Com celulares, computadores emprestados e até internet paga por professores, alunos de favela em BH se preparam para o Enem

Apesar da pandemia, o Ministério da Educação decidiu manter as datas das provas.

Michelle espera para ser chamada na UFMG, mas decidiu continuar no cursinho — Foto: Michelle Cardoso de Jesus/Arquivo pessoal

“É filho chamando, marido, casa para olhar. Difícil demais concentrar para estudar”, disse Adriana Cardoso, moradora do Morro do Papagaio, favela da Região Centro-Sul de Belo Horizonte.

O sonho dela é cursar a faculdade de administração. Mais de dez anos depois de ter concluído os estudos na escola, Adriana decidiu se matricular no cursinho gratuito que existe na comunidade para fazer o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).

Apesar da crise provocada pelo novo coronavírus, o governo federal decidiu manter a data de inscrição para as provas. Ela começa nesta segunda-feira (11). A expectativa é que o Enem seja realizado em novembro deste ano.

“Eu estava muito empolgada. Todo mundo, né? Aí, na segunda semana de aula, veio a pandemia e tudo mudou”, contou.

Adriana trabalhava como atendente de caixa em um bar e os dois filhos estavam na escola.

“De repente o bar fechou e tive que ficar em casa com as crianças. Aí veio a ideia das aulas online. Os professores são ótimos, mas como eu vou me concentrar assim?’, disse ela.

“Uma coisa é você sair de casa, entrar na sala de aula, ter aquele tempo dedicado a você mesma. Outra coisa é ficar em frente ao computador, com internet lenta, filhos, marido. É muito difícil”, completou.

O cursinho gratuito existe há mais de um ano no Morro do Papagaio.

“São 13 professores voluntários. A gente tem 60 alunos, 80% são mulheres negras. No ano passado, dos 27 que conseguiram ficar com a gente até o final, sete conquistaram vagas para universidades federais”, disse o coordenador da iniciativa, Bruno de Araújo Rangel.

Para manter os alunos motivados, os professores fazem as aulas de casa e as deixam disponíveis em um arquivo digital. Mas o principal obstáculo era a internet.

“Nem todo mundo tem acesso na favela. Aí nós nos mobilizamos e resolvemos bancar isso através de planos pré-pagos. Depois tem a preocupação com a comida. Foi então que conseguimos doações para a compra de cestas básicas dentro da comunidade com créditos nas mercearias. E isso se ampliou. Cerca de 200 famílias foram beneficiadas”, disse Bruno.

Internet lenta e falta de computador

Ter um computador para estudar é outro desafio. O de Danielle Caroline estragou. “É muito difícil ver os vídeos no meu celular. Ele é muito simples, né? E a internet não ajuda muito”, disse ela que ainda tem que cuidar da filha de três anos e da mãe que foi vítima de um Acidente Vascular Cerebral (AVC).

“Eu queria fazer teologia ou psicologia, sabe? Eu me formei no EJA (Educação de Jovens e Adultos) e o cursinho deixou a gente mais perto do nosso sonho. É muito difícil. Mas a gente tem que buscar, ir atrás”, falou Danielle.

Ela trabalhava como operadora de caixa em uma loja e foi dispensada. “Estou recebendo a cesta básica da prefeitura, né? Só saio de casa para isso”.

A expectativa é que ela receba em breve um notebook emprestado. “Pessoal do cursinho está ajudando a gente”, disse.

‘Eu quero ser o primeiro da minha família a entrar na faculdade’

Alguns alunos têm um pouco mais de sorte. É o caso do Davidson Junio, de 25 anos. Ele mora com duas irmãs e com dois sobrinhos de 11 e 13 anos de idade. Sempre depois do trabalho, ele se dedica quatro horas aos estudos.

“Eu quero ser o primeiro da minha família a entrar na faculdade e ser um exemplo para os meus sobrinhos. Legal que eles já me vêem estudando”, disse ele.

Davidson sonha em estudar tecnologia da informação. “Eu estava todo empolgado quando as aulas começaram. Aí veio o coronavírus. Nem todo mundo consegue acompanhar. Todo mundo tem o sonho de ir bem no Enem”, contou.

‘Tem gente que acha que todo mundo tem os mesmos meios para estudar’

Tainá Gomes dos Santos, de 19 anos, tem internet e computador em casa. Mas tem que disputar com o irmão mais velho, que está na faculdade de educação física, e o irmão mais novo, que tem tarefas da escola.

“A internet é muito lenta. Se a aula tem uma hora, eu gasto mais uma baixando o conteúdo. Tem que ter autocontrole para se concentrar. Mesmo assim, eu sou uma privilegiada com estes poucos recursos”, disse ela que sonha em cursar pedagogia ou algo relacionado ao meio ambiente.

“É o seguinte, ou você estuda para ter um futuro ou estuda para ter um futuro. Não tem opção”, falou Tainá. “Eu estou conseguindo acompanhar as aulas daquele jeito, né? Me esforçando. Já que as datas do Enem foram mantidas e tem gente que acha que todo mundo tem os mesmos meios para estudar em casa”, desabafou.

Michelle Cardoso de Jesus, de 19 anos, está na expectativa de ser chamada para a faculdade de fonoaudiologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ela fez o cursinho do Enem no Morro do Papagaio e conquistou uma nota que pode ser seu passaporte para o ensino superior.

Em vez de aguardar, ela decidiu se matricular mais uma vez.

“Meu interesse mesmo é adquirir mais conhecimento”, contou.

Aprendiz em um supermercado, ela teve o trabalho suspenso e hoje fica em casa.

“Eu acompanhava as aulas pelo celular. Aí ele estragou. Mas consegui um notebook emprestado. Tenho minhas apostilas. Eu gosto de estudar, né?”.

Fonte: G1

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