por Luiz Gonzaga Belluzzo
No Brasil de hoje, a maior ameaça ao celebrado Estado Democrático de Direito está abrigada nas burocracias de Estado encarregadas de vigiar
No dia 11 do corrente, o editorialista de O Estado de S. Paulo cuida das revelações do site The Intercept. Bota o dedo na ferida: “Se as mensagens forem verdadeiras, indicam uma relação totalmente inadequada – e talvez ilegal – entre o magistrado e os procuradores da República, com implicações políticas e jurídicas ainda difíceis de mensurar. Por muito menos, outros ministros já foram demitidos”.
Em seguida, pondera: “São, portanto, mensagens de caráter privado, e sua interceptação, sem mandado judicial, é criminosa, razão pela qual são inválidas como prova num eventual juízo e, em princípio, não podem ser aceitas como evidência de vício em decisões judiciais tomadas no âmbito da Lava Jato”.
Segue o enterro: “Como explicou o ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio Mello, ‘a troca de mensagens entre juiz e Estado acusador tem de ser no processo, com absoluta publicidade’, e não por meios privados, sugerindo a intenção de trabalhar em parceria – o que cria gritante desvantagem para a parte acusada. Ou seja, tanto o ministro Moro como os procuradores da Lava Jato não enxergam em sua relação bastante amistosa e, às vezes, colaborativa algo que fere um dos princípios mais comezinhos do Estado de Direito, aquele que presume simetria entre acusação e defesa no tribunal”.
Há tempos escrevi em minha coluna na CartaCapital: o juiz Sérgio Moro e o parquet de Curitiba não se cansaram de afirmar e reafirmar publicamente seu empenho em entabular relações promíscuas com a mídia, a grande, a pequena e a desprezível, no propósito de convocar a “opinião pública” à cruzada anticorrupção. Não revelo um segredo: as redes sociais estão inundadas de manifestações dos procuradores.
As manifestações dos funcionários da Justiça nas chamadas redes sociais contradizem os princípios da equidade, publicidade e impessoalidade. Salvo nos toscos arraiais anti-iluministas, há razoável consenso a respeito desses princípios. Eles devem governar as ações e decisões de funcionários do Estado encarregados de zelar pela incolumidade da ordem jurídica.
Vamos começar pelo começo: ao prestar concurso para carreiras de Estado que conferem a prerrogativa de acusar e julgar, os candidatos deveriam estar cientes da natureza e implicações de suas funções. São carreiras fundamentais para a sustentação do Estado Democrático de Direito. Por isso, o exercício dessas nobres funções impõe a seus titulares regras de comportamento mais estritas que aquelas impostas aos cidadãos acusados ou julgados por eles.
As garantias da publicidade do procedimento legal são, na verdade, uma defesa do cidadão acusado – e ainda inocente – contra os arcanos do poder. Pois essas conquistas da modernidade, das quais não se pode abrir mão, têm sido pisoteadas por quem deveria defendê-las.
Os justiceiros de Curitiba agem conforme o ensinamento atribuído equivocadamente a Niccolò Machiavelli: “Os fins justificam os meios”. Estamos diante da “privatização”e da particularização das funções públicas. No Brasil de hoje, a maior ameaça ao celebrado Estado Democrático de Direito está abrigada nas burocracias de Estado encarregadas de vigiar e punir. O roteiro da autodestruição das instituições tem sido escrito e reescrito, com esmero, por agentes do poder, cujo dever funcional é defender as garantias constitucionais contra os arroubos, sim, populistas, das maiorias eventuais e evanescentes. A invasão insidiosa do privatismo nas carreiras de Estado transforma essas burocracias, primeiro, em instrumentos do poder descontrolado e, depois, em poderes fora de controle.
A privatização do Estado não se circunscreve à corrupção promovida pela grande empresa nos gabinetes dos políticos, ao empreendedorismo das milícias formadas por agentes da segurança pública e por outros fardados e armados. As burocracias privatizadas justificam suas ações na virtude auto-alegada. É atalho maroto para subverter os deveres da fiscalização e da aplicação da lei e transformá-los num realejo de autojustificativas narcisisticamente corporativas. Esse foi o teor das manifestações da Associação Nacional dos Juízes Federais e da entidade similar do Ministério Público Federal. Não bastasse a administração de copa e cozinha do consórcio Bolsonaro, filhos & Guedes, o País é entregue à ignorância de juízes e promotores.
Nessa barafunda institucional, quem vai proteger os direitos dos cidadãos e dizer a lei?
*Luiz Gonzaga Belluzzo é Economista e professor, consultor editorial de CartaCapital.
Fonte: Carta Capital