Filho do ocaso do nazismo e ex-agente comunitário em favelas cariocas, o alemão Lutz Taufer indica outras pontes para o Brasil de 2018
“Eu queria ficar para sempre naquele país incrível!”, exclama o alemão Lutz Taufer a certa altura do livro autobiográfico Atravessando Fronteiras, publicado em 2017 no país natal e agora aqui, pela editora independente Autonomia Literária.
Aquele país é o Brasil, e não se trata de uma aventura turística a experiência que o europeu hoje com 74 anos viveu na América Latina entre 2002 e 2012. O subtítulo da obra, Da Guerrilha Urbana na Alemanha ao Trabalho Comunitário nas Favelas Brasileiras, desnuda uma ponte aérea improvável, entre destinos a princípio separados.
Na Alemanha, Taufer passou 20 anos encarcerado, entre 1975 e 1995, grande parte desse período em total isolamento, em regime que classifica como “prisão dentro da prisão”. Com outros cinco militantes armados da Fração do Exército Vermelho (RAF, segundo o idioma original), havia participado da ocupação da embaixada da Alemanha em Estocolmo (Suécia), que culminou na morte de dois reféns e dois guerrilheiros, ato pelo qual ele foi corresponsabilizado.
A RAF ficou mais conhecida mundo afora como grupo Baader-Meinhof, designação que Taufer, hoje conselheiro da organização alemã Serviço Mundial pela Paz, procura afastar em entrevista: “Baader-Meinhof-Bande era um termo da guerra psicológica. Bande significa quadrilha, um grupo que se junta para cometer crimes para vantagem pessoal, como roubar bancos. Mas nós agimos por motivos políticos”.
A “guerra psicológica” remete ao contexto alemão de 1968, que no livro Taufer afirma ter “cheiro de estado de exceção, de estado policial, de volta a estruturas fascistas”. O autor conta ter participado pela primeira vez de uma manifestação pública em fevereiro daquele ano, num ato contra o aumento das tarifas dos transportes públicos – talvez não seja mera coincidência qualquer coincidência na ponte Alemanha-Brasil 1968-2013.
Estudante, o autor experimentava então um início de vida que descreve com profundidade na parte inicial do livro, em meio à resistência insidiosa da influência nazista no Pós-Guerra. Narra o convívio com a persistência de suásticas, o encontro de uma foto de Hitler no cofre de uma tia, a ausência de aprendizados sobre fascismo e Holocausto na escola fundamental.
“Na Alemanha, naquela época, não houve uma revisão real do passado nazista”, ele descreve um processo histórico que, para brasileiros, poderia remeter ao pós-ditadura civil-militar de 1964. “A verdade sobre o Holocausto só entrou nas cabeças com o tribunal de Auschwitz, em 1965, 20 anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial.
Tivemos no final dos anos 1960 o chanceler Kurt Kiesinger (1966-1969), chefe do governo federal, que havia sido, já a partir de 1933, integrante fervoroso do partido nazista. Cerca de 70% dos funcionários do Ministério de Justiça eram ex-nazistas. A luta contra esse passado foi um dos pontos de partida do movimento de 1968. Para nós, era totalmente inimaginável passar a vida num país como esse.”
Na prisão, Taufer viria a se deparar com três ex-oficiais nazistas condenados, acusados de torturas e assassinatos em campos de concentração. “Para suavizar o regime de isolamento me deram a opção de assistir tevê junto com esses três nazistas em uma sala minúscula”, escreve nas memórias. Ele reavalia essa forma de tortura psicológica: “Oferecer reuniões com ex-SS de Auschwitz a um preso político e antifascista como eu é como oferecer uma alimentação à base de carne suína a um preso islâmico em Guantánamo. Naturalmente, nunca participei dessa infâmia.”
Paralelamente às agitações de 1968, o jovem Taufer trabalhava com pacientes de instituições psiquiátricas e reformatórios, na União Socialista dos Estudantes de Heidelberg, posteriormente proibida pelo governo. A militância anticapitalista, anti-imperialista e antiautoritária moldava a atuação contra um tipo de encarceramento diverso, mas antecipadora da experiência que ele conheceria na carne a seguir.
A primeira menção ao Brasil em Atravessando Fronteiras refere-se à luta armada no outro lado do espelho e à relação amistosa entre o chanceler alemão social-democrata Helmut Schmidt (1974-1982) e o ditador brasileiro de ascendência germânica Ernesto Geisel (1974-1979).
“O regime brasileiro forneceu ao exército chileno armas cuja origem foi apagada e que se destinavam ao uso em espaços urbanos. Essas armas eram produzidas pela firma alemã Heckler & Koch, que, durante a ditadura, havia recebido uma licença de produção e exportação pelo governo do chanceler Schmidt”, escreve. Tais armas ajudaram a depor o presidente eleito Salvador Allende (1970-1973) e substituí-lo pelo general golpista Augusto Pinochet (1973-1990).
A vinda de Taufer ao Brasil se daria pelo Uruguai, graças à troca de experiências com os militantes tupamaros presos pela ditadura uruguaia, também em total isolamento. Entre esses estava o futuro presidente José Mujica (2010-2015).
Mesmo apaixonado pelas praias cariocas e dando aulas de alemão para ricos locais, Lutz acabou vinculado a comunidades periféricas e pobres de São Gonçalo, onde trabalhou em projetos sociais associados ao Serviço Mundial pela Paz.
O livro narra, aí, o contato com outras naturezas de luta armada (desta vez, as armas estavam em posse da polícia, das milícias e do tráfico de drogas) e de encarceramento. “A vida lá é completamente blindada”, descreve, com indisfarçada antipatia, os hábitos dos cariocas ricos nos condomínios fechados.
Taufer reflete sobre as contas não ajustadas do Brasil com a escravização de africanos e traça um paralelo entre essa realidade e o fascismo europeu posterior. Descreve a vista que tinha para “o clube mais caro do Rio, onde jovens negros corriam nas quadras atrás das bolas de tênis dos senhores brancos”, e a certa altura refere-se ao Brasil como “um país bipolar”, imagem talvez projetada a partir dos referenciais alemães.
Fã de Zeca Pagodinho, conheceu Leonel Brizola e os tambores do CIEP Carlos Marighella, nomeado em honra ao guerrilheiro baiano assassinado pela ditadura em 1969. Lembra com orgulho que conseguiu o visto de trabalho no Brasil um dia após a eleição de Lula, em 2002, e avalia criticamente o legado petista: “Bolsa Família é bom, Minha Casa Minha Vida também. Mas esses programas não estimularam os moradores a confiar nas próprias forças e organizar uma comunidade resistente. Deixaram os pobres para a Assembleia de Deus e a Rede Globo”.
A entrevista por e-mail acontece logo após a eleição de Jair Bolsonaro, uma materialização do ficcional Capitão Nascimento do filme tropical-hollywoodiano Tropa de Elite (2007), de José Padilha, à qual Taufer reserva indagações: “Bolsonaro é um fanático, um glorificador de violência, um antidemocrata. Mas a aberração dramática não consiste só na figura dele. Parece que muitos dos seus eleitores não entendem a resposta negativa veemente da mídia internacional. Por que eles perderam o contato com a realidade?”
Haveria paralelos entre os juízos de exceção que os jovens da RAF enfrentaram e o Brasil de agora? “Sérgio Moro é alguém que coloca a Justiça a serviço da política. Desde o início pensei nisto: ele quer virar ministro da Justiça.
Há paralelos, um juiz contra Ulrike Meinhof, Andreas Baader e outros enviou documentos secretos do tribunal a um jornal da direita, uma coisa parecida com o telefonema de Dilma e Lula sobre a possibilidade de ele assumir a Casa Civil. A diferença é que aquele juiz alemão teve de renunciar, e Moro, não. Mas não confunda as coisas, Lula não é alguém da luta armada. E, por favor, não heroicizem a RAF.”
Autocrítico à experiência dos Baader-Meinhof, Taufer prefere indicar caminhos alternativos para quem viverá na resistência o Brasil pós-2019. “Não esqueçam de refletir sobre a questão da autodefesa. Já há grupos violentos que querem atacar e matar. Aprendi uma lição na minha vida: não podemos aceitar de forma nenhuma o convite dos Bolsonaro para participarmos dessa escalada. Esse foi um dos maiores erros que nós, na Alemanha, cometemos. Não precisamos de uma repetição.”
Fonte: Carta Capital