Pré-candidata à Prefeitura de BH pelo PSOL, Áurea Carolina conta com busca de diálogo entre partidos
Nossa terceira entrevista da série com os candidatos à Prefeitura de Belo Horizonte é com Áurea Carolina (Psol), única mulher na disputa. Já conversamos com Wadson Ribeiro (PCdoB) e Nilmário Miranda (PT). Logo publicaremos a reportagem com Leonardo Péricles (UP) e Wanderson Rocha (PSTU).
Áurea Carolina é socióloga e mestra em ciência política. Ela foi a vereadora mais votada de Belo Horizonte nas eleições de 2016 e a mulher com maior número de votos da história da cidade. Em 2018, foi eleita deputada federal, conquistando a quinta maior votação do estado.
Brasil de Fato – Você se lança em uma candidatura à prefeitura em tempos obscuros. Com um governo federal e um governo estadual de linha neoliberal e fundamentalista, como a prefeitura pode ter autonomia para barrar retrocessos?
Áurea Carolina – A prefeitura tem um papel fundamental na efetivação dos direitos da população porque é a instância mais próxima das pessoas e têm competência para executar os serviços que vão fazer o atendimento direto da cidadania. O Sistema Único de Saúde [SUS], políticas educacionais, Sistema Único de Assistência Social [SUAS], as políticas culturais, políticas socioambientais e de planejamento urbano.
Todas elas de competência da prefeitura, nessa conexão direta com as pessoas, podem significar uma defesa incondicional dos fundamentos democráticos e ir além, significar uma expansão na perspectiva de proteção à vida, de participação popular, de diálogo direto com a cidadania.
A gente já tem um marco de políticas públicas previstas na Constituição Federal, que hoje está sendo ameaçada, desconsiderada e destruída pelo desgoverno Bolsonaro e pelo processo recente de desmonte das conquistas democráticas. A gente tem na política local condições de tornar isso mais acessível, depende de uma disposição política. Depende de uma reorientação, uma inversão de prioridades para que as maiorias sociais sejam contempladas e sejam agentes principais da atenção do governo.
É claro que a gente vive um processo muito violento de desinvestimento nas políticas sociais, resultado da agenda econômica regressiva que foi implementada nos últimos anos e pelo desgoverno Bolsonaro. E a Emenda Constitucional 95 limita muito a capacidade de financiamento das políticas públicas na ponta. No entanto, os municípios podem dar uma resposta e Belo Horizonte tem sim condição de, com sua economia atual, com o seu funcionamento, fazer esse investimento como prioridade, apesar da descompensação que existe atualmente no pacto federativo e das limitações que a emenda significa.
Eu vejo que tendo uma parceria direta com a população, com os movimentos da sociedade civil, a gente pode democratizar muito o que já existe e implementar inovações. Belo Horizonte, por exemplo, pode ter uma postura muito mais arrojada na área socioambiental. Essa é uma das áreas que a gente tem como prioridade.
A prefeitura é uma ferramenta imprescindível para ousar uma outra política possível, de conexão com essa vitalidade da sociedade e de excelência na gestão pública.
A pandemia veio agora e está aprofundando crises e desigualdades que já existiam, e é provável que os cofres públicos estejam quebrados por algum tempo. Quais ações você pensa para contornar esse cenário que se apresenta?
Nós estamos construindo progressivamente as diretrizes que vamos defender pelo Psol e também junto à plataforma Cidades pela Democracia, que aglutina vários municípios, partidos e movimentos progressistas em Belo Horizonte. Certamente, desse acúmulo, virão contribuições para pensarmos essa saída pós pandemia.
Mas, desde já, eu acho que é fundamental pensar em processos de auto-organização comunitária nos territórios, que possam ser apoiados pelas políticas públicas para geração de renda, para dinamização econômica das comunidades, para proteção às populações que mais vulneráveis. A gente tem muitos experimentos da economia popular e solidária, do cooperativismo, iniciativas do empreendedorismo nas favelas e nas periferias.
Tudo isso pode ser fomentado por uma decisão política. Tendo um programa, uma visão de cidade em que tudo isso é considerado com muita força, a gente pode sim ter um processo de recuperação econômica e principalmente construir uma economia voltada para o bem viver dessas maiorias sociais.
A economia precisa estar a serviço da população, precisa ser de inclusão, de enfrentamento às desigualdades, de gênero, raça, territorial. A gente precisa que Belo Horizonte seja um polo de dinamização econômica, incluindo também a Região Metropolitana. BH precisa ter um papel muito forte com as cidades do entorno, que geralmente têm uma condição muito mais precarizada, populações excluídas, que trabalham em Belo Horizonte, mas não usufruem dos direitos na plenitude, como poderiam usufruir na capital.
A economia no pós pandemia precisa ter uma orientação de maior proteção social. A renda básica emergencial, que foi uma conquista a partir da mobilização da sociedade civil e do empenho sobretudo da oposição no Congresso Nacional, é já um apontamento de como nós precisamos criar condições para que a população possa ter uma qualidade de vida minimamente decente.
Essa renda mínima é algo que precisa ser aprofundado. Precisamos estudar possibilidades de viabilizar isso em Belo Horizonte. É uma das oportunidades que a gente tem de aprender com os desafios que a pandemia nos traz, ter uma capacidade de inovação e progresso das políticas públicas.
O governo Zema já sinalizou várias privatizações e uma delas é a da Copasa. Um dos maiores lucros da companhia advém de BH e o atual prefeito já afirmou que irá retirar a capital da Copasa se ela for privatizada. Como você vê a privatização e o que você faria nesse caso?
A privatização desses serviços essenciais é um grande equívoco. O mercado está muito mais preocupado com a rentabilidade do negócio do que com a qualidade do serviço e o enfrentamento às desigualdades. A gente precisa evidenciar a farsa que é o discurso da privatização das águas, da energia, de que isso vai ser um ganho, com melhorias na prestação do serviço e redução da tarifa.
O que as experiências internacionais demonstram é que a tendência é um encarecimento do serviço e não compromisso com uma cobertura universal, principalmente nas áreas mais empobrecidas. É papel do Estado fazer a correção de desigualdades, acolher e atender prioritariamente os grupos que estão em situação mais precarizada.
Em Belo Horizonte, a gente precisa enfrentar essa agenda neoliberal, regressiva, violenta, que é massacrante para a maioria do povo. E certamente precisamos ter uma postura firme de não permitir que esses serviços sejam desmantelados e entregues aos interesses econômicos de grupos privados.
Água é um bem fundamental, e a gente precisa inclusive avançar [na discussão]. Qual é a política de águas que nós queremos para Belo Horizonte? A gente vem de uma situação muito preocupante, com risco de desabastecimento. A segurança hídrica da capital está ameaçada e tem a ver com a mineração predatória, com o atual modelo de gestão nessa área. Sobre as enchentes, a gente precisa efetivar os mecanismos presentes no Plano Diretor para que Belo Horizonte possa ter respostas – mais sustentáveis – com a chegada de chuvas fortes, que tendem a crescer cada vez mais com a emergência climática.
É preciso pensar nos rios de BH. Qual será a perspectiva para lidar com tudo isso? Certamente não é acirrando esse modelo de concretar tudo, impermeabilizar a cidade. Temos que trabalhar com as soluções que vão permitir que Belo Horizonte tenha uma vida socioambiental de qualidade e saudável para todas as pessoas.
Existe a possibilidade de se construir uma frente de esquerda para disputar essa eleição? E após a eleição?
Tenho defendido com muito entusiasmo a criação de uma frente ampla de esquerda para as eleições de Belo Horizonte em 2020. É uma necessidade histórica que haja uma cooperação maior entre os partidos progressistas para enfrentar a ameaça do bolsonarismo, da extrema direita, dos grupos de ódio que estão se organizando cada vez mais para ocupar as instituições e que têm uma penetração na cultura política e no imaginário popular muito preocupante.
Eu avalio que uma frente ampla de esquerda pode significar uma potencialização para os partidos do nosso campo, para que possamos eleger uma bancada progressista mais forte e diversa na Câmara Municipal, para aumentar o número de cadeiras para as esquerdas. Defendo uma agenda positiva também para o reconhecimento das mulheres, da população negra, LGBTI, dos povos e comunidades tradicionais, desses grupos que são historicamente deixados à margem do sistema político do nosso país.
Eu percebo que com a mudança na legislação eleitoral, que determina o fim das coligações proporcionais e também com a cláusula de barreira – que impõe principalmente aos menores partidos a necessidade de ter um bom desempenho eleitoral desde já para vencer a cláusula de barreira em 2022 –, os partidos têm feito cálculos pragmáticos que são legítimos. Mas, não necessariamente uma dispersão das candidaturas de esquerda vai produzir um bom resultado individualmente para cada partido.
Eu tenho alertado sobre isso, e acho que a gente precisa considerar, com muita seriedade, a perspectiva de uma união no nosso campo, para alavancar as candidaturas proporcionais nessa rede de coalizão. Nas eleições passadas, partidos que investiram em candidaturas próprias, não necessariamente tiveram bons resultados para a Câmara Municipal, e ainda não existia o veto às coligações proporcionais.
A gente precisa acreditar com muita força na capacidade de fazer uma história coletiva poderosa, encantadora, que mobilize um grande espectro da sociedade de Belo Horizonte. E fazer um debate alternativo sobre a gestão do atual prefeito Alexandre Kalil, apresentando as nossas propostas, críticas, reconhecendo os acertos dessa gestão, mas também demonstrando que nós temos uma grande diferença e uma visão de que essa gestão foi limitada e que a gente pode muito mais.
Quanto mais coesão no nosso campo, mais possibilidade de ter um alcance maior. Defendo isso como um dever da nossa geração política, que tem aprendido nesse encontro entre as lutas e a institucionalidade como é possível sim produzir uma política emancipatória, de reversão desse quadro tão terrível que a gente tem agora no Brasil. O bolsonarismo não é uma nuvem passageira. O bolsonarismo é uma ameaça que tende a se aprofundar na cultura política e nas instituições se nós não tivermos uma resposta muito consequente do campo progressista, um contraponto viável e que possa neutralizar essa investida violenta.
Não é só da minha vontade, como é da vontade do meu partido, o Psol. A gente tem trabalhado nacionalmente em várias cidades nesse diálogo. O Psol tem apoiado candidaturas do PT em algumas cidades, e tem recebido apoio do PT em outras cidades. Nós esperamos espelhar essa construção tão positiva, tão generosa em Belo Horizonte. Por isso tenho dialogado muito de perto com várias pessoas ligadas ao PT, ligadas ao PCdoB, PCB, Unidade Popular e sim, esperamos que haja essa disposição para uma confluência eleitoral, porque nas lutas a gente já se encontra. A gente já constrói muita coisa conjuntamente, e está na hora da gente levar isso [a unidade] para o processo de disputa institucional, com ganhos coletivos, com compartilhamento do poder. É nisso que eu acredito.
Não podemos vacilar nessa hora, não podemos ter uma bancada de esquerda reduzida na Câmara Municipal, porque os bolsonaristas estão cada vez mais tomando esse espaço. Seria desastroso para Belo Horizonte a gente ter uma legislatura novamente dominada por pessoas fundamentalistas e que não têm compromisso com a democracia.
Qual o impacto da pandemia na campanha eleitoral? Como pretende ou está contornando as consequências de não poder realizar atividades presenciais?
Nós precisamos agora lidar com outras formas de mobilização e de diálogo com a população. Existe o imperativo de aprofundar o uso das plataformas digitais para ter essa conexão, mas isso traz também limitações. Boa parte da população não tem acesso a essas ferramentas e não está incluída digitalmente. É preciso investigar como alcançar as pessoas nessas redes de apoio que nós temos e que são diversas.
A pandemia nos impõe a necessidade do isolamento social e é algo que deve ser preservado, porque é uma questão de proteção à vida de todos nós. Ainda desconhecemos muito sobre o que acontecerá quando a curva do contágio e das mortes pela covid-19 começar a descender. Não podemos restabelecer encontros presenciais na dinâmica anterior. Aquele velho normal não nos serve. Vamos precisar de outras formas de convívio no espaço público.
Temos que ter atenção e preocupação muito presentes para fazer campanhas que consigam superar barreiras que atingem principalmente figuras de esquerda com o meu perfil: uma mulher negra, periférica. O sistema político como é já cria muitas barreiras para que possamos ter um bom desempenho eleitoral, então é preciso muita sagacidade, um ‘aproveitamento ótimo’ do que existe à nossa disposição, principalmente as redes sociais.
Vai ser uma campanha muito centrada, mais do que nunca, na comunicação. Na nossa capacidade de expressar nossas ideias, narrativas, imagens que queremos apresentar publicamente. Nossas campanhas são sempre modestas, não levam fortunas como as de políticos tradicionais de grandes partidos. Temos que fazer o possível com os recursos que temos disponíveis.
Faça uma breve avaliação do governo Kalil.
O governo Kalil se empenhou na aprovação do Plano Diretor, isso precisa ser reconhecido. O Plano Diretor foi construído com ampla participação popular e estava há anos estagnado na Câmara Municipal. A gestão trabalhou para que o plano fosse aprovado preservando a maior parte dos acúmulos que vieram da sociedade civil. Isso é uma conquista inegável e duradoura para Belo Horizonte. Claro que vários mecanismos precisam ainda ser efetivados para que a gente tenha melhorias na mobilidade urbana, na moradia, entre outras áreas.
O governo Kalil também acertou muito nas políticas culturais. Recriou a Secretaria Municipal de Cultura, fez uma correção de rumo nessa área que vinha sendo desmantelada na gestão do ex-prefeito Marcio Lacerda. A gente precisa avançar também e aumentar o investimento e a capilaridade em defesa da cultura viva.
Porém, o Kalil declarou guerra, uma guerra campal, aos trabalhadores informais logo no início da sua administração com a retirada truculenta dos ambulantes do hipercentro. BH amargou tristemente esse capítulo de violência. Precisamos fazer uma política de correção dessa economia informal em diálogo profundo com trabalhadores e trabalhadoras que estão na rua. Na rua são várias as formas de trabalho, e nesse momento de crise econômica, de recessão, a gente não pode deixar de considerar essa necessidade de trabalho. As pessoas estão na rua trabalhando porque precisam e o modelo dos shoppings populares é fracassado. É preciso criar alternativas de feiras populares bem fiscalizadas e regulamentadas.
O Kalil não enfrentou o domínio dos empresários na mobilidade urbana. Precisamos revisar o contrato que regula o transporte público em Belo Horizonte para que ele seja, de fato, um direito social, com uma qualidade que não temos. Podemos discutir que BH não avançou na questão da mobilidade também com ciclovias e ciclo faixas, não houve investimento significativo nos últimos anos.
Destacaria também a questão da participação popular. Há uma regressão muito grande nessa área em Belo Horizonte e nós precisamos retomar mecanismos de construção direta com a população para resolver os problemas que afetam a sua vida cotidiana, e pensar como aprimorar a prestação dos serviços, da saúde, da educação, etc.
Belo Horizonte precisa aumentar a cobertura de serviços para inclusão da juventude, fortalece-la nos territórios e proteger a vida dos jovens, principalmente da juventude negra e periférica. Precisa ter política de proximidade, em que as linguagens e as expressões culturais da juventude são respeitadas, valorizadas, consideradas potência.
A gente precisa ter uma política que dinamize a ocupação do espaço público, de desburocratizar a realização de eventos socioculturais de pequeno porte e de iniciativa autônoma das comunidades. A gente precisa avançar nas políticas de inclusão das mulheres, da população negra, dos povos e comunidades tradicionais, da comunidade indígena. Tudo isso ficou muito aquém. Essas áreas precisam ser muito mais do que articuladoras de políticas públicas, elas precisam liderar investimentos para que BH seja uma cidade para as mulheres, para a população negra, para a comunidade LGBTI. Ela deve ser muito mais acolhedora e segura para esses grupos.
Precisamos também avançar nas políticas de prevenção à criminalidade, na efetivação dos direitos humanos na atuação da Guarda Municipal, para que ela possa ser valorizada e esteja em defesa da vida. Precisamos de uma política de segurança cidadã em Belo Horizonte.
Existem muitos outros exemplos do que precisa melhorar. E também é necessário reconhecer a atuação do Kalil no enfrentamento da covid-19. Ele certamente está segurando uma pressão muito grande do setor empresarial, dos comerciantes, e está correto de nesse momento não flexibilizar a abertura dos serviços porque a pandemia está longe de ser superada. Não deveria ter feito a primeira flexibilização, foi antes da hora e pode ter prolongado o tempo de fechamento de serviços, mas ele realmente está nadando contra a corrente de governos como Zema e Bolsonaro, que têm posturas genocidas, de propagação da morte.
Ao seu ver, quais são as maiores urgências de Belo Horizonte e quais são as suas principais propostas para saná-las? Você já falou muitas delas nas perguntas anteriores, né?
Quero aproveitar esse espaço para reafirmar que precisamos de um governo de ocupação popular, em que haja uma conexão muito profunda e produtiva entre a institucionalidade e a sociedade, nas suas várias formas de organização, de existência. Belo Horizonte pode ter uma gestão municipal que avance muito nas formas de efetivação da democracia e de ampliação dos limites da democracia, porque ela vai muito além de um sistema de instituições. Democracia se estabelece nas relações, na convivência com a diferença, com a diversidade.
Eu tenho sonhado com uma Belo Horizonte cada vez mais de coração aberto para essa diversidade imensa que nós temos. É uma cidade que demonstra uma vida política e cultural muito poderosa. Isso precisa ser um ativo da política municipal, da gestão da cidade. A gente tem que fazer isso em diálogo com os muitos saberes, as muitas formas de produção de conhecimento que existem na cidade. O diálogo tem que acontecer com as instituições, com as universidades, com grupos populares.
Tudo isso é a matéria prima para gente avançar num espaço de colaboração direta entre a cidadania e quem assume a liderança da política. E uma gestão que consiga o compartilhamento da gestão dos serviços.
Fonte: Brasil de Fato