Democracia zumbi

Se os próprios trabalhadores reconhecem a urgência da situação e estão lutando por suas vidas, qual o sentido de os incentivar a se reunirem de forma próxima e descuidada?

Foto: Dawn of the Dead, de George Romero (1978)

Há mais de uma semana a Organização Mundial da Saúde declarou a situação de pandemia global por conta da difusão do novo coronavírus. O vírus representa uma ameaça aos governos, economias e principalmente aos trabalhadores, que constituem a maior parte da população mundial. Seu grande risco se dá pela mistura de uma taxa de letalidade considerável, uma média global de 3,6%, e uma taxa significativa de contágio — um estudo preliminar na China indicou que uma única pessoa infectada pode transmitir o vírus para até mais de duas pessoas em média, sendo que outras estimativas apontam que o número pode chegar próximo de quatro. Trata-se de um vírus que pode infectar a grande maioria da população mundial, principalmente as populações urbanas, e alguns chefes de Estado já consideram que é um cenário muito provável o de que a maioria das suas populações seja infectada no longo prazo. Ou seja, há um potencial de dezenas de milhões de mortes num período relativamente curto de tempo, fora os casos de sequelados, das inúmeras consequências econômicas colaterais e efeitos sobre o atendimento nos sistemas de saúde. No caso brasileiro, a FGV atualmente estima que no pior cenário o Brasil terá uma baixa de 4,4% do PIB. Apenas no estado de São Paulo, a projeção mais conservadora do número de infectados trabalhada pelo governo é de 1% da população total, o que representa cerca de 460 mil pessoas, mais do que há de infectados no mundo inteiro hoje. Vivemos, portanto, uma grave crise global e um cenário de muitas formas atípico num período de muitas décadas.

Não podemos contar somente com a ação dos governos para a solução dessa crise na classe trabalhadora. Há hesitação em tomar medidas mais drásticas de quarentena por conta do dilema econômico envolvido, um cenário em que os empresários só podem apostar em formas de diminuir as perdas, que serão grandes e certas. No último sábado, o governo do Estado de São Paulo decretou quarentena por um prazo de 15 dias a partir de terça-feira (24/03), fechando o comércio, mas permitindo que empresas de telemarketing continuem as operações, o que é um problema grave não só para os trabalhadores dessas empresas mas para a saúde pública em geral. A operação de uma empresa de telemarketing na Coreia do Sul ocasionou um agravamento da situação no país, em um momento em que o número de casos vinha decrescendo. Um outro problema, no momento, é a impossibilidade de testes para o vírus serem aplicados massivamente, porque são escassos. Essa é uma medida considerada essencial pela OMS para conter a pandemia, visto que só podemos controlar aquilo que podemos mapear. É o que mostra o exemplo dos países que melhor conseguiram conter a situação interna. Um estudo recente aponta que a explosão de infectados na China se deu pela circulação dos pacientes assintomáticos e não testados, sendo o isolamento total da população a única medida capaz de reverter o quadro. Outro estudo aponta que o número de infectados pode ser de 4 a 30 vezes maior do que o indicado pelos relatórios oficiais. Ou seja, se hoje o governo brasileiro garante que apenas testa os casos em que é necessário o auxílio hospitalar e suas estatísticas registram atualmente 2201 casos, podemos supor que já estamos na casa das dezenas de milhares de infectados no Brasil. Um exemplo desse quadro é o de que as primeiras duas mortes por coronavírus no país foram de infectados diagnosticados postumamente.

Foto: Zumbi nazistas. Reprodução da internet

Qual o papel dos militantes anticapitalistas nesse panorama? Muitos olham com entusiasmo a tendência global de greves em favor da quarentena, como uma oportunidade de fortalecer as lutas entre os de baixo e escancarar o vil papel dos patrões em priorizar seus lucros em detrimento da vida de seus subordinados. Mas esse entusiasmo não pode nos levar a arriscar medidas impulsivas, que podem contribuir para piorar a situação ao invés de melhorá-la. Por isso é importante nos informarmos o máximo possível, e difundirmos as informações de como lidar com a pandemia, para não corrermos o risco de usar a pauta do contágio como um instrumento para encenar objetivos estratégicos particulares da militância, tais como realização de assembleias presenciais e massivas entre trabalhadores (mesmo que para fins de uma paralisação) e sem as medidas de distanciamento social adequadas, atos de rua e panfletagens presenciais. Há outras formas de se comunicar com os trabalhadores nesta situação, tais como o uso de banners, faixas, lambes e, claro, os meios de comunicação virtuais. Caso o contato físico ocorra, o recomendado é uma distância de 2 metros entre os indivíduos. Muitos questionarão a adoção dessas medidas, dizendo que os trabalhadores correm pouco risco realizando uma assembleia ou um ato comparado ao cotidiano no transporte público e nos locais de trabalho. Afirmação que favorece apenas a acomodação e a negligência, refletindo o espírito dos manifestantes bolsonaristas nos atos do dia 15/03 e do próprio presidente, assim como dos vários comentários em defesa dos banhistas nas praias ou frequentadores de praças. Se os próprios trabalhadores reconhecem a urgência da situação e estão lutando por suas vidas, qual o sentido de os incentivar a se reunirem de forma próxima e descuidada? Não é necessário mais do que um intervalo de segundos para a propagação do vírus. Este engano da militância custará vidas, e a única forma de “democracia proletária” que pode decorrer disso é uma democracia zumbi. Primeiro, pelo estímulo à convivência íntima com a morte; segundo, por querer encenar formas organizativas mortas e infrutíferas para o atual contexto de luta contra a disseminação do vírus.

Os militantes também não podem apostar numa pretensa onipotência para paralisar os locais de trabalho alheios, o que seria uma postura vanguardista. Não há dúvidas de que hoje os anticapitalistas são uma ínfima minoria socialmente irrelevante. A tendência de greves que se observa no mundo, principalmente no reduzido setor industrial e mais recentemente nos call centers, é causada pela própria conjuntura pandêmica, aliada às recomendações e restrições governamentais, como diminuição ou paralisação dos transportes públicos, que pressionam o patronato a suspender as atividades produtivas. É bem provável que a maioria dos locais de trabalho no Brasil não necessite de greves para paralisar as atividades, já que a paralisação das atividades se mostra como uma forma dos capitalistas perderem menos com a crise. As medidas restritivas que estão sendo impostas em escala crescente pelos governos também tornam inviável o funcionamento das empresas, e por isso estão sendo estudadas e adotadas medidas compensatórias para cobrir os prejuízos dos capitalistas e trabalhadores, algo usualmente impensável e indesejado. De forma alguma, com isso, afirmamos que não devemos apoiar ativamente as lutas dos trabalhadores pelo direito à quarentena, tal como está ocorrendo nos call centers brasileiros. Essas lutas são hoje, mais do que nunca, lutas de toda a classe.

Foto: A noite dos mortos vivos. Foto: Reprodução da internet

Entretanto, não podemos observar a conjuntura simplesmente como uma irrupção de consciência de classe nos locais de trabalho que levantam essa demanda, pois a paralisação das atividades também é um objetivo tático colocado pelos capitalistas. Basta ver o que se está passando na União Europeia. Do ponto de vista dos trabalhadores, ao contrário, também é uma luta para reduzir prejuízos. Primeiramente, reduzir o prejuízo humano, contabilizado em mortes e sequelados. Depois, o prejuízo decorrente de todas as restrições e efeitos sociais colaterais, que necessariamente ocorrerão em cadeia. Num contexto em que deparamos com muitas limitações a nos encontrarmos presencialmente e a exercermos nossas funções produtivas e em que enfrentaremos diminuição dos rendimentos e do consumo, é ilusório pensar um cenário favorável a ganhos na luta anticapitalista. Corremos muito mais um risco sério de agravamento da barbárie e do individualismo, a que teremos de responder com solidariedadeautodisciplina e ações refletidas.

Os militantes não podem se colocar como sujeitos de direito exclusivo frente à pandemia, pois além do risco de contágio que proporcionam se não adotarem as devidas precauções, podem passar um exemplo ruim e desmotivador aos outros trabalhadores, contribuindo para um agravamento da situação. É urgente ter firmeza para não quebrar o gelo fino sobre o qual caminhamos e assim afogar os que estão à nossa volta.

Fonte: tradução do site Passa Palavra

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