Ex-Pajé estreou nesta semana no festival É Tudo Verdade, e vai ao circuito comercial no próximo dia 26
Cena do documentário Ex-Pajé, que conta a história de Perpara, indígena do povo Paiter Suruí, e seus conflitos religiosos / Divulgação
Nesta quinta-feira (19), data em que se celebra o Dia do Índio no país, ocorre o lançamento do documentário Ex-Pajé, do diretor Luiz Bolognesi, no festival “É Tudo Verdade”, em São Paulo. O filme retrata a expansão religiosa da Igreja Evangélica entre os povos indígenas, com foco no povo Paiter Suruí, que vive em territórios entre os estados de Rondônia e Mato Grosso.
Selecionado para o Festival de Cinema de Berlim, que aconteceu em fevereiro deste ano, o filme ganhou grande repercussão nacional e internacional. A obra questiona o tema da intolerância religiosa e do etnocídio, a partir da história de Perpera, um pajé que passou a viver grandes conflitos internos depois de ter tido contato com pastores evangélicos que demonizaram os saberes indígenas.
O Brasil de Fato conversou com Luiz Bolognesi, que já escreveu o roteiro e dirigiu outras obras com a temática indígena, como o documentário Terra Vermelha, sobre o massacre sofrido pelo povo Guarani Kaiowá, e o premiado desenho animado “Uma História de Amor e Fúria”, que conta a história do Brasil a partir do ponto de vista de um índio Tupinamba imortal.
O diretor destacou que a atual conjuntura política brasileira representa uma ameaça cada vez maior aos indígenas.
“A bancada agro querendo mais terra, e a Igreja Evangélica querendo mais almas. Há uma associação terrível de destruição da cultura indígena, na tentativa de aprovar leis que vão contra a demarcação de terras. Temer não tem assinado nenhuma nova terra indígena, está com vários processos parados em sua mesa, sendo que era uma tradição dos governos anteriores assinar demarcações na semana do Dia do Índio”, afirmou.
Na próxima semana, o documentário Ex-Pajé será exibido no Acampamento Terra Livre, grande manifestação que ocorrerá em Brasília, organizada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). O filme estreia no final do mês em salas de cinema por todo o país.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato – O você destaca do aprendizado que teve por meio do contato com os povos indígenas na produção do documentário?
Luiz Bolognesi – Teve alguns aspectos positivos e, evidentemente, um aspecto negativo que está muito registado no filme. Eu passei um mês convivendo com os Paiter Suruí no território indígena, e a gente tem muito a aprender com eles, da maneira como eles vivem, por meio de uma economia absolutamente ecológica, preservando a floresta, sobrevivendo com as hortas e colheita, toda uma maneira de viver muito harmônica. Os rios deles estão vivos, eles pescam, e isso não existem nas nossas cidades. É uma maneira muito interessante de viver sem o excesso de consumo, algo que precisamos aprender.
Outra coisa muito interessante é como eles se relacionam com o tempo, nós sempre estamos correndo atrás do relógio, atrasados, e no final do dia temos uma sensação de culpa por não dar conta de tudo o que tinha que fazer. Estamos sempre frustrados em relação ao tempo, e eles tem uma relação em que eles são senhores do tempo, enquanto nós somos escravos do tempo. Eles tem rituais de convívio muito tranquilos em relação ao tempo. Um exemplo disso é que eu via todos os dias, antes de trabalhar, a matriarca da aldeia, mãe de muitos filhos, fazendo um longo café da manhã, de quase uma hora, conversando, trocando ideia, dando risada, e depois de um bom tempo eles saíam para trabalhar. Esse modo de lidar com o tempo produz uma sociedade muito menos estressada. Então acho que nesse “Dia do Índio”, uma reflexão importante é que nossa civilização precisa aprender com as civilizações que existiam aqui antes dos europeus chegarem. São centenas de povos, herdeiros de culturas milenares, que têm muita ciência.
Já o lado negativo e frustrante são as questões de aculturação que eles vivem. Hoje a principal ameaça à eles são as Igrejas Evangélicas, que estão entrando nas aldeias, que levam algumas coisas positivas à eles, mas, sobretudo, impõem a fé religiosa e Jesus, demonizando e perseguindo os pajés, dizendo que tudo o que eles fazem é coisa do diabo. Que eles não podem mais tocar as flautas, fazer as rezas, fazer as festividades, destituindo deles um poder que passa de um por outro há mais de quatro mil anos. Isso gera um processo de destruição da cultura, porque o pajé é o centro da cultura indígena, não apenas o sacerdote mas um grande cientista, o cara que conhece as plantas, conta as histórias e os mitos para as crianças. Quando você destrói esse grande centro de saber e religiosidade, a cultura como um todo começa a desaparecer. Acho que isso foi o grande aprendizado que eu tive desse processo, e o filme reflete tudo isso, do ponto de vista de um ex-pajé, que na verdade nunca deixou de ser pajé, que se chama Perpera. O filme acompanha o sofrimento dele nesse processo violento de guerra psicológica e destruição do seu conhecimento, e proibição de ele agir como pajé.
Você acredita que na atual conjuntura política, e também com as Bancadas Evangélica e Ruralista, essa destruição da cultura indígena está mais eminente?
Sim, a gente tem uma atitude da Bancada Evangélica e da Bancada do Agro muito violenta. O agro, querendo a terra, aumentar sua fronteira de plantação e seus ganhos, e a Igreja Evangélica querendo mais almas. Há uma associação terrível de destituição da cultura indígena e da tentativa de aprovar leis que vão contra a demarcação de terras indígenas. O Michel Temer não tem assinado nenhuma nova terra indígena, tem vários processos na mesa dele e na do Ministro da Justiça. Era uma tradição que vinha desde o governo de Fernando Henrique Cardoso, e de Lula e Dilma Rousseff, e agora nesse governo não está se assinando nada, a não ser uma série de medidas tramitando no Congresso para substituir os direitos dos povos indígenas. Por isso que semana que vem esses povos farão um grande acampamento em Brasília, o acampamento Terra Livre, para lutar pelos seus direitos, solicitar as demarcações. Aumentou também a violência no campo contra indígenas, mas, por outro lado, há também um fortalecimento do processo de resistência. Hoje as lideranças indígenas estão muito organizadas, eles se chamam de parentes e estão organizados para lutar pela sobrevivência de sua cultura, para que não seja varrida, e de seus próprios corpos.
Como tem sido a recepção do documentário?
O filme foi selecionado para o Festival de Berlim, o que para nós é uma surpresa muito grande, porque é um selo de qualidade incrível emprestado ao filme. Lá tivemos quatro sessões com salas lotadas, muitas matérias em jornais europeus, criticas muito boas. Lemos um manifesto feito pelas lideranças indígenas e pelos pajés conta a intolerância religiosa lá em Berlim. Isso teve uma repercussão muito grande na mídia internacional e nacional. Ou seja, o filme conseguiu dar muita visibilidade para essa voz, esse manifesto, esse lugar de fala das lideranças indígenas. Então a repercussão internacional foi muito boa, e no Brasil está começando agora, com uma sessão que fizemos ontem no Rio de Janeiro, e hoje tivemos duas sessões em São Paulo. No dia 26 de abril o filme entra em cartaz. Também fizemos uma sessão na própria aldeia, que foi muito forte, e também tinha um clima de certo constrangimento, porque como eles se tornaram quase todos evangélicos, os pastores viraram o olhar deles contra o filme. Mas eles viram o filme, lotaram a sessão, e tivemos um debate muito rico. Eles terminaram dizendo que gostaram muito do filme e que não viram nenhum ato contra a Igreja Evangélica e contra os pastores. De fato, o filme não tem essa pegada, ele não poderia falar de intolerância religiosa e ser intolerante. Mas foi uma questão bastante delicada. Daqui a pouco liberaremos os filmes para serem passados nas aldeia, e na semana que vem exibiremos o filme no Acampamento Terra Livre para as próprias lideranças indígenas. Será muito rico, eu estou super ansioso por isso.
Qual a importância da cultura para a divulgação dos saberes indígenas?
A meta do meu trabalho é traduzir e expressar os pensamentos e angústias dos povos indígenas hoje, mas eles são capazes, e sempre foram, de se expressar nas nossas ferramentas. Temos muitos índios escritores, temos índios cineastas, índios fazendo hip hop, funk. Então eles são capazes de ser autores de sua própria voz, e estão lutando e conquistando esse espaço. Eles têm competência para isso e acho muito importante que sejam autores de suas próprias obras.
Fonte: Diego Sartorato/Brasil de Fato