Ana Lúcia Keunecke, da Rede Feminista de Juristas, avalia que o saldo das discussões foi positivo
O Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu, na noite desta segunda-feira (6), a segunda e última audiência pública sobre a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. A primeira audiência ocorreu na última sexta-feira (3).
As sessões de discussão no Supremo são parte do processo de julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 442, protocolada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) em 2017, que pede a exclusão dos artigos 124 e 126 do Código Penal, referentes ao crime de interrupção da gravidez para as mulheres que abortam e para quem as ajude no processo. As audiências públicas foram convocadas por Rosa Weber, relatora do processo.
Agora, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, deve se manifestar em até dez dias sobre o tema. Após o parecer de Dodge, Weber deverá submeter a ADPF ao plenário do STF, mas não há data ou tempo previsto para esta votação final. No Brasil, o procedimento abortivo não é considerado crime quando a gravidez é resultado de estupro, quando há risco de vida para a mulher e em casos de anencefalia.
Discussão
As audiências contaram com argumentos científicos, médicos, políticos, filosóficos e religiosos. Além das premissas constitucionais relembradas pelos favoráveis à descriminalização, o dia de hoje foi marcado por reflexões teológicas. No total, 52 entidades, com posições contrárias ou favoráveis, foram ouvidas ao longo dos dois dias de audiências. Desse número, 11 organizações eram representantes religiosas.
A argumentação de Lusmarina Garcia, pastora evangélica favorável à descriminalização, foi aplaudida de pé. Ao defender o Estado laico, a representante do Instituto de Estudos da Religião disse que há uma forte motivação patriarcal por trás dos argumentos contrários a descriminalização do aborto.
“Há séculos o cristianismo patriarcalizado é o responsável por penalizar e legitimar a morte de mulheres”, afirmou Lusmarina, complementando que as mulheres que abortam são mulheres comuns e de fé, e não deveriam ser criminalizadas em hipótese alguma. “Um Estado laico não é um Estado ateu, mas um estado que não confunde os conceitos de crime e de pecado, e nem se orienta por sanções religiosas”, destacou.
Números
Dados endossam a fala da pastora luterana. Segundo a Pesquisa Nacional do Aborto (PNA), realizada em 2016 pelo Instituto Anis, 56% das mulheres que abortam são católicas e 25% são protestantes ou evangélicas. Além disso, 67% já tinha filhos. O estudo também mostrou que o índice de aborto provocado por mulheres negras é 3,5% maior do que o de mulheres brancas, ou seja, o índice de mortes decorrentes de abortos clandestinos também é maior entre as mulheres negras.
Entre as dezenas de entidades que participaram das audiências, estão a Defensoria Pública da União, Defensoria Pública do Estado de São Paulo, Conselho Nacional de Direitos Humanos, Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, a ONG internacional Human Rights Watch, o grupo Católicas pelo Direito de Decidir e o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).
A argentina Juana Magdalena Kweitel, diretora da organização não-governamental Conectas Direitos Humanos, destacou em sua fala a redução do número de mortes de mulheres por aborto inseguro devido à descriminalização.
Magdalena também comemorou o avanço do debate sobre a questão no seu país. No mês de junho, a Câmara dos Deputados na Argentina votou a favor da legalização do aborto até a 14ª semana de gestação, após um movimento que mobilizou centenas de milhares de argentinas. A votação no Senado argentino acontece na próximo quarta-feira, dia 8 de agosto.
“Estamos sim falando da proteção da vida. Da vida e da liberdade dessas mulheres. Das mulheres mais vulneráveis, porque as que mais morrem por aborto inseguro são as mulheres negras, jovens e pobres”, frisou Magdalena.
Saldo positivo
Ana Lúcia Keunecke, advogada de direitos humanos e integrante da Rede Feminista de Juristas (DeFEMde), avalia que o saldo das audiências foi positivo para as mulheres e para a sociedade, por permitir que a temática fosse discutida publicamente.
“Uma a cada cinco mulheres no Brasil até os 40 anos já passou por aborto. Todo mundo conhece alguém que fez aborto. O que nós estamos discutindo é o acesso a um aborto seguro para que mulheres não morram mais. Esse é o maior argumento apresentado por todos, pela grande maioria dos participantes da audiência”, afirmou Keunecke em entrevista ao Brasil de Fato.
A advogada critica os argumentos contrários à descriminalização apresentados na audiência. “Nós vimos shows, performances. Vimos pessoas sem base de argumentos científicos para contrapor tudo que foi trazido mostrando que a questão do aborto é um problema de saúde pública e de mortalidade das mulheres”, afirma.
“Fala-se de moral e de controle do corpo da mulher. Teve uma palestrante que chegou ao absurdo de falar que, se permitir a ocorrência legal do aborto, nós vamos ter um dano na previdência porque o Brasil vai ter um decréscimo de natalidade. A mulher não tem direito de escolha. Vai ter que parir e ter filhos para poder alimentar o sistema previdenciário. São argumentos que não trazem em si razões jurídicas ou dados científicos e estatísticos para comprovar o que estavam alegando”, aponta Ana Lúcia.
A integrante do DeFEMde, rede que participou do primeiro dia de audiência, ressalta que independente do entendimento do STF, o Brasil já é signatário de tratados internacionais que determinam autonomia da mulher e o direito de escolha de seus processos reprodutivos, como, por exemplo, a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (CIPD), que aconteceu no Cairo, em 1994, e afirmou que “os direitos humanos da mulher e da menina são parte inalienável, integral e indivisível dos direitos humanos universais.”
Ratificada pelo Brasil, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, conhecida como a “Convenção do Pará”, é outro exemplo. De acordo com a Convenção, “a violência contra a mulher constitui violação dos direitos humanos e liberdades fundamentais e limita total ou parcialmente a observância, gozo e exercício de tais direitos e liberdades”.
O artigo 1 do tratado define que a violência contra a mulher é qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico, tanto na esfera pública como na esfera privada. Já o segundo artigo da Convenção do Pará, discorre sobre a violência ocorrida em serviços de saúde, muito recorrente durante a prática de abortos clandestinos.
“Só precisamos efetivar e cumprir os direitos humanos. Foi um passo importante para o Brasil. Esperamos que o STF compreenda que é sua obrigação cumprir os tratados internacionais”, finaliza Keunecke.
Fonte: Brasil de Fato
Assine o abaixo assinado: