por Gustavo Freire Barbosa
Mesmo quando Bolsonaro era um inexpressivo deputado do baixo clero, sempre foi nítida a natureza racista e fascista de seus posicionamentos
Somos julgados não só pelo que falamos, mas também pelo que deixamos de falar – ou pela edição interna que fazemos no sentido de selecionar os assuntos que achamos que merecem nossa indignação.
Mesmo quando Jair Bolsonaro era um inexpressivo deputado do baixo clero, nunca deixou-se de apontar para a natureza racista e fascista de seus pronunciamentos. Se o episódio com Preta Gil no finado CQC e as declarações sobre comunidades quilombolas em uma palestra em 2017 serviram para mostrar que a homofobia e a discriminação racial são partes da personalidade do presidente, outros tantos, a começar por aqueles em que deseja publicamente o extermínio físico da esquerda, não deixam dúvida que o nazi-fascismo encontrou sua fina flor no Brasil do século XXI.
Bolsonaro reproduz com frequência o léxico dos herdeiros espirituais do Eixo. A sintonia entre suas agendas ganha expressão em coisas como o ataque às minorias, a defesa da família, o ultranacionalismo e a aversão ao comunismo Diante de seus namoricos com o enfiador de ratos em vaginas chamado Brilhante Ustra, com o carniceiro Pinochet e com o pedófilo Stroessner, todos adeptos dessa cartilha, qual a surpresa no fato de seu então secretário especial de Cultura ter emulado o ministro da propaganda nazista Joseph Goebbels tanto no conteúdo como na forma, reproduzindo literalmente um discurso de sua autoria em um pronunciamento público?
Instado a se manifestar, Alvim afirmou que, apesar da origem de sua inspiração, concorda com seu conteúdo. No meio do tiroteio narrativo, culpou sua assessoria pelo texto, esquecendo da acidental e aleatória escolha de Wagner, compositor e ensaísta admirado por Hitler, como trilha sonora do vídeo. Não dava mais tempo. Rodrigo Maia já pedira seu afastamento e mesmo Olavo de Carvalho sugeriu que o já ex-secretário estaria com problemas mentais.
Alvim, entretanto, não poderia estar mais lúcido. Não fosse a polêmica, a pressão das redes, da sociedade e o desgaste no meio político, é bastante provável que seu chefe o teria mantido no cargo. Assim como o próprio Alvim, Bolsonaro não deve ver muitos problemas na origem do pronunciamento.
Uma pesquisadora brasileira identificou recentemente que ao menos 334 células de inspiração nazista se encontram em atividade no Brasil. A maioria concentrada nas regiões Sul e Sudeste e muito provavelmente empoderadas com a vitória eleitoral daquele que vê como uma espécie de Führer. Há vários registros do entusiasmo de grupos neonazistas brasileiros junto às pautas e à campanha presidencial de Bolsonaro. Onde está, portanto, a novidade na postura de Alvim?
É certo que não houve apenas uma empolgação que foi além da flexível tolerância que parte da sociedade tem com o bolsonarismo. Houve crime. As representações simbólicas, ideológicas e socioculturais do nazismo estão diretamente relacionadas com a perseguição dos grupos étnicos assassinados pelos agentes de Hitler. Por trás da fantasia de Goebbels, está a legitimação de condutas que simulam ou se baseiam nas mesmas premissas que ampararam as monstruosidades nazistas.
É nessa toada que o artigo 287 do Código Penal tipifica como crime a apologia pública de fato criminoso ou de autor de crime, enquanto o artigo 20 da lei nº 7.716/1989, que define crimes de preconceito de raça ou de cor, prevê a prisão de um a três anos para quem pratica, induz ou incita a discriminação ou o preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
Não há como rechaçá-lo e livrar a barra de quem o colocou lá, ignorando a comunhão entre suas visões de mundo e seus projetos de sociedade. “Depois de décadas, temos, sim, um secretário de Cultura de verdade, que atende o interesse da maioria da população brasileira, uma população conservadora e cristã”, disse Bolsonaro sobre Alvim em uma live gravada ao seu lado horas antes de vir à tona as homenagens do elogiado a Goebbels.
Em 1943, Albert Camus escreveu uma carta ao general De Gaulle. Tornada pública recentemente, Camus relata sua angústia acerca da ocupação nazista na França, lembrando que é dever de todo resistente lembrar às pessoas todos os dias, todas as horas, em todos os artigos, transmissões, reuniões e proclamações o que se estava defendendo na luta contra os nazistas. Camus optou por não deixar Paris quando Hitler a tomou.
A fatura um dia chega pra quem, nesta esquina da história, resolveu passar pano para essa gente. E não será barata.
Fonte: publicado em Carta Capital