A cena grotesca das hordas bolsonaristas dançando com um caixão, celebrando a morte na Avenida Paulista e a entrevista de Mandetta ao Fantástico, praticamente exigindo que seu chefe finalmente use sua caneta, parecem marcar o fim de um verdadeiro espetáculo circense, usado como distração para esconder a atuação dos verdadeiros protagonistas do atual momento histórico brasileiro.
A falsa polarização levada ao extremo nas redes sociais e na grande mídia entre a estratégia de isolamento social e a aplicação da cloroquina como panacéia milagrosa para enfrentar a pandemia não resiste a uma análise minimamente séria. Ora, o Presidente e seu ministro, que vinham trabalhando em perfeita sintonia pela desidratação do SUS, extinguindo milhares de cargos do Ministério da Saúde no setor de combate a endemias, transferindo bilhões do orçamento da saúde para o Ministério da Defesa construir navios de guerra, assim que o coronavírus faz suas primeiras vítimas no país, apresentam à nação uma divergência insuperável, que, aos olhos de um observador mais arguto, não passa de uma farsa.
Por um lado o Ministro colocado no posto para defender os interesses da medicina privada e das operadoras dos planos de saúde, troca seus ternos muito bem cortados pelo colete do SUS e passa a posar como defensor dos trabalhadores da saúde e da ciência, paladino do sistema público de atenção à saúde. Por outro, seu chefe, conhecido defensor da ditadura, de torturadores e assassinos das milícias paramilitares, transforma-se no guardião dos direitos individuais e da liberdade dos cidadãos, preocupado com os empregos e a sobrevivência dos mais pobres. Afinal, qual é de fato o pomo da discórdia?
Mandetta na verdade não representa os profissionais da saúde e o pensamento técnico e científico do SUS, que vem demolindo e desprestigiando sistematicamente em sua gestão, mas sim os caciques do DEM e do centrão que, com grande faro e aguçado instinto político, percebem que com o autogolpe em curso no Planalto, serão carneados da mesma maneira que o foi o outrora poderoso PSDB. Buscando na defesa de uma legalidade institucional, que na verdade nunca prezaram muito, um escudo para sua sobrevivência política. De sua parte, Bolsonaro, com o apoio e a tutela dos generais entreguistas, açula suas milícias digitais e sua base de apoio fascista, apostando em um jogo bruto de ruptura institucional, que foi obstado temporariamente pela “tratorada” do coronel cearense.
Essa “guerra de mentira” não passa da escolha do melhor meio para implantar a mesma proposta para a sociedade, o que fica claro pela concordância de ambos os beligerantes na proposta para a condução da economia, em que a política ultraliberal de Guedes aparece como cenário único para o país pós pandemia. Enquanto a platéia é entretida com o debate entre lockdown e cloroquina, as patuscadas do filho do presidente e os ministros olavistas na política internacional e falsas contendas entre o poder central e governadores de extrema direita dos principais estados, os fundamentos básicos das propostas impopulares, de difícil implantação em um ambiente de normalidade, são consubstanciadas na emergência sanitária.
O orçamento de guerra, consenso geral para enfrentar a crise, escancara de vez as portas para a farra do sistema financeiro, contrabandeando junto com o justo e necessário apoio governamental as empresas, a possibilidade dos operadores do sistema financeiro empurrar títulos de dívida de valor incerto em troca de dinheiro público (ao invés de exigir ações das empresas ou dos próprios bancos como garantia). O repasse de dinheiro aos bancos para emprestar aos cidadãos, que contrairão dívidas tomando o dinheiro que deveria vir direto do Estado em seu apoio. A queima de ativos importantes a preço vil, como Witzel tenta fazer, a toque de caixa, com a CEDAE e Guedes com a Eletrobrás. E o passo mais cruel e decisivo no caminho da implantação descarada da necropolítica no país, é a falsa ajuda aos trabalhadores informais, com vínculos precarizados de trabalho e a massa de desempregados ou desalentados.
Nesse último ponto reside o maior perigo, a medíocre ajuda de R$ 600,00 (que chegou a tanto por obra da oposição no congresso, pois como lembramos a proposta era de escandalosos R$ 200,00), encontra todo tipo de entrave burocrático, fruto de visível má vontade do governo em sua concessão, tornando-se cada vez mais claro que não chegará de fato para a maioria daqueles a qual se destina. Daí sim pode vir a convulsão social com a qual Bolsonaro ameaça a nação, milhões de pessoas famintas e desalentadas, confinadas em guetos nas periferias, podem ser levadas ao desespero e oferecer o pretexto necessário para os defensores da reedição do AI-5, atentarem contra o fiapo de democracia que conseguimos construir.
A esperança fica depositada na capacidade de autodefesa da classe trabalhadora, nas mães de família das comunidades e das lideranças que começam a organizar formas de coletivamente mobilizar os meios para sobreviver. O resultado desse cenário dantesco ainda não pode ser divisado no horizonte, mas o certo é que aquilo que se fala em todo o mundo, para nós é uma certeza, a vida pós pandemia não será a mesma que vivemos hoje.
Por: Eduardo Papa. Professor, jornalista e artista plástico.
Fonte: Portal disparada