Como a crise socioeconômica em meio à pandemia afeta a juventude periférica?

Dossiê do Instituto Tricontinental analisa os impactos diretos do modelo neoliberal na vida dos jovens brasileiros

Jovens sentem impactos da pandemia principalmente nas áreas do trabalho e da educação, dizem pesquisadores – Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

 

Cerca de 10,5 milhões de jovens brasileiros nem estudam, nem trabalham, segundo dados coletados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) por meio da Pnad Contínua (2019) e da Pnad Covid19 (2020) – que tem caráter experimental durante a pandemia.

O coronavírus atingiu em cheio uma parcela considerável da juventude que já se encontrava em situação vulnerável. No primeiro trimestre deste ano, por exemplo, a média nacional do desemprego entre os jovens de 18 a 24 anos foi de 27,1%. O recorde foi da região Nordeste, que registrou 34,1%.

Segundo aponta o dossiê Um olhar sobre a juventude e periferia em tempos de CoronaChoque, do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, lançado nesta terça-feira (06), a pandemia escancara como as perversidades do modelo neoliberal se concretizam na vida dos jovens brasileiros.

Os jovens estão fadados a lidar com o imediatismo, sem perspectivas de construção de carreira estável e sem enxergar o trabalho como um espaço de construção coletiva

A precarização no mundo do trabalho é uma das mais graves consequências desse modelo, de acordo com Lauro Carvalho, pesquisador do Observatório das Juventudes em Periferias Urbanas do Tricontinental.

Com a chegada da pandemia, os chamados bicos e freelas são, na maioria das vezes, a única opção de trabalho e fonte de renda para os jovens. A realidade corrobora, conforme aponta Carvalho, com o pensamento apresentado pelo neoliberalismo de que o empreendedorismo é a melhor saída.

Entre a juventude desta geração em comparação com seus pais, por exemplo, há uma grande diferença no que diz respeito às possibilidades de futuro. Hoje, os jovens estão fadados a lidar com o imediatismo, sem perspectivas de construção de carreira estável e sem enxergar o trabalho como um espaço de construção coletiva.

“Essa geração jovem vive sobre a lógica do indivíduo-empresa. Está sempre buscando a informação, a novidade, o acesso para competir, para estar mais antenado, para circular onde é possível em busca do dinheiro, que é outra forma de lidar com o trabalho, diferente da geração anterior”, afirma o pesquisador.

Ele ressalta que os jovens da periferia são atingidos de forma ainda mais direta e localiza a categoria dos entregadores de aplicativos, que realizaram duas paralisações em julho, como um bom exemplo da influência dessa lógica e aponta que os debates relacionados à organização sindical, por exemplo, acabam sendo vistos de forma pejorativa por essa geração.

“A lógica do invidvíduo-empresa se manifesta no direito de acesso ao aplicativo, de não ser cortado, de poder fazer a extensa jornada de trabalho. Não aparece com centralidade a questão do vínculo empregatício, a questão da carteira assinada, a ideia da aposentadoria, dos direitos. A lógica de ser patrão de você mesmo, de ser empreendedor, encanta mais o jovem do que ser um funcionário”, analisa Carvalho.

Sem aulas, sem saúde e sem casa

Além do direto do fechamento de postos de trabalho, a pandemia trouxe empecilhos para a juventude em fase de estudos, do ensino básico à universidade. Conforme análise de Lauro Carvalho, a precariedade do ensino remoto torna os estudos menos atrativos e inflama o pensamento de que a formação não é o caminho certeiro para a melhoria das condições de vida e inserção no mercado de trabalho.

“A juventude tem dificuldade para acompanhar as aulas. Por mais que escolas tenham feito ensino remoto, aula online, os jovens de periferia, em especial, têm dificuldade em acompanhar pelo celular, às vezes não tem internet em casa, o que dificulta muito o rendimento ao longo do ano. A concorrência do Enem [Exame Nacional do Ensino Médio], por exemplo. É um problema que os jovens enfrentam e que terá consequência a curto prazo”.

Segundo Stella Paterniani, doutora em Antropologia Social e também pesquisadora do Observatório das Juventudes em Periferias Urbanas, a concentração de casos de covid-19 na periferia das cidades expõe o padrão de colonialidade no que se diz respeito à ocupação dos territórios.

Assim como os jovens, trabalhadoras domésticas e enfermeiras, entre outras ocupações, não tiveram o direito de permanecer em quarentena. Com o deslocamento, são ainda mais expostos ao vírus e, voltando para casa, se deparam com a precariedade da rede pública de saúde.

São pessoas e territórios, conforme sublinha a pesquisadora, que já eram atravessados por condições estruturais de desigualdade, que no Brasil são marcadas por raça e por classe. Como exemplo, ela cita uma pesquisa feita pela PUC-Rio, que mostrou que as chances de um paciente preto ou pardo e analfabeto morrer em decorrência do novo coronavírus no Brasil são 3,8 vezes maiores do que de um paciente branco e com nível superior.

Paterniani destaca ainda a questão da moradia, já que remoções urbanas continuam sendo executadas mesmo em meio à pandemia. Conforme mapeamento da campanha Despejo Zero, mais de 6 mil famílias brasileiras foram despejadas durante o período. Somente em São Paulo foram 1.681 despejos, o equivalente a 26% do total de casos.

“No momento em que a máxima é ‘fique em casa’, o próprio estado brasileiro tem produzido a desabitação, destruído casas, deixado as famílias desasistidas. A necropolítica como política de estado não é novidade em nosso país”, lamenta.

“O que nossa história nos mostra é que alguns corpos não podem ficar em casa e não estão seguros, nem em casa, nem na rua. A juventude negra de periferia tem sua vida ameaçada o tempo todo. Se sai de casa é ameaçada pelo vírus, se fica em casa é ameaçada pelo Estado”, critica Paterniani, em referência à ausência de uma rede de assistência social estruturada e à violência policial.

Sujeito político

O dossiê 33 do Instituto Tricontinental também apresenta reflexões sobre o histórico da juventude brasileira enquanto uma categoria política essencial para as mobilizações sociais. Esses jovens que, por exemplo, estiveram ao lado dos trabalhadores e imigrantes em protestos contra o imperialismo e grandes blocos econômicos europeus no início dos anos 2000, no chamado movimento anti-globalização.

Uma característica que chama atenção, para Pateniani, é o modo como a juventude desafia a separação entre política e cultura.

“As lutas por liberação nacional, os movimentos de 68, articulam fortemente arte e política. No Brasil podemos ver isso com mais clareza a partir dos anos 90, quando os movimentos de cultura da periferia crescem e se intensificam. Seja o rap, o hip hop, os bailes funks, blacks, mais pra frente nos anos 2000 os saraus e os slams, que se consolidam como espaço de cultura e política auto-organizados”, exemplifica, adicionando que o combate ao racismo, a LGBTfobia, o feminismo e luta anticapitalista estão entre as principais bandeiras erguidas por esses movimentos.

 

Quando falamos em mudança estrutural, devemos associar, seja na esquerda ou em qualquer projeto de país, a juventude nesse processo

 

O documento Um olhar sobre a juventude e periferia em tempos de CoronaChoque também aborda a necessidade da reaproximação das organizações populares com os coletivos de juventude. Principalmente encarar o desafio de entender onde e como se dá a participação política dos jovens, alvejados constantementes com as promessas neoliberais.

Na opinião do pesquisador Lauro Carvalho, “ao mesmo tempo que a juventude nasceu sob a influência neoliberal e carrega essa semente, ela também carrega a semente da transformação”.

“Não é à toa que temos visto no último período que a novidade, o inovador, o atrativo, tem vindo dessa juventude. Quando falamos em mudança estrutural, devemos associar, seja na esquerda ou em qualquer projeto de país, a juventude nesse processo”, ressalta.

Fonte: Brasil de Fato

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