O silêncio das pesquisas de opinião esconde o verdadeiro Brasil sob o disfarce bolsonarista
Alguém se lembra de quantas pesquisas nacionais de opinião foram publicadas em outubro? E nos últimos três meses? E do início do ano para cá?
Com alguma boa vontade, chegamos a um número próximo a dez pesquisas tecnicamente defensáveis desde janeiro, léguas abaixo do padrão internacional e aquém daquilo que o tamanho e a complexidade do País justificariam.
Nos Estados Unidos, apenas em outubro, foram publicadas 85 pesquisas de âmbito nacional a respeito de Donald Trump. Se excluirmos os resultados de tracking polls, restam 41 pesquisas convencionais, como aquelas que fazemos no Brasil. Os principais veículos de comunicação encomendaram oito, em uma média de duas por semana. Sete universidades promoveram as suas, assim como fundações privadas e consultorias. Empresas tradicionais de pesquisa realizaram várias.
São tantas pesquisas que os analistas americanos quase só raciocinam com os chamados “agregadores de pesquisas”, sistemas que calculam, de maneira até sofisticada, o resultado de conjuntos de levantamentos. Hoje passam de meia dúzia, o que criou um mercado novo: desenvolver metodologias para agregar agregadores.
Longe da exuberância dos EUA, em outubro, no Reino Unido, foram seis pesquisas nacionais, considerando apenas as convencionais. Na França, oito. Na Espanha, 25 (há eleição por lá na semana que vem). Neste ano, saindo dos países europeus maiores, foram publicadas, por exemplo, 16 pesquisas na Lituânia e dez na Letônia. Na América Latina, a mídia mexicana divulgou, ao longo de 2019, os resultados de 48 pesquisas, de tracking ou não. Em todos os lugares, qualquer uma delas foi considerada suficientemente correta para ser integrada em um agregador respeitável.
O Brasil destoa do resto do mundo. Aqui, as pesquisas são infrequentes e limitadas, a maioria patrocinada por empresas e entidades empresariais, com evidente interesse na promoção de suas agendas. Fora dos períodos eleitorais, a mídia nacional e parte dos veículos regionais trabalham com um único instituto, tratado como se fosse uma espécie de oráculo, em um modelo inteiramente anacrônico. As pesquisas de opinião, algo intrínseco às democracias contemporâneas, são tão infrequentes no Brasil quanto em lugares onde as preferências da maioria não contam.
A razão é simples e decorre do caráter epidérmico da democracia brasileira: pesquisar a opinião dos cidadãos tem como premissa a ideia de que a opinião deles é importante e é preciso conhecê-la. Quando, ao contrário, o que elas pensam é irrelevante, por que perder tempo as consultando?
A elite brasileira costuma achar que é democrata, mas não gosta de povo e não respeita sua opinião. O que ela quer é apenas um sistema político que lhe permita olhar-se no espelho e não se ver como um ou uma gorila. Nada além de um verniz de civilização.
Não falamos, é claro, daqueles que não estão nem aí para se assumir demofóbicos. São tão comuns entre nós quanto a jabuticaba e infectam o aparelho estatal, em especial as Forças Armadas e o sistema de Justiça. Quem não é capaz de citar um general, juiz, promotor ou ministro do Supremo que se acha intérprete da vontade nacional e acredita haver recebido a missão de guiar a coletividade?
A ojeriza ao povo não se limita aos abertamente autoritários. No Brasil, a regra, entre as “pessoas de bem”, os “estudados” e “modernos”, na classe média e entre os ricos, é gostar do povo, desde que este fique em seu lugar, não tenha a veleidade de ser igual, não aspire ao poder e não meta o bedelho onde não foi chamado.
A sociopatia brasileira típica é a mania de superioridade dos que têm em relação aos que nada ou muito pouco têm, fruto de uma cultura que trata as diferenças entre os indivíduos como decorrência de algum desígnio divino. Falta pouco para que nos vejamos como castas. Cada um no seu lugar.
Estamos com dez meses de um governo calamitoso, chefiado por um delinquente que comete desatinos e irregularidades diariamente, e que adotou políticas que contrariam os interesses e pontos de vista da maioria. Em países democráticos normais, a cada passo de um governo desse tipo teríamos pesquisas para retratar a reação da sociedade ao que diz e faz. Aqui, não.
O silêncio das pesquisas é bom para aqueles que estão satisfeitos com Bolsonaro e o status quo. O que não se compreende é a falta de iniciativa de quem não o aprova. Não é somente por meio de manifestações de rua que se mostra a opinião da maioria, até porque é irrealista esperar que os cidadãos se mantenham em estado de mobilização permanente. Dispomos de menos pesquisas do que o desejável, que exponham com clareza a distância que existe entre o verdadeiro Brasil e a contrafação bolsonarista.
Fonte: Carta Capital