Documentário de Petra Costa, que estreou no Netflix, traz um retrato para além do impeachment, que nasce incompleto porque o equilíbrio ainda é distante
31 de agosto de 2016. Dilma Rousseff desce pelo tapete vermelho do Palácio da Alvorada, sua residência oficial, cercada por um séquito de apoiadores. Estava preparada para fazer seu último discurso público como mandatária do Brasil. Chegava ao fim, dois anos antes da hora prevista, a presidência da primeira mulher eleita pelo país. Era o ato final de um período de turbulência que se arrastava havia anos. E também a despedida do Partido dos Trabalhadores (PT) do poder, lugar que a sigla de Luiz Inácio Lula da Silva ocupava havia 13 anos entre apoio apaixonado e rechaço fustigante de uma população dividida. Um poema de Maiakovski foi o desabafo final de Rousseff.
“Não estamos alegres, é certo,
Mas também por que razão haveríamos de ficar tristes?
O mar da história é agitado
As ameaças e as guerras, haveremos de atravessá-las,
Rompê-las ao meio,
Cortando-as como uma quilha corta as ondas“
A metáfora do escritor russo também cabe ao reconto do Brasil recente feito por Petra Costa (35 anos). A jovem cineasta retraça em seu documentário Democracia em Vertigem o agitado mar dos últimos anos da pós-redemocratização brasileira, que culminou na eleição do ultradireitista Jair Bolsonaro, em outubro de 2018. Uma sequência de fatos, que organizados para além dos fragmentos dos jornais, tem todos os elementos que caberiam a uma boa ficção: vilões, mocinhos, traidores, as reviravoltas de uma trama bem amarrada. Um material que sustentaria, pra entusiasmo dos seriéfilos, muitas temporadas no Netflix, a plataforma que produziu e comporta o filme de Costa. Mas a realidade tem raízes muito mais profundas que o maniqueísmo da ficção. A história não se isola no tempo, mostra Costa.
As explicações do impeachment de Rousseff e da eleição de Bolsonaro necessitam de um mergulho mais profundo. Para antes até da vida da própria cineasta —Costa, que nasce neste novo Brasil em abrupta mudança, é também protagonista do filme, assim como havia feito com o premiado Elena—. Os porquês começam na transformação de um país que na década de 70 ainda lutava para deixar para trás uma ditadura militar sangrenta, enquanto alça à liderança política um metalúrgico sindicalista, Lula, que 30 anos mais tarde se tornaria presidente. Passam por recontar os acertos do PT na área social. E os graves —e criminosos— erros na relação do partido com o Congresso. Chegam na eleição de Rousseff, uma candidata por acaso: “Ê, presidente, o senhor inventou essa”, diz Dilma a Lula em imagem recolhida pelo filme, quando celebram a primeira vitória dela, em 2010. Mais à frente, uma Dilma humana desabafa sobre os tempos de poder, em uma das muitas entrevistas reveladoras captadas pela cineasta, desta vez com a ajuda da própria mãe, também ex-militante contra a ditadura: “Tem coisas que são dificílimas pra mim. O que acontece é que nunca mais se pode ser inteiramente anônima e ter a imensa liberdade que a gente tem quando está na clandestinidade”.
As explicações sobre os novos erros do PT com o Congresso e com as suas bases nas ruas surgem em uma ótima entrevista de balanço do ex-ministro Gilberto Carvalho. Aparece também a inabilidade econômica de Rousseff diante de mudanças no cenário global. Ressoam nas traições de personagens a essa altura já quase esquecidos, como Eduardo Cunha, o presidente da Câmara que autorizou o processo de impeachment e, meses depois, acabou preso por corrupção, e Michel Temer. Pelos protestos nas ruas, que começaram em 2013 e se prolongaram até 2016 sem que se entendesse muito bem os motivos iniciais, pelas investigações da Lava Jato (e suas operações por vezes questionáveis) com o protagonismo do então juiz Sergio Moro. É só aí que se chega ao impeachment. E a um Power Point desastrado que coloca Lula como chefe de um esquema de “propinocracia”. E, então, Lula é preso. E Aécio Neves, o líder da oposição, é flagrado em um telefonema revelador que vaza à imprensa.
É assim que o fenômeno Bolsonaro se forma. Com as vias livres, o capitão reformado chega ao poder, numa conciliação que atendeu a uma direita defensora da democracia e a extremistas que rogavam pela volta dos militares. A história é cíclica e, no Brasil dos últimos anos, bastante revolta. Mas, para além dos capítulos da história, o filme de Costa é o retrato de um país que se forjou sobre uma base mambembe, que nunca se reconstruiu. “Fundada no esquecimento”.
Nos filmes, porém, toda história precisa ter um fim e Democracia em Vertigemnasce incompleto. Não por culpa do trabalho delicado da cineasta, que foi ovacionada em festivais como o Sundance, mas porque os balanços que começaram agitar os brasileiros com os protestos de 2013 ainda prosseguem como o fio de um novelo infinito. No exato dia em que o filme chegou à Netflix, o ex-juiz Sergio Moro, que aceitou a vaga de ministro da Justiça de Bolsonaro, prestava esclarecimentos no Senado sobre mensagens privadas, fora do processo, que trocou com os procuradores da Lava Jato responsáveis por condenações como a de Lula. A vertigem, essa sensação de que tudo gira tão rápido que o organismo social não consegue acompanhar, permanece. O equilíbrio ainda parece distante.
Assisti ao documentário ‘Democracia em Vertigem’ e recomendo sob todos os aspectos: artístico, histórico e cinematográfico. Mas um outro ponto me chamou mais atenção: o autobiográfico.
A cineasta Petra Costa é filha de Marília Andrade, herdeira da construtora Andrade Gutierrez, uma das maiores do País. Atacada por sites de extrema-direita pelo pecado do “berço de ouro”, Petra transformou seu lugar de fala em algo extremamente poderoso na narrativa.
Família conservadora de Minas Gerais, os Andrade preparavam a mudança para os Estados Unidos quando João Goulart anunciava suas reformas de base. Os pais de Petra, no entanto, eram militantes de esquerda e seu nome é uma homenagem a Pedro Pomar, assassinado na ditadura.
Com o golpe militar de 1964, os Andrade não fugiram para os Estados Unidos. Ao contrário, ficaram no Brasil e lucraram muito com as obras, algumas faraônicas, da época. Com o passar do tempo, corrupção e obras públicas viraram quase sinônimos, até que a bomba explodiu em 2013.
Os protestos de junho daquele ano já eram a preparação para a Lava Jato, que começaria em 2014, na guerra híbrida contra o Brasil. No ano da Copa, em que a Andrade Gutierrez construiu diversas arenas, o financiamento empresarial de campanha foi o pretexto para a derrubada do PT.
Enquanto setores da família Andrade lucravam com as obras públicas, que geravam as doações políticas, Petra e seus pais admiravam as conquistas sociais dos governos Lula e Dilma, mas criticavam as alianças com políticos corruptos e a ausência de uma reforma política.
Na Lava Jato, executivos da Andrade Gutierrez chegaram a ser presos, enquanto Petra rodava seu documentário. Nas eleições de 2018, muitos de seus parentes votaram em Bolsonaro, que gostaria que seus pais tivessem sido também assassinados na ditadura.
O filme, portanto, é também uma jornada pessoal de descoberta e autoconhecimento. Quem é Petra Costa? Quem são seus pais? O que sua família representa? O que é a sociedade brasileira? Quem somos nós? Como nossa individualidade se entrelaça com a história coletiva? Somos todos um?
Assista ao trailer:
Fonte: com informações do El País/Brasil 247