Com Mourão à frente, os generais empurram Bolsonaro à velha política no Congresso. Ele vai ceder?
Jair Bolsonaro voltou de Israel, onde declarou que “não há dúvida” de que o nazismo era de esquerda, notável exibição mundial de falta de superego, e depois foi seu vice quem saiu, para os Estados Unidos. Hamilton Mourão foi se encontrar, em Washington, com Mike Pence, o vice de Donald Trump, e participar na Universidade Harvard, em Boston, de uma conferência anual sobre o Brasil, organizada por alunos nascidos aqui. Na capital americana fará também uma palestra, nesta terça-feira 9, no Wilson Center, um think tank comandado por um brasileiro, o jornalista Paulo Sotero. “Os 100 primeiros dias do governo Bolsonaro têm sido marcados pela paralisia política, em larga medida devido às sucessivas crises geradas pelo círculo mais próximo do próprio presidente, se não por ele mesmo”, diz o convite do think tank aos interessados em ouvir o general. “No meio da barulheira política, o vice-presidente Hamilton Mourão tem emergido como uma voz de razão e moderação, capaz de prover direção em assuntos domésticos e de política externa.”
Se tem sido um vice intrigante desde o início do governo, a visão sobre ele nos EUA reforça o mistério. Que pretende fazer Mourão com a liderança política paralela que tem construído? Após namorar a elite econômica, vide sua recente ida à Fiesp, onde defendeu tudo o que o empresariado quer, o general aposentado desfilará no país de Tio Sam no figurino “voz da razão” de alguém capaz de ditar os rumos. E em um momento de tensão de Bolsonaro com o Congresso. A popularidade do governo entre deputados e senadores vai pior que nas ruas, conforme uma pesquisa da consultoria Arko Advice: 28% de avaliação positiva em março (39% em fevereiro) e 33% de negativa (22% antes). Em um Ibope do mês passado, era de 34% e 24%, respectivamente.
Além de namorar a elite econômica, a mesma que conspirou para derrubar Dilma Rousseff, Mourão agora flerta com a “velha política”. Na quarta-feira 3, recebeu parlamentares do PRB, partido cuja estrela maior, o prefeito do Rio, Marcelo Crivella, terá de sobreviver a um impeachment aberto com apoio e voto do vereador Carlos Bolsonaro, filho do presidente. Em seguida, defendeu distribuir cargos a todos os que apoiem a reforma da Previdência, uma batalha decisiva nos rumos do governo e do País. O oposto do que Bolsonaro quer. “No momento em que esses partidos estejam concordando com o que o governo pretende fazer, é óbvio que terão algum tipo de participação, sejam cargos nos estados ou em algum ministério”, disse.
Mourão parece outro. Em dezembro de 2017, foi ao Clube do Exército. Michel Temer recém escapara de duas denúncias criminais da PGR, graças aos deputados, e foi atacado pelo general. Montou um “balcão de negócios” no Congresso, disse Mourão. Este era secretário de Finanças do Exército. Temer cobrou sua cabeça. O então chefe do Exército, general Eduardo Villas Bôas, assinou a demissão, publicada em 11 de dezembro. E aí houve algo estranho. Mourão continuou a assinar atos como secretário. Nomeava e demitia, autorizava gastos sem licitação. Só parou ao entrar para a reserva, em 28 de fevereiro de 2018. Na Advocacia-Geral da União, há quem veja nulidade total daqueles atos de Mourão, especialmente os relacionados a grana. Segundo o Exército, um decreto de 1996, o 2.040, respalda tudo. Mourão foi exonerado, mas seu desligamento efetivo dependia de ordem superior. No caso, de Villas Bôas, hoje assessor especial de Bolsonaro.
Na semana passada, CartaCapital contou outra história estranha sobre Mourão. Corre no “mercado”, em São Paulo, que ele pediu 25 mil reais ao anfitrião de um evento do qual participou no mundo das finanças durante a eleição. Não foi atendido, dirigiu-se ao representante de um banco que estava no mesmo evento e aí saiu o dinheiro. Pedidos que o general, por meio de sua assessoria de imprensa, nega “de maneira enfática” ter feito.
Mourão não é o único militar a pregar que o governo se acerte com a “velha política”. Ministro da Secretaria de Governo, um dos auxiliares presidenciais na lida com o Congresso, o general Carlos Alberto dos Santos Cruz, vai nessa toada. “Temos que dar crédito para o nosso Congresso”, afirmou na Folha de 30 de março, “a indicação política é normal em qualquer lugar do mundo.” Será que a ala fardada do poder se converteu de coração ao jogo político? Ou é medo? A proposta da equipe econômica de alteração da Previdência militar economiza 90 bilhões de reais em dez anos, ao fazer com que a categoria trabalhe por mais tempo e tenha desconto maior no holerite. Mas o governo propôs ao mesmo tempo um aumento de salário para a carreira, custo de uns 80 bilhões em uma década. Na prática, o sacrifício dos quartéis seria de cerca de 1 bilhão por ano. Ninharia perto do rombo anual de 40 bilhões. Segundo aquela pesquisa Arko Advice sobre o humor dos congressistas, 49% deles acham ruim ou péssima a reforma dos militares.
As declarações de Santos Cruz na direção do Parlamento não fizeram dele um ídolo imediato. Na terça-feira 2, o ministro foi ao Senado almoçar com alguns senadores, a convite destes. Um dos presentes comentou em seguida, a portas fechadas, que o general gosta mais de falar do que de ouvir, é dado àquele tom de quem veio para ensinar. “O general Santos Cruz ofende de maneira brutal o nosso presidente: insinua que ele não tem maturidade para escolher sensatamente seus amigos e precisa, portanto, de um tutor, o próprio Santos Cruz.” Palavras escritas na web pelo guru ideológico do bolsonarismo, Olavo de Carvalho, reação do “filósofo” ao adjetivo “desequilibrado” que o general lhe tascou não faz muito. “O truque do Santos Cruz é camuflar sua mediocridade invejosa sob trejeitos de isentismo e acusar de ‘extremista’ quem o supera intelectualmente.”
Espantoso um bate-boca desses nas barbas presidenciais. Bolsonaro avaliza os ataques do “guru” aos generais? Em março, Carvalho tachou Mourão de “idiota” e, no dia seguinte, em um jantar nos EUA, Bolsonaro definia o “guru” como um de seus “grandes inspiradores”. Em 15 de outubro de 2018, eleição a mil, Bolsonaro foi a um evento do Bope no Rio e declarou: “Tô dando continência pro coronel, mas quem vai mandar no Brasil serão os capitães”. Capitães como ele, não generais como Mourão, Santos Cruz e companhia. “A morte de Jair Bolsonaro não interessa somente aos inimigos declarados, mas também aos que estão muito perto. Principalmente após sua posse!”, escreveu Carlos Bolsonaro no Twitter em 28 de novembro.
O PSL, partido do presidente e dos laranjas, também é uma bagunça. Seu líder na Câmara, o Delegado Waldir, de Goiás, não é fã da reforma da Previdência. Razões corporativas. Os policiais se dão mal. Foi preciso a cúpula entrar em campo para deixar no ar a possibilidade de serem punidos aqueles deputados que votarem contra. Se dependesse de Waldir, nada. Parte da bancada, aquela mais neoliberal, quer tirá-lo da liderança. Ali há gente com um maquiavelismo ingênuo. Uma figura graúda do PSL acha que Bolsonaro devia dar os cargos pedidos pelos partidos fisiológicos e demitir todos logo após uma eventual aprovação da reforma. “Ideia” soprada a um deputado da oposição. Ingenuidade. Uma coisa dessas até poderia ser tentada, mas jamais verbalizada. Só alimenta as desconfianças do Congresso em relação ao presidente.
Foi nesse clima de desconfiança que Bolsonaro sentou-se no Planalto com o suprassumo da “velha política”. Tête-à-tête com gente de grande quilate. Romero Jucá, líder dos governos FHC, Lula e Dilma no Senado, o “Caju” para os corruptores da Odebrecht, presidente do MDB. Gilberto Kassab, visitado em casa pela Polícia Federal (PF) em dezembro, fundador e chefe do PSD, que não é nem de direita nem de esquerda – é do poder. Geraldo Alckmin, comprador, ou melhor, conquistador do apoio eleitoral em 2018 do “Centrão”, hoje comandante do PSDB e apresentador de tevê. ACM Neto, cujo falecido avô era o senhor da Bahia durante e após a ditadura, atualmente prefeito de Salvador e dirigente máximo do DEM. Ciro Nogueira, cacique da sigla campeã de rolos na Operação Lava Jato, senador investigado pela PF por suspeita de o seu PP cobrar propina de planos de saúde no governo Temer. O papo, individual com cada partido, foi na quinta-feira 4 e não havia informação a respeito até a conclusão desta reportagem.
Na véspera, Onyx Lorenzoni, chefe da Casa Civil, outro na linha de frente da lida com o Congresso, um deputado sem fãs entre os pares, dizia que Bolsonaro iria se abrir, convidar os interlocutores a fazer parte da base governista. Uma figura de proa da “velha política” era puro ceticismo pelos corredores do Congresso. Para ela, a relação dos parlamentares com Bolsonaro iria piorar depois do tête-à-tête. Motivo: não dava para acreditar na conversão do ex-capitão ao jogo político, nem que ele oferecesse espaço e cargos no governo. Chefes partidários, continuou o figurão, não querem saber de posar para foto com o mandatário, querem coisas concretas para levar aos correligionários.
Se o presidente aparecer para um tête-à tête, sua relação com o Congresso vai piorar, diz um veterano da velha política
Bolsonaro foi forçado a aceitar a maratona de reuniões. Os congressistas tentam domesticá-lo na marra. Uma das maiores autoridades quando o assunto é o humor do “Centrão”, a bancada da fisiologia, o deputado Arthur Lira, do PP de Alagoas, disse à Folha, na terça-feira 2, que os parlamentares “não são empregados do governo para ter que aprovar o que ele manda”. Cobrou do ex-capitão que mergulhe pessoalmente na articulação política, se quiser aprovar reforma da Previdência. E que comece pela degola do líder do governo na Câmara, o desprestigiado Major Vitor Hugo, do PSL de Goiás. Calou fundo no “Centrão” a declaração de Bolsonaro sobre a recente prisão preventiva, já revogada, de Temer. Bolsonaro comentou que não teria o mesmo destino de ex-presidentes, caídos em desgraça por, na visão dele, sucumbirem a certos acordos políticos. Para Lira, “ele quis demonizar a articulação política”, pois acredita que o apoio nas redes sociais da web salva o governo. “A gente tem tido muita parcimônia e paciência”, afirmou.
Outra do Congresso: não é só mexida na Aposentadoria Rural e no BPC que não passa na reforma da Previdência. A criação do regime de capitalização, como quer a equipe econômica, também não. Aviso dado por ninguém menos que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, mais reformista do que o próprio presidente. “O sistema chileno não vai ser aprovado aqui na Câmara”, disse em público na terça-feira 2. Capitalização é assim: o trabalhador tem uma conta em um banco, bota mensalmente uma quantia nela e descobre no futuro quanto receberá ao se aposentar, enquanto o banco lucra hoje com o dinheiro depositado. É o fim do sistema solidário, em que o trabalhador da ativa, com suas contribuições ao INSS, banca o benefício dos inativos, pagamento complementado com verba do governo.
Mais uma do Congresso: o Senado repetiu a Câmara e, também de forma relâmpago, aprovou a proibição de o governo segurar dinheiro destinado a obras incluídas no orçamento por bancadas estaduais de parlamentares. Foi na quarta-feira 3, justamente enquanto o ministro da Economia, Paulo Guedes, defensor de o governo ter a maior margem possível no manejo de grana, estava em um debate na Câmara sobre a reforma da Previdência. Como os senadores mexeram no texto aprovado pelos deputados, haverá nova votação na Câmara, mas o caminho está traçado. Amarrar as mãos do governo, uma forma de enfraquecer o Planalto e de fortalecer o Legislativo.
A passagem de Guedes pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara mostrou que ele acertou ao fugir dali na semana anterior e preferir ir ao Senado. Sobrou confusão. A oposição bateu nele e na reforma sem que houvesse bolsonarista suficiente para blindá-lo. O “Centrão”, guarda-costas de governos quando bem tratado, fingiu-se de morto. O mesmo que tem sido visto, aliás, no plenário. Guedes foi ríspido. O debate terminou de forma lamentável. O deputado petista Zeca Dirceu, filho de José Dirceu, comentou que Guedes era “tigrão” com os pobres e (metáfora desrespeitosa para com um ministro) “tchutchuca” com os ricos. Guedes enfezou-se e mostrou por que no “mercado”, seu ninho, é descrito como enfezado e destemperado. “Tchutchuca é a mãe, é a avó, é a sua família.”
Àquela altura, perto das 20h30, mais de seis horas de debate, o “mercado” já havia fechado, mas não sem revelar receio de que a postura de Guedes, colocado na linha de frente da negociação da reforma, é uma ameaça à aprovação da proposta. A Bolsa caiu, o dólar subiu. “A votação da reforma da Previdência vai decidir o futuro do governo. Será plebiscitária, um referendo sobre o governo. O eleitor está com um Kinder Ovo nas mãos: votou na “arminha” do Bolsonaro e ganhou mudança nas aposentadorias”, diz Richard Bach, analista político da XP Investimentos, gigante do sistema financeiro, um setor que se emociona com mudanças no INSS feito Bolsonaro diante de um ditador.
Em um ambiente de tensão, qualquer coisa pode abalar o equilíbrio precário do governo Bolsonaro. Na terça-feira 2, a poderosa bancada dos fazendeiros anunciou apoio à reforma. Horas depois, seu o líder, o deputado gaúcho Alceu Moreira, do MDB, desabafava na Câmara. “Chega. Chegamos ao limite. Não dá mais. Acabou a paciência. Chega dos meninos Bolsonaro, não dá mais.” Estava revoltado com o primogênito do presidente, Flávio, ex-patrão do sumido Fabrício Queiroz. O motivo da revolta foi um tuíte escrito por Flávio, “quero que vocês se explodam”, uma mensagem a propósito do Hamas. O grupo islâmico condenou a visita de Bolsonaro ao Muro das Lamentações, localizado numa área de Jerusalém reivindicada pelos palestinos. A visita foi interpretada como apoio do Brasil à decisão de que a área seja de Israel.
A viagem do presidente foi uma ruptura com a histórica posição brasileira a favor da solução de dois Estados para o conflito árabe-israelense. Além da ida ao Muro, Bolsonaro anunciou a abertura de um escritório de negócios em Jerusalém – um recuo, aliás, já que ele prometia mudar para lá a embaixada hoje situada em Tel-Aviv. Os fazendeiros temem que países islâmicos, enfim, decidam retaliar e cortar a compra de alimentos brasileiros, principalmente carne. O embaixador palestino em Brasília, Ibrahim Alzeben, foi chamado pela chefia na Palestina, um clássico sinal de reprovação ao país-sede da embaixada. “O Brasil, lamentavelmente, acabou entrando no jogo eleitoral de Israel”, disse Alzeben ao site de CartaCapital. Nos próximos dias, haverá eleição legislativa em Israel, e o partido do premier Benjamin Netanyahu corre riscos. Netanyahu agora tem uma foto ao lado do líder do maior país da América Latina para usar na campanha.
Em lugar de uma embaixada, o capitão abre um escritório de negócios em Jerusalém. Medo da retaliação dos islâmicos?
Com tamanha inclinação por Israel, o Brasil vai perder, no jogo internacional, o apoio dos 50 países da Organização da Cooperação Islâmica e dos outros 50 da União Africana que gostavam mais da postura tradicional brasileira, teoriza uma antiga autoridade da área internacional do governo Temer. Adeus vaga como membro não permanente no Conselho de Segurança da ONU na eleição de 2022, diz esse analista. Um diplomata acrescenta: o Brasil comanda algumas missões de paz da ONU e, sem apoio árabe, vai ser difícil manter esse tipo de prestígio. Uma dessas operações é justamente no mundo árabe, uma Força-Tarefa Marítima no Líbano existente desde 2011. Sem guerra, as missões de paz são uma forma de as Forças Armadas brasileiras terem contato com novas tecnologias e conhecimento de guerra, comenta o diplomata. É por isso que, desde 2010, o Brasil tem, no Rio, o Centro Conjunto de Operações de Paz, dedicado a treinar brasileiros designados para missões de paz da ONU. Surpreende que generais do governo, como Mourão, Santos Cruz e Augusto Heleno, do GSI, todos ex-chefes de missões de paz, queiram a cabeça do chanceler Ernesto Araújo, outro a professar que o nazismo foi de esquerda?
Diplomacia à parte, a situação está esquisita em Brasília, comenta o experiente deputado Júlio Delgado, do PSB mineiro. Não existe “tesão” do governo com a reforma da Previdência, só de Paulo Guedes, diz, há desconfiança grande entre Bolsonaro e o Congresso, os empresários estão perdidos. “Há risco de golpe institucional, de qualquer um dos lados. O Congresso pode partir para um parlamentarismo branco em torno do Mourão, ou o Bolsonaro pode querer fechar o Congresso. Todas as instituições estão fragilizadas, até o Supremo, e aí sempre há risco de golpe institucional.”
Numa dessas, não se pode descartar nem um desfecho à Jânio Quadros, o presidente quem em 1961 renunciou com sete meses de mandato a acusar as “forças ocultas” e à espera de voltar nos braços do povo. “Eu também sou passageiro do Brasil, graças a Deus. Imagina ficar o tempo todo com esse abacaxi.” Palavras de Bolsonaro, ao se despedir de Israel.
Fonte: Carta Capital