Como fica a assistência estudantil na UFMG frente ao ensino remoto e a pandemia?

por Lina Hamdan e Elisa Campos

Foto: Estado de Minas

Em meio a pandemia de coronavírus que já deixa mais de 100 mil mortos no país, fruto do desprezo pelas vidas do governo Bolsonaro e do descaso dos governadores e prefeitos nos estados e municípios, as reitorias das universidades públicas decidem antidemocraticamente o retorno de atividades através do Ensino Remoto Emergencial (ERE). Os dados da própria UFMG revelam que milhares de estudantes não tem acesso aos meios digitais, e os programas de inclusão propostos são insuficientes para uma garantia de acesso plena.

As aulas na UFMG e em outras universidades federais do país estão retornando através do modelo de Ensino Remoto Emergencial (ERE), o que configura, como discutimos aqui, um ataque aos estudantes e trabalhadores, que estão sofrendo com sobrecarga e demissões. Entre os vários problemas do ERE, a assistência estudantil é um debate bastante vivo e importante, visto que muitos estudantes mal têm internet e/ou computadores em casa. No caso da UFMG, a remediação precária desse problema através dos Auxílios Digitais se dá retirando o já escasso (graças ao subfinanciamento do governo Bolsonaro) dinheiro da assistência estudantil.

O Plano Nacional de Assistência Estudantil (PNAES) foi aprovado como um decreto em 2010, para destinar recursos à permanência e à conclusão de curso dos estudantes de baixa renda das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES). É esse programa o que destina as verbas para a assistência estudantil da UFMG e das demais IFES, e que se vê sob constante ameaça do governo Bolsonaro e Mourão, que já demonstraram inúmeras vezes como elegeram a educação pública como um dos seus principais alvos de ataques.

Mas esse problema não é recente. As universidades públicas sofreram progressivos cortes na educação, começando pelo governo Dilma (PT) e se aprofundando vertiginosamente após o golpe de 2016, com Temer (MDB), que instaurou a PEC do teto de gastos e restringiu o investimento em educação, saúde e previdência social. Hoje vemos ainda mais nitidamente que esse projeto partiu do pacto golpista da burguesia nacional em descarregar a crise nas costas da juventude e dos trabalhadores, elegendo Bolsonaro pela via de eleições manipuladas com auxílio do STF e apoio de diversos políticos golpistas como Dória, Zema, Witzel, Maia entre outros. Apesar das divergências existentes entre o bolsonarismo e esses setores sobre qual a melhor forma de levar adiante a condução da crise na pandemia, ambos são agentes da desastrosa política capitalista que prioriza os lucros e não as vidas dos trabalhadores e da população, e por isso são responsáveis pela mortalidade absurda causada pelo coronavírus, que mata em maioria os negros e os mais pobres.

Durante o governo Bolsonaro os ataques às universidades públicas se tornaram cotidianos, e vimos, principalmente com o ministro da educação Abraham Weintraub, que essa ofensiva se deve principalmente pela tentativa de negação do ensino superior gratuito aos jovens trabalhadores, negros e indígenas, que apesar de estarem em maioria ainda fora das universidades, já se expressam nelas principalmente por meio da política de cotas, que deveriam ser proporcionais ao número de habitantes negros e indígenas por estado e não em uma proporção escolhida por cada universidade.

Sabemos, no entanto, que não basta conseguir entrar nas universidades, o que já é uma dificuldade imensa por causa dos filtros sociais e raciais dos vestibulares que deixam milhares sem acesso ao ensino superior todos os anos. Precisamos conseguir permanecer nelas. A assistência estudantil sempre foi aquém da demanda dos estudantes, que passam por inúmeras dificuldades para conseguirem concluir sua formação, dividindo o tempo entre os estudos e trabalhar fora, ou vender alimentos e bombons nos corredores das faculdades. Em meio a pandemia essa situação se agravou ainda mais, pois além de perder o espaço físico de onde alguns conseguiam tirar um complemento de renda, o crescimento das demissões no país atingiu em cheio os jovens trabalhadores, muitas vezes estagiários em empresas e estabelecimentos comerciais.

Hoje são 57% os estudantes da UFMG que tem renda familiar total de até 5 salários mínimos, quase o dobro do que há dez anos, em 2008, quando eram 30%. Além disso, aqueles e aquelas que se declaram negras são 49,3%, quase a metade da UFMG, praticamente o dobro do registrado em 2008 (26,75%).

UFMG

Auxílios Complementares

Desde o começo da pandemia, com o fechamento dos restaurantes universitários em março, a reitoria da UFMG disponibilizou um Auxílio Emergencial e Complementar para os estudantes assistidos pela FUMP (Fundação Mendes Pimentel) nos níveis I, II e III, com um valor que, no entanto, é muito abaixo do preço de uma cesta básica em Belo Horizonte, e que ainda por cima diminui ao longo dos meses. Em maio, os estudantes que recebiam um valor de R$185,00 de Auxílio Transporte tiveram essa bolsa cortada em meio a crise. Ao observarmos os valores no quadro abaixo, percebemos que, a partir de julho, os estudantes nos níveis II e III passaram a receber menos do que o valor do Auxílio Transporte antes da pandemia.

Portanto, no momento de maior crise e dificuldade os estudantes se veêm com parcos recursos para se manter na universidade. Muitos já relatam ter voltado para as casas de familiares, nos interiores de Minas Gerais ou em outros estados, por não conseguir manter o pagamento dos alugueis.

Como se não bastasse, em julho a reitoria e o CEPE (Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão), decidiram unilateralmente pelo retorno das atividades por meio do Ensino Remoto, sem nem mesmo uma consulta à comunidade acadêmica e sem considerar os dados sobre as possibilidades de aceso digital dos estudantes. No início da pandemia a reitoria criou um Comitê de acompanhamento e combate ao coronavírus, que no entanto impediu a participação do maior setor da comunidade universitária, os estudantes, mostrando que apesar de discursar sobre democracia a reitoria não a garante nas próprias discussões internas. Assim, o DCE (Diretório Central dos Estudantes) criou junto à PRAE (Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis) e à FUMP um Comitê de acompanhamento dos estudantes, que por sua vez também não foi aberto para a participação democrática de outros estudantes que não os que já estivessem nele através do DCE.

Em reuniões, a PRAE e a FUMP apresentou ao Comitê dos estudantes a perspectiva de que os valores dos Auxílios Complementares diminuam ainda mais nos próximos meses. A FUMP se diz uma fundação sem fins lucrativos, mas a pergunta que não quer calar é por que os dados sobre o dinheiro recebido pelo governo e distribuído aos estudantes através da assistência estudantil e remanejado para os bandejões não são detalhados publicamente? Por anos a FUMP disponibiliza apenas o total recebido e remanejado, e já foram identificados pelos estudantes erros de cálculo básico na divulgação desses dados. Ainda, o DCE informou recentemente em um Conselho das entidades de base que os funcionários contratados pela FUMP, principalmente os dos bandejões, estão ameaçados de demissão, com omissão da reitoria e com um atraso dessa informação inclusive pelo próprio DCE. Precisamos que a FUMP disponibilize todas as suas contas abertamente, e informe amplamente sobre os funcionários que emprega, que acabam não sendo mais do que uma terceirização dos contratos da universidade, sobre os quais a reitoria não quer se responsabilizar. Não permitiremos que nenhum trabalhador que carregou os serviços essenciais da UFMG nas costas até aqui, seja colocado na rua em meio a pandemia.

Chamadas de Inclusão Digital

9.056 estudantes (28,1% das matrículas ativas na Universidade) não responderam ao Questionário de Acesso e Inclusão Digital organizado pela reitoria, o que significa que não é conhecida a situação dessa grande parcela dos estudantes. Dos que responderam, 4.102 (17,7%) precisam de Políticas de Inclusão Digital, um número muito grande de estudantes que, para conseguirem acompanhar minimamente o ensino remoto, precisarão de auxílio financeiro.

A UFMG ofereceu 5 chamadas para inclusão digital aos estudantes, cujo dinheiro é, no entanto, retirado do fundo já escasso da assistência estudantil:

Os estudantes estão com imensas dificuldades para conseguir efetivar os planos de internet e comprar os computadores em tempo hábil do início das aulas. É um grande absurdo que o calendário proposto pela reitoria (também sem o mínimo diálogo com sua comunidade em um momento tão difícil) não tenha considerado que o início das aulas só poderia se dar quando os estudantes tivessem o acesso garantido a elas.

Além disso, o notebook com os atributos exigidos pelo edital do auxílio tem um valor muito maior do que o valor de R$1500,00 oferecido. Com o dólar nas alturas, os equipamentos eletrônicos estão muito mais caros, e vários estudantes estão criando dívidas para conseguir comprar o aparelho. O edital não dá margens para a compra de tablets ou similares, e ainda dispõe que caso o estudante se desligue da universidade dentro de dois anos (se formando, por exemplo) o computador precisará ser devolvido à instituição, de forma que em alguns casos além de pagar uma parte pelo computador, o estudante terá que o devolver.

Por isso, além de pressionar a reitoria para que não deixe os estudantes à sua própria sorte, questionando o discurso sobre saúde mental e inclusão que sempre faz, mas que na prática rejeita, é fundamental que os estudantes, seus grupos e coletivos, todas as entidades estudantis como CAs, DAs e DCE, exijam que o PNAES (Plano Nacional de Assistência Estudantil), que abastece a assistência estudantil, seja urgentemente ampliado pelo governo. A reitoria deveria usar de todos os meios que tem para lutar por isso e conseguir garantir uma inclusão digital real, e não administrar a crise imposta por Bolsonaro, tirando dos estudantes mais vulneráveis, ou buscando acordos com grandes empresas, como o ainda obscuro acordo com a Microsoft. Pois essas empresas vem se aproveitando da crise e do avanço do ensino à distância na educação para ampliar seus lucros através da lógica de mercantilização da educação, que vai na contramão da luta histórica em defesa da educação pública.

Ao quê e a quem servem o Ensino Remoto e a universidade?

Frente a tudo isso, a reflexão fundamental está na própria imposição do ensino remoto. A reitoria tem feito um discurso que podemos resumir como um chamado à necessidade de adaptação e flexibilização ao “novo normal”. Qual normal? Um normal aonde as condições de acesso à universidade são ainda mais restritas? Um normal aonde fechamos os olhos para a catástrofe social que acontece no país e nos concentrarmos em matérias que não tenham a ver com refletir, debater ou responder a esse problema? Um normal aonde a educação vai dia a dia sendo precarizada, assim como o trabalho da maioria da juventude, como é muito visível através dos entregadores de APPs? Um novo normal onde os estudantes mais pobres são expulsos da universidade pela falta de permanência, e por não conseguirem conciliar o ensino remoto com a rotina de trabalho cada vez mais precarizado pelas novas relações trabalhistas?

Nós da juventude Faísca e do Quilombo Vermelho consideramos que o ensino remoto é um grande desperdício de energia quando descolado da necessidade de que cada estudante, professor, técnico e terceirizado coloque suas forças para cumprir o papel público da universidade. O sentido desse retorno se dá muito mais pelas necessidades produtivas do mercado que quer girar a qualquer custo, do que por um questionamento desse mesmo mercado que não conseguiu garantir o básico para a população – testes massivos, por exemplo. O sentido desse retorno está no cumprimento formal de um calendário que, em seu sentido mais profundo, normaliza no dia a dia das obrigações o pandemônio da realidade. E vem para aprofundar a desigualdade na educação brasileira, deixando de fora os estudantes mais pobres, especialmente os jovens trabalhadores que depois de romper o filtro social do vestibular, agora se deparam com um novo filtro da falta de condições e permanência para seguir estudando. Na verdade, o sentido não tem sentido, assim como o normal não é normal.

Isso sem dizer dos inúmeros problemas educacionais desse modelo. Não houve nem mesmo uma capacitação dos professores para ministrarem seus conteúdos no formato remoto com a qualidade que sempre deram, o que irá comprometer fortemente a pedagogia e o conteúdo das aulas. Onde já se implementou o ensino remoto, como nas universidades privadas e nas estaduais paulistas, há relatos de uma enorme precarização do trabalho docente e dos técnicos administrativos. As mudanças dos currículos, dos cotidianos, das disposições dos corpos nesse ensino remoto não levarão a uma ampliação em larga escala do ensino à distância no ensino superior público? Sabendo que o ensino a distância no Brasil é completamente vinculado a grandes monopólios empresariais, não seria uma surpresa se tal empreitada significar uma grande oportunidade de negócios para os que só veem cifras, e não sujeitos, na educação.

O descaso com a assistência estudantil é compreensível no marco de uma universidade que produz conhecimentos e tecnologias que estão muito mais a serviço de patentes, laboratórios privados e empresas, aumentando significativamente lucros privados a partir de uma estrutura pública, do que para fornecer respostas aos grandes problemas da sociedade, de moradia, saúde, infraestrutura, transporte, saúde mental e tantas outras áreas. O retorno do Ensino Remoto sem nenhuma proposta que visa envolver a universidade de conjunto frente à pandemia é a imagem mais nua e crua desse fato.

No entanto, sabemos que o conhecimento humano disponível nas universidades, acumulado por séculos e sempre renovado a cada geração, carrega inúmeras possibilidades de nos libertar a todos de uma produção que divide de forma alienante o trabalho manual e intelectual, o social e o privado. A transformação da universidade para que ela consiga corresponder a esse papel potencial e histórico depende da aliança que os estudantes podem fazer com os sujeitos que permitem o funcionamento dela e da sociedade: os trabalhadores.

Na UFMG, a mesma FUMP que nega assistência estudantil para os estudantes mais vulneráveis ameaça com o desemprego o setor mais precarizado da universidade (como já dissemos, uma informação do DCE em um conselho de entidades). Sobre as necessidades financeiras estudantis e como deveria ser a distribuição da assistência, os estudantes sabem muito mais do que essa fundação; sobre os serviços essenciais de cada estrutura dos campus, também sabem muito mais os trabalhadores. Para quê mesmo precisamos dela, então? Apenas para esconder os dados e fazer decisões nas nossas costas? Não poderíamos, estudantes e trabalhadores, incluindo professores e técnicos, sermos sujeitos em refletir e decidir conjuntamente sobre essas questões? Nós apostamos que sim. E isso pode começar a se dar a partir da auto-organização dos estudantes nas entidades de cada curso para garantir assistência para toda a demanda, e para se colocar ao lado desses trabalhadores ameaçados de demissão pela FUMP, questionando o papel e a existência de uma fundação como essa na universidade pública. Relacionando isso com a exigência ao governo pela revogação da PEC do teto de gastos, para ampliar o investimento na educação superior e os recursos do PNAES (Plano Nacional de Assistência Estudantil), rechaçando Bolsonaro e sua corja negacionista e obscurantista apoiada pelos militares.

Desde o início dessa discussão (iniciada antes de maio), fizemos um chamado aos estudantes, DCE e às demais entidades estudantis para que defendêssemos um plebiscito sobre o ensino remoto, em que toda a comunidade universitária pudesse decidir quanto a isso. Essa perspectiva chegou a ser aprovada em assembleia pelos estudantes de Filosofia, Artes Visuais e Biologia. Porém, naquele momento, quando poderíamos ter imposto para a reitoria a importância de nos envolver nas decisões da universidade, os movimentos que constroem o DCE (Afronte, Correnteza, Juntos e MUP) apostaram que a reitoria ouviria as reivindicações dos estudantes e assim se abstiveram de fazer qualquer oposição séria ao ensino remoto e aos inúmeros problemas dele, os quais apenas alguns destacamos aqui. O MUP reviu sua posição quando a reitoria decidiu definitivamente pelo ensino remoto, e tem feito sua autocrítica que consideramos correta apesar de tardia.

Em suma, para além das denúncias precisamos também fortalecer uma resposta a elas. Uma resposta própria, que passe por refletir a educação, a universidade, a sociedade que queremos. Essa é a importância de nos unirmos entre nós para pensarmos criticamente o ensino remoto e seus efeitos, e também com os trabalhadores terceirizados da UFMG, para exigir a proibição das demissões, a garantia dos direitos e a licença remunerada dos grupos de risco. Além da efetivação sem concurso público desses trabalhadores, para que façam parte do corpo de servidores da universidade com mais garantias e estabilidade. Assim como todos os trabalhadores precários no país, os terceirizados são uma maioria negra, que entra nas universidades pela porta dos fundos para fazer os serviços manuais. Queremos que eles e toda a população consigam usufruir da universidade no que ela tem de melhor, nas pesquisas de ponta, nas discussões construtivas e nas experiências políticas e culturais. Isso exige que construamos, não amanhã nem depois, mas hoje, uma força material que derrote a extrema direita instalada no governo e levante a necessidade de uma educação transformadora para os trabalhadores, uma universidade a serviço da população, e uma sociedade sem classes.

Fonte: Esquerda Diário

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