“Não se faz agroecologia em vaso de apartamento”, diz Kelli Mafort, do MST

Liderança sem-terra defende reforma agrária em bases sustentáveis e garante: Bolsonaro não acabará com acampamentos

Foto: MST

“Agroecologia depende de uma base territorial. Não se consegue fazer agroecologia em vaso de apartamento. Então, pensar em agroecologia e pensar em conservação ambiental é pensar em questão agrária, em como é que a gente consegue fazer um processo de distribuição de terra massiva no nosso país. Porque nós não estamos pensando em alimentar a classe média, que pode comprar alimentos orgânicos. Quem tem direito à alimentação saudável é o povo brasileiro como um todo”.

Sob esses princípios, Kelli Mafort, da coordenação nacional do MST, explica como a produção agroecológica e agroflorestal passou da condição de experiência para o centro da política do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Ela relaciona essa bandeira à urgência de sustentabilidade ambiental, trabalho digno, saúde e igualdade, em oposição à escalada do desmatamento, dos agrotóxicos, da comida ultraprocessada e da violência contra a mulher.

Levar essa opção econômica e social a um novo patamar exigiria política fundiária e de fomento massiva, porém sob novos parâmetros. “Uma reforma agrária que enfrente a questão do latifúndio, da distribuição das terras, mas para produzir alimento saudável e preservar o meio ambiente”, define a dirigente, que também integra os setores de Formação e de Gênero do MST. “Quem tem direito a alimentação saudável é o povo brasileiro como um todo.”

Mafort situa a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 80, do senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), no contexto de agravamento das desigualdades sociais promovido pelo governo Jair Bolsonaro (PSL) e da crescente mercantilização da terra, que tem na Lei 13.465 outro marco recente. A PEC procura alterar a definição constitucional e a aplicação da função social da propriedade.

Com governos cada vez mais contrários aos sem-terra, e o incentivo à resposta armada dos ruralistas, a vida nos acampamentos fica mais dura, reconhece a militante – que também estudou a reestruturação produtiva no campo e os impactos nas relações de trabalho em seu doutorado na Universidade Estadual Paulista (Unesp). Ela constata, no entanto, que a crise empurra mais famílias para a luta por terra e moradia, e conclui que o governo Bolsonaro não conseguirá acabar com essa forma de reivindicação. “Vida longa aos movimentos populares, aos acampamentos e assentamentos”, conclama.

Brasil de Fato: Como foi recebida no meio da reforma agrária a PEC 80, proposta pelo filho mais velho do presidente da República?

Kelli Mafort: Essa proposta de emenda constitucional está dentro de um conjunto de medidas que estão nas características fundamentais do governo Bolsonaro, que é essencialmente de ampliação da desigualdade social. A defesa da propriedade privada como um “bem sagrado” é um retrocesso enorme inclusive na história recente do país. A Constituição de 1988, apesar do contraditório resultado no tratamento da terra no Brasil, valoriza a questão da função social da terra. Não significa que a PEC vá passar – depende da correlação de forças no Congresso Nacional –, mas o mais grave é que se trata de mais uma medida de médio prazo, não conjuntural.

Você a vê como um projeto articulado com outras tentativas, medidas e mudanças legais, como a Lei 13.465, sancionada no governo Michel Temer (MDB) a partir da Medida Provisória (MP) 759?

A PEC do Flávio Bolsonaro e a Lei 13.465 estão em consonância com uma necessidade do capital no nosso país que é um reordenamento fundiário, no campo e na cidade. Estão nesse contexto de tornar de fato nossas terras urbanas e rurais e subordinadas aos interesses do capital. É uma proposta extremamente regressiva para o Brasil. Elas não fazem uma divisão entre urbano e rural. Tratam conjuntamente disso.

Deveríamos chamar a 13.465 de “Lei da Grilagem”. Ela regulariza, em toda a Amazônia Legal – estamos falando de praticamente metade do Brasil – propriedades até 2 mil hectares. Terras públicas da União que deveriam ser repassadas para reforma agrária, como diz o texto constitucional, seriam entregues para grandes grupos de empresários com um abatimento que pode chegar até 90%. O estímulo ao pagamento direto nas desapropriações, no lugar de títulos da reforma agrária, coloca o Incra no papel de operador do mercado de terras, de balcão de negócios.

Entre os critérios de seleção das famílias, a 13.465 coloca o da vulnerabilidade social, dando margem para que seja inclusive de situação socioeconômica de uma pessoa que viva na cidade. Apesar de essas pessoas também terem acesso a terra, esse mecanismo tende a enfrentar a questão da ocupação. Nós temos muitas pesquisas que evidenciam que 90% dos assentamentos existentes no Brasil são resultantes de ocupações de terra. Ou seja, nós não teríamos nada de reforma agrária se não fosse a luta de trabalhadores e trabalhadoras. Esse quesito tende a inviabilizar essa ferramenta, dando uma aparência de que seria possível as pessoas serem assentadas sem lutar.

Pesquisadores apontam uma “corrida por titulação” no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), no governo Temer, com o estímulo para que os trabalhadores rurais virem pequenos proprietários, o que acabaria empurrando essas terras para o mercado. É um desafio adicional?

Hoje, um assentado de reforma agrária, uma assentada, tem direito a um contrato de concessão de uso. Que é provisório, tem três, cinco anos de existência, para criar condições para uma titulação definitiva. Essa titulação definitiva, historicamente, pode ser um título de domínio, que faz da pessoa proprietária, titular – inclusive pode negociar e até chegar a vender a terra –, ou pode ser um CDRU, que é um título também definitivo, mas é de um direito real de uso, no qual a União continua tendo responsabilidade naquele assentamento.

Nós defendemos o título definitivo. As famílias assentadas têm direito a serem tituladas. Mas defendemos que esse título seja um CDRU, porque a União deve ter responsabilidade sobre o assentamento e porque essa terra nunca pode se tornar uma mercadoria, ela nunca deve ser vendida. O governo Bolsonaro quer fazer, com o apoio dessa Lei 13.465, é privatizar os assentamentos. Nós somos contrários à venda de terras e estamos lutando contra isso.

A professora Leonilde Medeiros, da UFRRJ, avalia que a agroecologia e a produção orgânica foram parar no centro da agenda do MST e dos sindicatos rurais. Ela acrescenta que, embora essas práticas não sejam compatíveis com propriedades muito extensas, seria preciso dar outra escala a esse tipo de produção, se confirmada tal bandeira.

Hoje nós podemos afirmar que a questão da agroecologia – não só da agroecologia como da agrofloresta, que combina a produção de alimentos com a produção de florestas e a convivência com florestas – está no centro da agenda não só dos sem-terra ou dos trabalhadores assentados, mas também da massa dos trabalhadores urbanos. São muitos temas sensíveis, como o aumento do uso dos agrotóxicos, das intoxicações, a explosão de casos de câncer, mortes por contaminação por agrotóxicos. É um tema que está na centralidade dessas necessidades quando a gente pensa hoje saúde, trabalho, terra e alimentação.

Agroecologia depende de uma base territorial. Não se consegue fazer agroecologia em vaso de apartamento. Então, pensar em agroecologia e pensar em conservação ambiental é pensar em questão agrária, em como é que a gente consegue fazer um processo de distribuição de terra massiva no nosso país. Porque nós não estamos pensando em alimentar a classe média, que pode comprar alimentos orgânicos. Quem tem direito a alimentação saudável é o povo brasileiro como um todo. Alimento diverso, não essa comida ultraprocessada, essa comida intoxicante que nós temos hoje. Então, como tem esse grande desafio de alimentar o povo brasileiro, a gente precisa de muita terra. Ainda é necessário pensar uma reforma agrária, mas em bases completamente diferentes de como foi na década de 1980. Uma reforma agrária que não pode ser [só] distributivista. Que enfrente a questão do latifúndio, da distribuição das terras, mas para produzir alimento saudável e preservar o meio ambiente.

Há um tempo, o movimento resolveu aderir, em certa medida, à produção dos agrocombustíveis. Sei que houve uma longa discussão interna, mas muitos assentamentos acabaram aderindo não só à produção de pinhão-manso, mamona ou girassol, mas também de soja. Isso se cruza com a promoção da ideia de pequeno empreendedor rural, em oposição a de trabalhador rural. E, ainda, com o ritmo cada vez mais lento da reforma agrária. Como lidar com os trabalhadores sujeitos a esses três fatores de pressão e de oferta, de “convite”?  

Desde a década de 90, durante todos os anos 2000, até chegar na década atual, o Brasil viveu uma enorme mudança no campo, que poderíamos qualificar de reestruturação produtiva, que trouxe muito impacto. Tivemos a emergência do que hoje a gente chama de agronegócio – isso a gente pode localizar na nossa história, no final da década de 90 e início dos anos 2000, até como uma diretiva do Banco Mundial, que colocou essas terras até então produtivas no Brasil, na sua grande maioria, numa base de atividade retomando o que foi lá, nas décadas de 60 e 70, a “revolução verde” ainda na ditadura militar. E que ao mesmo tempo desenvolveu um programa de enquadrar assentados de reforma agrária, pequenos produtores e até parcela de comunidades tradicionais na chamada “agricultura familiar”.

Essas duas ações acabaram sendo complementares, do ponto de vista de a agricultura familiar estar subordinada a esses ditames do próprio capital e do agronegócio. Aí, essa pressão sobre os assentados da reforma agrária, os trabalhadores rurais, também aumentou muito, para que ali também fosse um espaço de consumo de insumos. Do veneno do agronegócio, da semente transgênica, que tudo fosse buscado lá fora [importado], consumir pesticida. Essa pressão nós também vivemos nos assentamentos. E uma parte dos assentamentos, dos assentados e das assentadas acabou indo por esse caminho, caindo nesse engodo do empreendedorismo. Mas qual é o elemento? O elemento da crise, né? Você coloca para concorrer dois polos que são extremamente desiguais.

O Movimento Sem Terra defende, portanto é sua linha política, que a agroecologia não é uma questão experiência focal, em determinados assentamentos. Ela deve ser uma necessidade humana, para que a gente possa ter uma relação durável com os bens naturais. São recursos finitos, né? O solo, a água, como a gente interfere no clima, as florestas… Então agroecologia avançou, no entendimento do MST, de uma experiência, de algo focal, para linha política. E a gente está pensando numa grande produção. A gente pega o exemplo do arroz agroecológico do Sul do país, do Rio Grande do Sul. Nós somos o maior produtor de arroz agroecológico da América Latina. Ali é um trabalho mecanizado e tem o mesmo valor de uma horta num quintal produtivo no Ceará, uma criação de pequenos animais. Isso é possível conviver, é possível a gente pensar numa produção que atenda não só os trabalhadores e trabalhadoras do campo, os assentados, mas também da cidade.

Como fica a vida nos acampamentos, nesse contexto?

Nós ainda temos cerca de 100 mil famílias acampadas no Brasil, o que é uma questão social muito forte. A crise está apertando muito, então a gente está sendo procurado por essas famílias. Elas têm medo do que representa essa cultura de armas, essa metralhadora o tempo todo apontada para a cabeça do MST pelo governo Bolsonaro, mas está muito difícil pagar aluguel, pagar as contas, muita gente sendo despejada, não tem acesso a moradia, a trabalho, uma taxa de desemprego altíssima, uma taxa de desalentados também muito grande. Agora, de fato a conquista tem cada vez mais se arrastado e isso não é de hoje, a gente começou a sentir isso no governo Dilma, no governo Temer foi um desastre, zero de assentamento, e agora nós convivemos com um ato criminoso por parte do presidente do Incra, o general Jesus Corrêa, da suspensão total da reforma agrária.

Para a família acampada é muita dureza e muita falta de perspectiva de conquista. Apesar disso, as pessoas se mantêm no acampamento. E por quê? Porque o acampamento é um lugar de moradia, é um lugar de garantia de alimentação e muitas vezes é um lugar de algum plantio, porque em alguns lugares é possível desenvolver uma produção. E é um lugar onde as pessoas podem ter um mínimo de convivência comunitária, que é bastante importante em tempos tão duros. Por isso, o governo Bolsonaro não vai acabar com os acampamentos e não vai conseguir também que todas as famílias assentadas sejam tituladas e vendam suas terras. É uma ilusão. Vida longa ao MST e aos movimentos populares, felizmente, porque isso faz parte da democracia do nosso país, e também vida longa aos acampamentos e aos assentamentos.

No governo Temer, houve uma espécie de cavalo de pau na política de compras dos produtos rurais, em especial no Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). Qual foi o impacto para as famílias no campo?

Quando você corta drasticamente políticas sociais, obviamente impacta a renda direta das famílias. No campo, tivemos praticamente um corte total no PAA. Isso tem uma influência no Pnae [Programa Nacional de Alimentação Escolar], porque o Pnae, apesar de ser lei, depende de um envolvimento dos gestores, no sentido de abrir edital, de construir um edital que possa respeitar a produção local, possa incentivar produtores locais. O clima político no país, os próprios cortes nas políticas públicas fazem com que os gestores municipais não cumpram a lei da alimentação voltada aos municípios.

Além disso, a assistência técnica sofreu um corte muito grande. Hoje a gente não tem a política de assistência técnica, e o direito a determinados créditos por parte das famílias assentadas demanda técnicos que formulem projetos para que eles sejam encaminhados. Créditos que são vinculados à própria instituição do Incra – como, por exemplo, o Fomento Mulher. A violência contra as mulheres está explodindo de forma muito trágica no país e parte do enfrentamento disso é o empoderamento econômico das mulheres. Então, você cortar isso é também abrir caminhos para uma situação de subordinação e de violência contra as mulheres. E toda a política do Pronaf [Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar], que foi desmontada. Acaba que se reprime uma demanda através da falta de assistência técnica. Então, é uma tragédia.

No governo Temer já teve isso, um congelamento muito grande, e agora o governo Bolsonaro, além da continuidade no corte das políticas públicas, tenta enfrentar os movimentos populares criando um clima de terror nos acampamentos e assentamentos e essa possibilidade de privatização dos assentamentos de reforma agrária. O cenário é bastante desfavorável e coloca novos desafios para a luta dos movimentos populares.

Fonte: Brasil de Fato

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