Levantamento do IBGE comprova o avanço do agronegócio em detrimento da agricultura familiar. Para especialistas, o problema agrava violência
Maior percentual de área dedicada à agricultura nas mãos de menor número de proprietários de terras. Essa concentração de terras no Brasil, comprovada pelo Censo Agropecuário 2017, tem como consequência a redução das áreas ocupadas pela agricultura familiar e menor número de postos de trabalho nas pequenas propriedades.
Divulgado no final de outubro, o Censo Agropecuário também revela que o agronegócio brasileiro avança sobre o Norte e o Centro-Oeste do país, em biomas como o amazônico e o cerrado – o que colabora para o conflito por terras, para a violência no campo e para a destruição do meio ambiente, segundo estudiosos ouvidos pela Repórter Brasil.
Em 2006, quando foi realizado o primeiro censo agropecuário no país, as terras destinadas à atividade agropecuária ocupavam 39% do território nacional, com tamanho médio de 64 hectares por proprietário. Onze anos depois, 41% do território brasileiro é ocupado por terras agricultáveis, com tamanho médio de 69 hectares por dono.
“Entre os dois censos agropecuários, houve uma redução de 9,5% no número de estabelecimentos da agricultura familiar, enquanto no agronegócio o crescimento foi de 35%”, afirma Júnior C. Dias, economista e técnico do Dieese (Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos), com base nos números levantados pelo Censo Agropecuário. Ele destaca que, em termos de número de estabelecimentos agrícolas, a maior parte continua sendo da agricultura familiar (77%). Agora, ao se analisar pela extensão, a maioria das terras está nas mãos do agronegócio (77%).
Além da concentração de terras, o censo também comprova concentração de renda, segundo avaliação de Alexandre Arbex, pesquisador do Ipea. “De 2006 a 2017, a receita total dos estabelecimentos da agricultura familiar cresceu 16%, enquanto nos demais estabelecimentos este crescimento foi de 69%”.
Avanço nas fronteiras agrícolas
Os números do censo confirmam o avanço no agronegócio brasileiro em detrimento da agricultura familiar em todas as áreas do país, exceto no Nordeste, que tradicionalmente é dominado por pequenos produtores rurais. “Novas propriedades foram incorporadas na chamada fronteira agrícola, na região Norte e no Centro-Oeste”, afirmou Antônio Florido, responsável técnico do IBGE pelo Censo Agropecuário.
O problema deste avanço do agronegócio nas fronteiras agrícolas é que ele se dá em regiões de preservação ambiental ou em terras indígenas. “Um primeiro impacto que deve ser considerado é o ambiental, com a perda da biodiversidade em função da supressão da vegetação nativa, além da possibilidade de alterações climáticas, como aumento da temperatura e mudanças no regime de chuvas”, diz Arbex.
O segundo impacto são conflitos fundiários, assassinatos e expulsão de famílias de suas terras, continua o pesquisador. “Esse avanço está associado à exploração ilegal de madeiras, grilagem e especulação imobiliária, cujo processo resulta no aumento de área desmatadas e seu uso posterior em pastagens e monocultivos”.
Um levantamento da Comissão Pastoral da Terra, divulgado este ano, mostra que apenas 117 dos 1.468 casos de assassinatos em conflitos de terra entre 1985 e 2018 foram avaliados por um juiz em alguma instância. Os conflitos, neste período, resultaram em 1.940 mortos.
De janeiro a agosto de 2019, segundo o acompanhamento da pastoral, o Brasil registrou 18 mortes em conflitos no campo. Entre os mortos, quatro eram líderes indígenas, sendo três do Amazonas e uma do Amapá.
Arbex também chama a atenção para o aumento da área de agronegócio por cooptação, quando o forasteiro usa sua influência para forçar os índios a praticarem a monocultura e a destruição das áreas de preservação, que causa impactos graves no meio ambiente. “Vem ocorrendo um processo de cooptação de comunidades indígenas por setores do agronegócio para implantação de monoculturas. Casos exemplares são os Parecis e os Xavantes (Mato Grosso)”.
Agricultura familiar
Enquanto o agronegócio avança e concentra maior renda, o campo perde postos de trabalho. Segundo o IBGE, houve redução de 1,4 milhão de vagas de trabalho no campo entre os dois censos — atualmente o Brasil possui 15,1 milhões de trabalhadores rurais. O maior impacto foi na agricultura familiar, com perda de 2,2 milhões de postos de trabalho por conta da concentração de terras e da mecanização no campo.
“Um campo esvaziado tem como contraparte cidades cada vez mais cheias”, analisa Dias. Essa retração na agricultura familiar — tanto em número de estabelecimentos quanto em postos de trabalho — é vista com preocupação não apenas por conta do êxodo rural, mas também porque é esta a atividade que garante diversidade de produção e colabora na preservação ambiental.
A agricultura familiar é importante para a preservação dos mananciais, dos rios, das florestas e, principalmente, da diversidade de cultura do meio rural”, disse Aristides Veras dos Santos, presidente da Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura).
O censo mostra que a agricultura familiar continua respondendo por parte importante da produção de alimentos: 48% do valor da produção de café e banana nas culturas permanentes. Já nas culturas temporárias, intercaladas com outros produtos, a agricultura familiar é responsável por 80% do valor de produção da mandioca, 69% do abacaxi e 42% da produção do feijão.
“Somando a produção da agricultura familiar no Brasil, chega-se a R$ 107 bilhões ao ano, o que é mais que a economia total de pelo menos 12 estados”, avalia o economista Carlos Mário Guedes de Guedes, ex-presidente do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e diretor do Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural.
Agrotóxicos
Outra constatação revelada pelo censo é o aumento no uso de agrotóxicos: atualmente, pelo menos 1,6 milhão de estabelecimentos agropecuários fazem uso de pesticidas em suas lavouras, número 20% maior do que em 2006.
“O uso dos agrotóxicos cresceu consideravelmente, inclusive nas propriedades menores. A pressão para o uso desses produtos nas plantações aumentou. Além disso, mesmo quem não usa diretamente pode ser contaminado porque o veneno entra no lençol freático contaminado a água”, disse Aristides Veras dos Santos, presidente da Contag.
Há também um alerta sobre como esses produtos são aplicados: 16% dos produtores que utilizaram agrotóxicos não sabiam ler e escrever e, destes, 89% declararam não ter recebido orientação técnica. Dos que sabiam ler e escrever e utilizaram agrotóxicos, 70% possuíam, no máximo, o ensino fundamental e destes, apenas 31% declararam ter recebido orientação técnica para usar corretamente o produto.
Dados do DataSUS, que reúne informações da rede pública de saúde, mostram que, entre 2008 e 2017, o contato com pesticidas e agrotóxicos foi responsável direto por 7.267 mortes no Brasil.
O riscos do uso dos agrotóxicos aumenta com a redução dos alertas de perigo dos produtos. Em julho, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) aprovou um novo padrão de na reclassificação das categorias dos produtos e nos rótulos. Algumas das mudanças incluem pesticidas com alto grau de toxicidade que terão menos alertas no rótulo, ou seja, perdem a tarja vermelha e a caveira que chamava atenção sobre riscos de morte ou outros perigos mesmo para agricultores de baixa escolaridade.
“Com isso, produtos que no ano passado carregavam o desenho da caveira, agora se tornarão invisíveis para crianças e pessoas de alfabetização incompleta”, afirma Leonardo Melgarejo, engenheiro agrônomo, autor do “Dossiê Abrasco: Um alerta sobre o impacto dos agrotóxicos à saúde” e vice-presidente local da Associação Brasileira de Agroecologia. “Sem o símbolo, teriam que ler as letras miúdas do rótulo dizendo sobre os cuidados. Isso abre espaço para mais casos de intoxicação e mortes.”
Fonte: Carta Capital