No entanto, destaca que o que se vê é a demora no pagamento do auxílio emergencial, o que torna as mulheres mais vulneráveis.
As recomendações da ONU Mulheres para o combate à violência contra as mulheres incluíram: garantir a disponibilidade de dados desagregados por sexo e análise de gênero; envolver as mulheres em todas as fases da resposta e nas tomadas de decisão nacionais e locais; garantir que as necessidades imediatas das mulheres que trabalham no setor da saúde sejam atendidas; promover consultas diretas com organizações de mulheres; tomar medidas para aliviar a carga das estruturas de atenção primária à saúde e garantir o acesso aos serviços de saúde sexual e reprodutiva, incluindo a atenção pré-natal e pós-natal; adotar medidas de compensação direta para trabalhadoras informais, incluindo trabalhadoras da saúde, trabalhadoras domésticas, migrantes e dos setores mais afetados pela pandemia; adotar medidas que permitam garantir o acesso das mulheres migrantes e refugiadas aos serviços de saúde, emprego, alimentação e informação; garantir a continuidade dos serviços essenciais para responder à violência contra mulheres e meninas; levar em consideração as diferentes necessidades de homens e mulheres nos esforços de recuperação a médio e longo prazo; entre outras recomendações.
Para Suelen, tanto o governo federal, como os governos locais, não têm dado prioridade a medidas que atendam essa agenda proposta pela ONU. Ela destaca que o enfrentamento a esse tipo de violência hoje é feito essencialmente pelas polícias e raras políticas de abrigamento, não existindo uma rede estabelecida que a mulher possa buscar informações para acessar os sistemas de segurança e justiça. “São casos em que se houvesse uma política, um abrigamento, uma prisão em flagrante, alguma ação nesse período, as vidas seriam poupadas”, diz.
Em relação à falta de políticas públicas, Ariane Leitão destaca que, para 2020, o orçamento do governo do Estado para combate à violência contra a mulher foi de R$ 20 mil, nove vezes menor do que o orçamento de 2019 (R$ 180 mil), valor que já era considerado insuficiente. “Enquanto não tiver dinheiro para investir em políticas públicas para as mulheres, nós vamos continuar com esses números, eles não vão melhorar. As polícias atuam na consequência. A maioria das vítimas desse último mês não tinham medida protetiva. Ou seja, eram vítimas que não chegaram ao poder público”, diz. “As polícias têm feito um belo trabalho, mesmo com poucos recursos e efetivo. Só que só a polícia não resolve casos que são mais complexos”, complementa Suelen.
Ariane afirma que há uma série de projetos de lei apresentados na Assembleia Legislativa e no Congresso, um trabalho que tem sido feito pela força-tarefa, que visam qualificar o enfrentamento à violência contra a mulher. Um deles, de autoria do deputado Jeferson Fernandes (PT), propõe a ampliação de casas de abrigamento de vítimas durante o período de isolamento. “É uma necessidade emergencial do Estado organizar esse abrigamento como alternativa no enfrentamento ao feminicídio. Porque, se elas não têm para onde ir, elas vão morrer. E nós sabemos que as casas abrigos, por exemplo, em Porto Alegre, já ultrapassaram a sua capacidade. E no interior é a mesma coisa”.
Ariane diz ainda que, antes da chegada do coronavírus, deputadas estaduais estavam articulando a destinação de emendas orçamentárias para o combate à violência contra mulheres, mas, com a crise gerada pelo vírus, o governo decidiu destinar todos os recursos das emendas para a questão da covid-19. Ela avalia que a situação pode piorar ainda mais no futuro em razão da crise econômica e de medidas que podem ser tomadas diante da queda de arrecadação de impostos, que pode levar a um contingenciamento de recursos ainda maior para a área.
Uma possível emenda que ainda pode ser destinada para área é de autoria da deputada estadual Luciana Genro (PSOL) e prevê o repasse de R$ 250 mil para a Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos utilizar na compra de vagas em instituições que possam acolher as vítimas e seus filhos. A compra ocorreria por via edital e priorizaria municípios que não possuem casas-abrigo hoje — o Estado conta com apenas 14 instituições voltadas para o abrigamento de vítimas de violência. A emenda aguarda aprovação da Casa Civil. “A violência doméstica aumentou muito com o isolamento social, pois as mulheres que antes já eram agredidas passaram a viver confinadas em casa com seus agressores. E a falta de vagas na rede de acolhimento, que já era um problema, se tornou ainda mais grave. Por isso propus essa emenda e dialoguei com o governo para que ela seja executada”, diz Luciana Genro.
Diretora da Divisão de Proteção e Atendimento à Mulher, a delegada Tatiana Bastos diz que, diante da preocupação com a possibilidade do aumento desse tipo de violência durante a quarentena, foram disponibilizados no dia 15 de março novos canais digitais para que mulheres possam fazer denúncias e registros. “Uma delas é a delegacia online, que adquiriu essa nova funcionalidade. É possível fazer ocorrências da Lei Maria da Penha desde o dia 15 de março pela internet, desde que ela não precise ou não queira medida protetiva de urgência. Se ela precisar, aí tem que ser realmente presencial. Tem o WhatsApp da Polícia Civil, que é o 98444 0606, também tanto para denúncia da própria vítima, pedindo ajuda, avisando que precisa fazer uma ocorrência, pedindo orientação. Não é uma central de emergência, mas pode notificar o fato criminoso, bem como pode ser usado por qualquer pessoa, vizinhos, familiares, enfim, qualquer pessoa que tenha conhecimento”, diz.
Em conversa com o Sul21 antes da divulgação dos dados referentes a abril, Tatiana já reconhecia a possibilidade dos casos de feminicídio aumentarem no período e de aumento da subnotificação. “Claro que a gente tem essa sensação de que as violências vão se agravar nesse período. Não só pelo aumento da convivência familiar, entre vítima e agressor, mas também porque a gente sabe que todas as emoções, todos estão com o psicológico muito mais abalado, as tensões do cotidiano, também com a convivência, vão aumentando e a tendência é que essa violência se intensifique. Mas a gente também sempre tem dito que ninguém se torna um agressor por convivência aumentada. A gente está falando de situações que já existiam, de contextos de violência que já existiam, e que podem agora estar ou se intensificando ou agravando no tipo de violência”, diz.
Por outro lado, pontua que os indicadores de violência contra as mulheres vêm em queda há 3 anos e que a Polícia Civil tem tentado ao máximo minimizar a subnotificação. Afirma ainda que a Polícia Civil tem trabalhado mais com a busca ativa. “Se essa mulher sinalizar por algum canal, pelo Disque 180, pelo Disque 181 ou pelo Whatsapp, que ela quer a protetiva e não tem como sair de casa, a gente vai até ela. Ela pode fazer online se não precisa de medida protetiva. Mas vamos dizer que ela não tenha como sair e quer a medida, aí ela vai ter que sinalizar por algum canal de denúncia”. Ela pontua ainda que todas as práticas de polícia judiciária estão funcionando normalmente e destaca que há um esforço sendo feito para que as mulheres sejam sempre encaminhadas para um local seguro, mesmo reconhecendo que os serviços foram prejudicados pela pandemia. “Nem sempre o local seguro é uma casa abrigo, às vezes é a casa de um familiar. A gente continua fazendo isso. A gente vai sempre fazer os encaminhamentos necessários, ainda que a rede, sim, esteja com os seus serviços bastante comprometidos nesse período”, diz.
A SSP destaca que, no Rio Grande do Sul, as vítimas podem entrar em contato com as autoridades pelo Disque 180, pelo Disque Denúncia 181, pelo número de WhatsApp (51) 9.8444.0606, pela denúncia digital no site da SSP e pelo 190 da Brigada Militar.
Fonte: Sul 21