Entrevista | “Quando conquistamos uma área, não é só a terra, mas a dignidade humana”

Por Ênio Bohnenberger/ Wallace Oliveira

Foto: Mídia Ninja

Ênio Bohnenberger, um dos fundadores do MST, faz um balanço dos 30 anos do movimento em terras mineiras

Há 30 anos, no dia 18 de fevereiro de 1988, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) chegou a Minas Gerais para ficar. Hoje com mais de 20 mil famílias espalhadas pelo estado, o movimento é referência nas lutas pela democratização da terra, da cultura e do poder. Produz alimento orgânico sem venenos e ajuda a formar milhares de pessoas em Minas e no Brasil. Mas nada disso aconteceria sem a unidade com outras organizações e a capacidade do movimento em ir além de suas lutas corporativas. É o que conta Ênio Bohnenberger, um dos fundadores do movimento. Para ele, grande aprendizado nessa trajetória foi construir ferramentas de comunicação que sejam a voz dos trabalhadores. Confira a entrevista.

Brasil de Fato – Como foi a chegada do MST ao estado?

Ênio Bohnenberger – O primeiro encontro do MST nacional foi em 1984, em Cascavel (PR). Antes disso, havia muitas lutas espontâneas, que deram origem ao movimento. A aglutinação dessas várias lutas, a resistência dos posseiros proporcionou esse encontro nacional e 13 estados participaram. Minas Gerais foi com um casal de dirigentes, mesmo ainda não tendo MST aqui. Mas já havia alguma intenção de luta dos sem-terra. Em janeiro de 1985, fizemos o primeiro congresso nacional.

Depois disso, vários trabalhos foram feitos para se ter o MST aqui. A consolidação veio com uma grande ocupação em fevereiro de 1988, na Fazenda Aruega, em Novo Cruzeiro, Vale do Mucuri. Nessa primeira grande ação, inclusive, houve uma grande repressão da Polícia Militar e eles criaram, na época, uma ferramenta de capturar foice, chamada “Aruega”, em homenagem à fazenda. Somos fruto de várias lideranças da igreja, das CEBs, do Partido dos Trabalhadores, da Central Único dos Trabalhadores, uma continuidade da luta no Brasil.

Minas é considerado um estado muito conservador, onde é muito marcante a influência dos fazendeiros na política. Foi muito difícil avançar nesse estado?

A principal dificuldade foi o coronelismo, especialmente nessas regiões do Mucuri e Jequitinhonha. E a própria repressão policial, pois havia um resquício grande da ditadura militar. Por outro lado, o sistema capitalista havia criado uma grande contradição que os historiadores chamaram de modernização conservadora. Ela levou máquinas, insumos, agroquímicos, e criou um grande desemprego. Então, na verdade, ela modernizou a agricultura, mas não desconcentrou a terra. Nesse período, houve um grande êxodo rural, muita gente foi para São Paulo e outras metrópoles, mas quem não quis ir para a cidade foi lutar pela terra. Essa contradição permitiu o surgimento do MST.

O movimento enfrenta o preconceito difundido pela mídia burguesa. Quem são os trabalhadores rurais sem-terra organizados no MST? O que eles fazem no movimento?

Nós aglutinamos pessoas que querem permanecer no campo. Nós trabalhamos com camponeses, assalariados, semi-assalariados, pessoas que já foram para a cidade mas querem produzir em outro tipo de agricultura, com alimentos saudáveis. Somos o fruto daquilo que o capitalismo excluiu, quando não admitiu no mercado de trabalho, no meio urbano e rural. Há cerca de 5 milhões de famílias sem-terra no Brasil, que têm que cortar cana, apanhar café, que não têm trabalho, que não têm terra, mas que buscam repartir uma das estruturas mais injustas, que é a estrutura fundiária do Brasil. É a estrutura que mais concentra terras no mundo. O MST trabalha prioritariamente com esse público.

Nós lutamos contra a injustiça social e econômica e também contra o preconceito. A raiz da raiva e do ódio que destilam são o latifúndio e a escravidão, essa ideia de que pobre, preto, sem-terra não pode fazer parte da sociedade. Temos mostrado para a sociedade brasileira, nas áreas que conquistamos, que é possível ter uma vida diferente.

Nós garantimos pelo menos cinco coisas que as pessoas não têm. Conquistamos a casa, conquistamos trabalho o ano todo, conquistamos a educação, conquistamos a segurança e conquistamos um nível de vida sem exclusão. As coisas básicas que a sociedade brasileira não tem nós temos nos assentamentos, mesmo que nossa casa não seja aquele prédio bonito, mesmo que nosso trabalho não seja aquele modelo que a Globo mostra, com aquele tratorzão. E temos segurança nas nossas áreas, não há violência. Somos pessoas normais, como qualquer outra. E, quando conquistamos uma área, não é só um pedaço de terra, uma casa, uma escola, nós reconquistamos a dignidade humana. Isso nos move a fazer luta contra o capital agrário.

Uma luta que tem chamado muito a atenção em Minas é pela Fazenda de Ariadnópolis, no Sul de Minas. No que ela consiste?

Estamos há quase 20 anos nessa fazenda, que era uma usina falida, que deve mais de R$ 80 milhões ao estado, União, bancos. Temos mais de 400 famílias nesse lugar, cerca de 2 mil pessoas em um latifúndio onde só havia meia dúzia de trabalhadores, um usineiro e alguns gerentes ganhando dinheiro às custas de corrupção. Nós produzimos em toda a fazenda, com produção orgânica totalmente diferenciada. Tem escola, tem trabalho, nós construímos nossa dignidade lá. Sem dúvidas, é um grande exemplo da diferença que faz em uma região a reforma agrária, que substitui um modelo concentrado pela participação de milhares de pessoas em um projeto. É possível fazer isso em todo o país.

Onde está o MST no estado atualmente?

Nós expandimos o MST a partir de 88 e ficamos nos vales do Jequitinhonha, Mucuri e Rio Doce até 1994. Hoje, também estamos no Triângulo Mineiro, Sul de Minas, Norte de Minas, Região Metropolitana, Zona da Mata e Centro-Oeste. Cada regional tem sua coordenação e todas participam da coordenação estadual. Em Minas, temos 1600 famílias assentadas, que têm terra; temos aproximadamente 5 mil famílias acampadas. Juntando tudo, dá aproximadamente 20 mil pessoas.

O mais importante é que nós fazermos parte de uma organização nacional, que agrega 23 estados e o Distrito Federal. Isso, na história do país, é muito grande. Temos mais de 30 anos e somos o primeiro movimento na história do Brasil que dura esse tempo todo! Somos fruto de Canudos, das Ligas Camponeses. O que a gente aglutinou é uma experiência enorme. Temos a Escola Nacional Florestan Fernandes, que agrega centenas de militantes se formando todos os dias, somos referência internacional. Temos a maior produção agroecológica de arroz da América Latina. Nós construímos em BH o Armazém do Campo, que é uma grande referência de distribuição de produtos orgânicos. Em março, começamos o programa de alfabetização de adultos chamado “Sim, eu posso”. Nele, temos 100 turmas em sete municípios mineiros.

Não somos só uma referência para ocupar terras, mas na produção agroecológica, na educação do campo, na formação de lideranças. No nível nacional, formamos aproximadamente 9 mil trabalhadores do campo na graduação, mestrado e doutorado em geografia, medicina, veterinária, história, agronomia, sociologia e outros cursos. Isso não seria possível sem o MST, pois a sociedade não nos incluiria na universidade.

Vivemos uma conjuntura de golpe de Estado e retirada de direitos. Qual o ensinamento que o MST traz para quem pretende enfrentar o golpe?

Em primeiro lugar, nós construímos um coletivo de direção. O MST não tem uma estrutura presidencialista. Tudo o que resolvemos nas comissões de acampamento, assentamento, de setores, na produção, na educação, tudo é resolvido coletivamente. Nós construímos uma direção coletiva. Temos que romper com o personalismo. A burguesia sabe que, se eliminar uma, duas, três lideranças, não vai adiantar. Aqui em Minas, já tentaram isso de várias formas. Há 15 anos, em Felisburgo, mataram cinco trabalhadores nossos. Mesmo assim, não acabaram com nosso movimento. Já prenderam lideranças, processaram, mas não adiantou. Isso acontece porque nós investimos bastante em formação. Tem que ter renovação dos quadros.

Outro grande aprendizado é a luta de massas. Não adianta querer resolver as coisas com negociação ou esperar que a gente vai sentar com a burguesia e um dia eles vão amolecer o coração. A pobreza só se resolve com grandes lutas de massas.

Além disso, a nossa direção tem vínculo com as bases. No dia em que a direção se afasta, a gente está lascada. As lideranças do Brasil têm que estar diretamente vinculadas com o povo, seja na área da reforma agrária, ou qualquer outra.

Outra questão importante é a unidade interna do movimento e com toda a classe trabalhadora e as organizações irmãs. Nós só existimos há tanto tempo porque recebemos muita solidariedade, fomos salvo por isso, pelo empenho de outros que também defenderam nossa causa. Não podemos nunca achar que vamos fazer as coisas por nossa conta. Aí, pegamos exemplos de outros países. O grande imperialismo não conseguiu derrotar Cuba pela sabedoria deles? Sim, mas principalmente por causa da unidade dos 12 milhões de cubanos. Por que a burguesia não consegue derrotar o MST? É por causa da nossa unidade e da clareza do nosso rumo.

A gente também está empenhado em construir um meio de comunicação dos trabalhadoras. A Globo se tornou o partido político da elite, que não tem unidade nem para lançar seu candidato a presidente. Quem faz o papel de partido deles é a Globo. Temos que construir vários meios para contrapor a essa hegemonia do capital. Então, veja a responsabilidade que o MST tem.

Se nós tivéssemos ficado só nas lutas corporativas das ocupações de terra, já teríamos garantido nossa morte política. Tivemos que trabalhar a formação política, um projeto nacional maior, a comunicação, etc.

Fonte: Brasil de Fato

 

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