por Elaine Behring
“Cães danados do fascismo
Babam e arreganham os dentes
Sai do ovo a serpente
Fruto podre do cinismo
Para oprimir as gentes
Nos manter no escravismo
Pra nos empurrar no abismo
E nos triturar com os dentes”
Chico César (Pedrada, 2019)
Muito se tem utilizado a referência ao filme de Ingmar Bergman, O Ovo da Serpente (1977), para analisar o triste Brasil que ocupa as manchetes dos jornais todos os dias, que inquieta os que tem olhos para ver os acontecimentos em seus significados mais profundos e deletérios para a vida social e para as liberdades democráticas. Trata-se de uma referência clara: o bolsonarismo lembra, no Brasil deste início de século XXI de crise profunda e decadência do mundo do capital, o que o nazismo representou na Alemanha dilacerada pela derrota na Primeira Guerra Mundial e pela crise do capital no entreguerras, com a onda de desemprego e o “salve-se quem puder” se instalando nas entranhas das relações sociais. Junto com eles, se instalavam as saídas individuais e coletivas bárbaras, o que somado aos erros monumentais da esquerda à época, incapaz de realizar uma frente única antifascista para uma saída civilizatória, levou a humanidade a um de seus capítulos mais deploráveis. Se não é possível utilizar essa referência sem as mediações históricas necessárias, pois este Brasil atual não é a Alemanha dos anos 20 e 30 do século XX com suas histórias e particularidades, nem a crise do capitalismo tem as mesmas expressões e repertório de respostas burguesas, são evidentes as correspondências. É, no mínimo, uma boa metáfora para expressar o que estamos vivendo.
Nos últimos dias, a serpente saiu do ovo no Brasil, explícita e vociferante, destilando todo o seu veneno, todo o seu ódio. Desde a eleição de um governo neofascista e que encontra apoio social significativo, infelizmente unindo setores da classe trabalhadora dilacerados pela crise e/ou convencidos pelos mercadores da fé e uma burguesia brasileira pragmática em busca dos benefícios da superexploração da força de trabalho precarizada, temos sido testados diuturnamente quanto à garantia das liberdades democráticas no Brasil. Temos, nessa avalanche, ameaças e censura real à cultura e à imprensa, alusões ao AI-5 da ditadura militar, perseguição à universidade e à ciência, e, sobretudo, fortalecimento de setores paramilitares armados: milicianos, grileiros que põe fogo na Amazônia e ameaçam as populações indígenas e, mais recentemente, setores sublevados das polícias militares estaduais que, em nome de uma pauta corporativa, tomam atitudes inaceitáveis dignas do crime organizado, ameaçando e constrangendo a população. A leniência para com esses segmentos por parte do governo federal tem sido escandalosa, enquanto crescem os assassinatos no Estado do Ceará. Os tiros em Cid Gomes foram tratados com lentidão paquidérmica, mesmo se considerarmos que a mobilização da retroescavadeira pelo coronelismo destemperado dos Gomes em “sua” terra pudesse ter causado mortes também.Moro foi absolutamente protocolar no Ceará, consolidando seu lugar de “mão do rei”. O movimento dos amotinados da PM do Ceará é claramente apoiado pelo bolsonarismo e tenta buscar bases de apoio na soldadesca da PM e gerar um efeito contágio pelo país. As PMs tem sido caixa de ressonância ideológica desses setores, com vínculos com paramilitares, atitudes racistas e contra a classe trabalhadora pobre e favelada, sem falar da forte repressão aos movimentos sociais.O fato é que estamos diante de elementos novos e inéditos nessa escalada antidemocrática, desde o golpe de Estado de novo tipo de 2016.
Nessa última semana,o Brasil vivia sua linda e colorida catarse momesca.Nas ruas, nas passarelas – do samba, do frevo, do axé, do maracatu, do boi, etc– falou-se alto contra a desigualdade social, a intolerância religiosa, a violência do Estado contra as populações pobres nas comunidades, pela vida das mulheres (ah, linda e combativa Elza Soares na Mocidade Independente de Padre Miguel), contra o racismo, a misoginia e a intolerância religiosa (“eu respeito seu amém, você respeita o meu axé” – Grande Rio), em defesa da educação e de Paulo Freire (Águia de Ouro), em defesa de outras relações sociais (“não há futuro sem partilha” – Mangueira). Enquanto isso, a peçonha circulava nas redes sociais. Setores bolsonaristas, replicando generais instalados no Planalto, passaram a difundir chamadas para um ato contra o Congresso e o STF. E para selar o anticlímax da alegria e da resistência e impor o fim da festa, o próprio presidente passou a divulgar um vídeo que chama para os atos, onde aparece como vítima, como quem fez um sacrifício, levou facada (será?) para salvar o Brasil da esquerda (sempre ela…), e que precisa da mobilização da população em sua defesa. Ele aparece retratado como um verdadeiro messias ao som de um hino nacional melancólico, chamando seus fiéis. Muitas vozes de vários segmentos e instituições no país, além daquelas diretamente envolvidas, representantes do Congresso e membros do STF, logo lembraram da inconstitucionalidade da postura do presidente. Sua resposta foi alegar que o vídeo é pessoal – como se não soubesse do lugar que ocupa. Mas não se pode esperar muito das instituições, já que as atitudes inconstitucionais e vínculos suspeitos com o crime organizado, especialmente as milícias, vem se avolumando e são engavetados um a um, a exemplo da investigação sobre seu filho Flávio. Nada mais suspeito que a execução do miliciano e amigo íntimo da família Bolsonaro na Bahia, e que deu certa “leveza” à bigorna pesada do presidente. Ele se sentiu à vontade, inclusive, para falar de Marielle Franco, como se sua vizinhança nas Vivendas da Barra não frequentasse seus churrascos. Outras vozes, inclusive na grande imprensa, não deram o destaque que a gravidade da situação exige, mostrando sua conivência direta ou indireta com esta avidez antidemocrática, desde que as “reformas” ultraneoliberais andem bem e os mercados fiquem tranquilos. Um ar “blasé”, já que não é exatamente um silêncio, nada inocente.
Nossa conclusão é uma só: antídoto para este tipo de veneno são os trabalhadores nas ruas em defesa das liberdades democráticas e dizendo em alto e bom som: fora Bolsonaro, basta.É hora de canalizar as insatisfações e as resistências para o enfrentamento sem tréguas do neofascismo. É sempre bom lembrar que apesar de ter maioria dos votos válidos, a maior parte do eleitorado não elegeu este projeto e que parte foi movida por fake News, com o suporte de empresas como a Cambridge Analytica. E eleição não é cheque em branco para desrespeitar a Constituição. Ademais, desde a posse do presidente houve perda de bases de apoio do governo. É preciso sair do eleitoralismo estéril, medroso e paralisante, e derrotar este governo nas ruas. Tem existido luta e resistência. Os petroleiros, os trabalhadores da Dataprev e do INSS são exemplos desses caminhos. Em meio a esta escalada, os petroleiros, por exemplo, mantiveram uma greve longa para os padrões recentes, e combativa. Mas é preciso mais: como já escrevi em artigos anteriores, para colocar um freio na devastação e preservar as liberdades democráticas, precisamos de uma mobilização muito mais ampla e generalizada. Uma greve geral que paralise todos os setores estratégicos, que levante as comunidades, que mobilize a resistência cultural, que denuncie o quão é inaceitável este projeto de país autocrático, heterônomo, sem ciência, sem cultura, sem soberania. Uma mobilização que lembre que o Estado é laico e não pode ser conduzido por um fundamentalismo religioso extemporâneo e hipócrita. Nossa resposta deve ser grandiosa no dia 18 de março de 2020, quando a educação e as centrais sindicais estão chamando para a mobilização. Antes disso, as mulheres irão às ruas nas manifestações de 8 (ou 9 em alguns estados, a exemplo do Rio de Janeiro) de março. Esses dois momentos serão cruciais para a alteração da correlação de forças no país e a defesa das liberdades democráticas.
“Mas nós temos a pedrada pra jogar
A bola incendiária está no ar”
Chico César (Pedrada, 2019)
Elaine Behring é Doutora em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2002). Foi presidente da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS), na gestão 2009-2010 e do Conselho Federal de Serviço Social (1999-2002). É professora associada da UERJ, na Faculdade de Serviço Social, onde coordena o Grupo de Estudos e Pesquisas do Orçamento Público e da Seguridade Social (GOPSS), e o Centro de Estudos Octavio Ianni (CEOI).
Fonte: publicado no Esquerda Online