Toffoli e Moraes acordaram para o fato de que não há razões para que os sicários poupem ministros
No início de outubro, os jornalistas Rafael Moro Martins e Tatiana Dias publicaram no The Intercept Brasil artigo intitulado “O compromisso do TSE contra fake news é a maior fake news dessa eleição”.
Na ocasião, explicaram como toda a pompa do ministro Luiz Fux – então presidente do Tribunal Superior Eleitoral – em anunciar que a corte iria combater a proliferação de fake news nas eleições não passou de uma daquelas situações na qual a montanha dá luz a um rato.
Por quaisquer que sejam as razões, o poder judiciário brasileiro foi no mínimo negligente no que diz respeito ao enfrentamento às fake news que campearam livres durante o período eleitoral. O The Intercept Brasil já havia denunciado dois meses antes como o partido do vice-presidente, o general Mourão, financiara empresa propagadora de notícias falsas. Em dezembro de 2017, a BBC Brasil fez uma magistral reportagem sobre a existência de um exército de perfis falsos usados para influenciar o processo eleitoral.
A conveniência do TSE em se manter inerte se encaixou perfeitamente nas dificuldades em controlar as redes – em especial o Whatsapp, impossível de ser domesticado, segundo Luiz Fernando Pereira, presidente do Congresso Brasileiro de Direito Eleitoral, entidade organizadora do evento no qual Fux garantiu que as fake news seriam barradas.
O fato é que a usina subterrânea de notícias mentirosas foi uma das coisas que garantiram a vitória de Jair Bolsonaro.
A complacência do Judiciário ajudou a adubar a terra de onde brotaram emblemáticas escatologias como as famigeradas mamadeiras de piroca. O flerte com o bolsonarismo – já evidente quando a candidatura de Lula foi barrada em contrariedade à própria jurisprudência da justiça eleitoral – se tornou escancarado quando Dias Toffoli, atual presidente do STF, começou a dar indiscretas piscadelas à turma do capitão, chegando anomear o general da reserva Fernando Azevedo e Silva (hoje ministro da defesa) como assessor e a passar pano para o golpe militar de 1964. A própria prisão do ex-presidente, um bálsamo para a extrema direita, só foi possível após o Supremo ter rejeitado seu habeas corpus depois de uma desavergonhada manipulação da pauta pela ministra Carmen Lúcia.
A ficha sobre o perigo de ter se aproximado dessa gente, entretanto, parece ter caído tarde demais.
Em 14 de março, a coluna Painel, da Folha de S. Paulo, publicou que os grupos de Whatsapp bolsonaristas que estavam hibernando desde o fim da campanha voltaram a operar com força total. O retorno à ativa do submundo das redes tem a ver com o apelo de correligionários do presidente para que religasse a malha clandestina de contatos que o ajudou a vencer as eleições. Além da defesa da reforma da previdência, o STF passou a estar entre os alvos preferenciais dos difamadores.
Essa nova ofensiva coincidiu com um momento complicado para as hostes pesselistas no qual brotavam diariamente novas mudas do laranjal do PSL escancarando a umbilical relação da família Bolsonaro com as milícias, uma metástase fora de controle cujo modus operandi foi esmiuçado em matéria da Piauí de março.
Se a cúpula do judiciário chegou a acreditar que a proximidade com o mandatário a livraria de seu séquito de paramilitares virtuais, os fatos demonstram que se enganou feio.
Descontente com a situação, Toffoli anunciou abertura de inquérito para apurar a enxurrada de notícias falsas, ameaças e ofensas contra integrantes do STF e seus familiares. Tratou como novidade uma das principais estratégias eleitorais da campanha de Bolsonaro ao ponto de afirmar que, só agora, a tecnologia voltada para destruir a honra alheia seria combatida a todo custo.
“Esse assassinato de reputações que acontece hoje nas mídias sociais, impulsionado por interesses escusos e financiado sabe-se lá por quem, deve ser apurado com veemência e punido no maior grau possível”, afirmou Toffoli ao Estadão, emendando que “isso está atingindo todas as instituições e é necessário evitar que se torne uma epidemia”.
Estranha que só recentemente tenha atentado para a necessidade de medidas profiláticas contra a produção industrial de injúrias, calúnias e difamações quando, desde a campanha, ficou mais do que claro que este é um dos pilares sob o qual se sustenta quem hoje ocupa o Palácio do Planalto. A epidemia já está aí há algum tempo, portanto, embora tenha sensibilizado Toffoli somente após os primeiros espirros nos corredores do STF.
Sob as presidências Fux e de sua sucessora, a ministra Rosa Weber, o TSE abriu mão de enfrentar as hordas digitais do bolsonarismo sem acreditar que os milicianos das redes não elegeriam o STF como alvo. Hoje, até de narcotraficantes os ministros estão sendo acusados, o que gerou, por parte do ministro Alexandre de Moraes, a ordem de bloqueio de contas em redes sociais pertencentes a sete pessoas investigadas no inquérito aberto por Toffoli, além de buscas e apreensões em Brasília, São Paulo e Goiás.
Em um abscesso absolutista, Moraes determinou também a retirada do ar de reportagem e notas publicadas pelos sites da revista Crusoé e O Antagonista que noticiavam a existência de um email de Marcelo Odebrecht que mencionava o presidente da corte.
Fux prometeu bater de frente com as fake news, Weber ignorou a promessa de seu antecessor e Toffoli esperou ver o STF entrar na rota da máquina de moer reputações do bolsonarismo para tomar providências cuja constitucionalidade não escapou de ser questionada pela Procuradoria-Geral da República, cujo pedido de arquivamento do inquérito já foi rejeitado por Moraes.
Ao perceberem que a redoma do STF não é impenetrável à matilha bolsonarista, os ministros pesaram a mão ao tomar medidas que vão de encontro a um republicanismo que, levando em conta as sucessivas sovas que a Constituição vem levando no próprio STF (vide a prisão antes do trânsito em julgado), há tempos se tornou um cadáver insepulto juntamente com fantasias como o devido processo legal e a presunção de inocência.
Toffoli e Moraes acordaram para o fato de que não há razões para que os sicários poupem ministros que, conforme o próprio patriarca do clã já se queixou, foram nomeados em sua maioria pelos governos petistas. Terão agora que lidar com um problema cujo nascedouro tem suas digitais. Os desmedidos ataques à imprensa só demonstram a medida do desespero de quem acaba de perceber que o monstro cresceu e talvez seja tarde demais para contê-lo. Ao menos dentro da lei.
Fonte: Carta Capital