Por que Bolsonaro odeia professores?

por Vitor Bemvindo

Foto: UJS

A cultura do ódio e da violência tem sido a principal marca da campanha à presidência de Jair Bolsonaro. O culto à violência e os ataques às minorias sociais, étnicas e de gênero, tem omitido outro alvo preferencial dos ataques da família Bolsonaro: os professores. Desde 2014, o clã bolsonarista apadrinhou os projetos de lei “Escola Sem Partido”, com o pretexto de combater uma pretensa doutrinação marxista e a “ideologia de gênero” nas escolas. Ao abraçar essa proposta, Bolsonaro e seus filhos elegeram os professores como os verdadeiros culpados pelo fracasso do sistema educacional brasileiro.

Analisando o programa de governo de Jair Bolsonaro esse ataque aos professores se percebe de forma mais nítida. A maior parte das propostas apresentadas para o campo da educação são reativas e não propositivas de fato. O que mais se percebe é a obsessão por combater: combater Paulo Freire, combater a “doutrinação”, combater a “ideologia de gênero”. É importante que fique claro que esse combate na verdade está ligado à profissão docente, à liberdade de cátedra, à autonomia universitária. A educação que os Bolsonaros defendem é a que não permita que qualquer professor se posicione de forma crítica, que não tenha a liberdade de abordar os conteúdos de sua área do conhecimento através do referencial teórico que lhe convenha e que não toque em temas suscitem a reflexão sobre temas fundamentais como garantia de diretos, cidadania, diversidade cultural e sexual, dentre outros.

O argumento do discurso é moral, para não dizer moralista. Mas esses elementos servem apenas de cortina de fumaça para ocultar o verdadeiro modelo educacional defendido pelos Bolsonaros. Segundo a Constituição Federal e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira, a educação tem como finalidades “o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. O plano de Bolsonaro, segundo as diretrizes expostas em seu programa, é reduzir essas finalidades apenas a uma: a qualificação para o trabalho. Todos os elementos que visam o desenvolvimento integral do educando e o exercício da cidadania devem ser eliminados do processo educacional sob o argumento de serem de responsabilidade exclusiva da família. Mas trata-se apenas de uma figura retórica para reforçar um modelo educacional desigual que sempre marcou a educação no Brasil.

As ideias de Bolsonaro para a educação encontram aqui a concepção liberal de educação, que desde os primeiros momentos da hegemonia política da burguesia na Europa, marcaram os sistemas educacionais por uma dualidade estruturante que reflete as demandas da divisão social do trabalho. Nessa lógica, os trabalhadores e os capitalistas, por exercerem funções distintas no processo produtivo, devem passar por processos formativos distintos. Enquanto os pobres devem ser preparados para executar trabalhos simples, em sua maior parte manual, os filhos das elites devem ser preparados para o trabalho intelectual: o de dirigir, controlar, organizar, etc. Aí está a maior marca dos sistemas educacionais de influência liberal: a dualidade estrutural.

Essa ideia não é nova, remete ao fim do século XVIII, quando Adam Smith proclamou que “educação para os trabalhadores sim, porém em doses homeopáticas”. Tanto para os liberais clássicos, quanto para os neoliberais, a educação para os trabalhadores deve ser utilitária para o trabalho. Essencialmente, a educação básica deve se ocupar de ensinar a ler, escrever e calcular. Tudo que estiver para além do desenvolvimento desses aspectos é supérfluo, inútil, perda de tempo. Não é a toa que os processos de avaliação internacional da qualidade da educação tem como parâmetros exclusivos o nível de apreensão de conteúdos nas áreas de línguas, matemática e ciências.

A hegemonia neoliberal, construída a partir dos anos 1990 no Brasil, não foi capaz de estabelecer padrões mínimos de compreensão nem mesmo para essas áreas prioritárias. Sendo assim, o projeto ultraneoliberal, que desde o governo Temer se apresenta, pretende dar conta disso na marra. A intenção é reduzir de forma brusca a carga horária de qualquer disciplina que desenvolva noções de cidadania e focar cada vez mais no ensino instrumental de português, matemática e ciências para o trabalho. A escola pública deve deixar de abordar questões sociais, políticas e culturais e se voltar diretamente para as demandas do mercado de trabalho. Qualquer coisa fora disso deve ser combatida. É esse o espírito da Reforma do Ensino Médio aprovada por Temer sem qualquer discussão com a sociedade e que Bolsonaro pretende aplicar, extirpando qualquer possibilidade uma educação crítica, transformadora, emancipadora.

A necessidade de formar cada vez mais trabalhadores qualificados e dóceis emerge principalmente das transformações recentes do capitalismo, na qual o trabalho se torna cada vez mais um privilégio (o “privilégio da servidão”, nas palavras de Ricardo Antunes). O trabalhador atual precisa se adequar a um mercado de trabalho cada vez mais “flexível”, no qual as relações de patrão e empregado são tão fluidas que muitas vezes é difícil para o trabalhador saber para quem ele está trabalhando. A extirpação do pensamento crítico na educação pública tem a ver com necessidade de não se contestar a retirada progressiva de direitos que vem sendo imposta ao conjunto dos trabalhadores brasileiros. O pensamento crítico é nocivo à progressiva precarização das relações de trabalho, à terceirização irrestrita, à “pejotização”, à “uberização” e todas as novas formas de superexploração do trabalho que vem sido eufemizadas pela ideologia do empreendedorismo.

Aliás, a ideologia do empreendedorismo é a única com a qual Bolsonaro não se ocupa de combater. Pelo contrário, o plano de governo pretende incentivar. Justo a forma mais perversa de doutrinação feita dentro das escolas públicas na atualidade. Não é raro ver empresas, startups, ONGs, dentre outras instâncias, vendendo a ilusão para os estudantes pobres das redes públicas de ensino que o sucesso está ao alcance de suas mãos e que, independente do contexto histórico-social em que ele esteja inserido, basta se esforçar muito para que sua condição social seja alterada. Num país desigual como o nosso, esse tipo de doutrinação é ainda mais perversa, ao criar a ilusão de que podemos viver em um mundo em que todos serão patrões de si próprios. Para validar essas ideias, são mostrados exemplos de empreendedores de sucesso, que saíram do “nada” para se tornarem referenciais do sucesso. Porém, em nenhum momento se mostra a maior parte dos casos de fracasso que se acumulam em nossa sociedade. Para que esses contraexemplos aparecessem nas aulas de empreendedorismo, seria necessário o pensamento crítico, que para Bolsonaro, deve ser eliminado das escolas.

“Ninguém quer saber de jovem com senso crítico”, disse Jair Bolsonaro, em Vitória, no dia 31 de julho último. Para isso, o candidato pretende “expurgar a ideologia de Paulo Freire” ou de forma mais direta, como ele mesmo disse na mesma palestra na capital capixaba, “entrar com um lança-chamas no MEC e tirar Paulo Freire de lá de dentro [sic]”. Esse ódio ao patrono da educação brasileira, em última medida, é ódio que o candidato tem aos professores, principalmente aos que ousam dizer “quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor” ou “Educação não transforma o mundo. Educação muda pessoas. Pessoas transformam o mundo”.

Bolsonaro não quer uma educação que transforme, mas sim uma educação que mantenha as desigualdades sociais como naturais e que coloque o trabalhador no seu lugar: o de submissão. Para isso, a militarização das escolas é um processo fundamental. As escolas militares têm como princípio pedagógico central a disciplina militar, o respeito às hierarquias, o cumprimento de ordens sem direito ao contraditório. Esses elementos são centrais no processo de docialização dos trabalhadores e antes de ter um objetivo cívico, tem um objetivo disciplinador, de vigilância. Que capitalista não gostaria de ter um trabalhador incapaz de questionar uma ordem?

Como forma de combater o pensamento crítico, Bolsonaro propõe também expandir a educação à distância (EAD), desde o ensino fundamental, em especial em áreas rurais (porém não faz qualquer menção em como expandir os recursos tecnológicos necessários para implementar tal proposta). Mais recentemente, em uma transmissão pela internet, ele deixou claro que o principal objetivo dessa expansão da EAD é reduzir custos com professores, merendeiras, funcionários e estrutura escolar. Bolsonaro quer tirar os estudantes da escola, afastá-los dos professores, impedi-los de terem acesso ao convívio com os demais alunos. Sem falar que, em muitos casos, as refeições feitas pelos estudantes na escola são fundamentais para eliminar a fome e a desnutrição. Mas isso, não importa para o candidato. Tampouco as condições das mães que trabalham todo o dia e certamente não teriam como acompanhar o desenvolvimento escolar de seus filhos que agora passariam a estudar em casa. Para ele o que importa é reduzir custos.

Essa preocupação com os custos pode até parecer algo razoável na visão de um gestor público. Realmente a questão do financiamento da educação no Brasil precisa ser revisto. A questão é que Bolsonaro não só votou favoravelmente a Emenda Constitucional, que limita os recursos para os serviços públicos (entre eles saúde e educação) pelos próprios 20 anos, como também afirma em seu projeto que pretende mudar a educação brasileira com os mesmos recursos aplicados atualmente. Isso significa que não haverá qualquer política de valorização salarial dos professores, nem um processo de melhoria das estruturas das escolas. Esses temas sequer são mencionados no programa de governo. Para ele é possível fazer mais com o recurso disponível, o que demonstra claramente uma total falta de noção da realidade da educação pública brasileira. Essa é face mais cruel da responsabilização dos professores feita por Bolsonaro.

Por fim, o projeto de aprofundamento da dualidade estrutural da educação brasileira proposto pelo candidato do PSL, tem como foco também a universidade. O programa bolsonarista não traz propostas claras para o Ensino Superior, mas reportagem publicada no portal Terra deixa claro que Bolsonaro quer instituir a cobrança de mensalidades em universidades federais, interrompendo de vez com o processo de democratização das instituições de ensino superior. Além disso, o candidato já se posicionou contrário à políticas de cotas o que deve dificultar ainda mais o acesso dos filhos da classe trabalhadora à universidade. Isso garantirá o projeto neoliberal de reservar o ensino superior à formação dos filhos das elites.

Senão fosse suficiente, segundo a mesma reportagem, a equipe de Bolsonaro pretende interferir na nomeação de reitores com o claro objetivo de limitar a autonomia universitária. Essa medida abre caminho para a perseguição de professores que se posicionarem de forma distinta aos valores pregados pelo presidenciável, impondo claro perigo às pesquisas relacionadas a estudos de gênero ou que sejam referenciados em teorias do campo crítico. O consultor para assuntos de educação da campanha bolsonarista, Stavros Xanthopoylos, declarou recentemente que pretende cortar recursos das pesquisas do campo das Ciências Humanas, afirmando não ser possível “ter mil pesquisas numa área que teoricamente não tem significância nenhuma para o desenvolvimento científico do país em termos de valor intelectual agregado, que vai trazer elementos econômicos e puxar cadeias produtivas, e ter praticamente zero ou pouquíssima coisa nessa área”. O discurso demonstra um evidente desconhecimento sobre a produção acadêmica brasileira, além de abrir as portas para a perseguição do pensamento crítico dentro das universidades.

Um eventual governo de Jair Bolsonaro representará um grande retrocesso à já combalida educação pública brasileira. A responsabilização e criminalização dos docentes será a face mais perversa de um processo que já oprime, explora, agride e adoece os professores. Será a efetivação de um projeto de quebra de confiança completa entre alunos e mestres. A desvalorização e precarização da profissão já imposta pelo projeto educacional neoliberal será legitimada agora por um discurso de ódio aos professores.

Mas é importante que se saiba que nenhuma dessas propostas será implementada sem resistência. Se o projeto bolsonarista fere a nossa existência, o enfrentaremos não só nas urnas, mas num eventual governo.

O projeto de Bolsonaro quer criar uma cultura do ódio, da ignorância, na qual uma mensagem de WhatsApp ou um vídeo postado no YouTube tenha mais credibilidade que a posição de um professor. Os professores são uma ameaça real ao projeto bolsonarista, porque são eles que falam da história, da cultura. São os professores que nos ajudam a questionar as injustiças, as opressões e as explorações. São os professores que nos apresentam a ciência, o desenvolvimento tecnológico. Tudo isso é uma ameaça ao “mito”. E é por isso que Bolsonaro odeia professores.

* Vitor Bemvindo é professor da Faculdade de Educação da UFBA

Fonte: Esquerda Online

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