Maria Eduarda explicou nesta semana, para os ministros, por que a homofobia e a transfobia devem ser entendidas como crime de racismo
Maria Eduarda Aguiar, advogada, 38 anos, subiu ao plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) no dia 13 deste mês realizando, no ato de estar ali, um feito. Uma mulher trans a ocupar um espaço dominado, historicamente, por homens brancos heteronormativos.
Era apenas a segunda vez que uma advogada trans se fazia ouvir naquele espaço. A primeira foi Gisele Alessandra Schmidt e Silva, de 48 anos, que em 2016 defendeu direitos de pessoas como ela de ter seu nome e gênero no registro civil sem precisar fazer uma cirurgia para mudar de sexo.
Agora, ao lado de outros advogados, entre gays e lésbicas, Maria Eduarda explicou para os onze ministros por que a homofobia e a transfobia devem ser entendidas como crime de racismo. E, portanto, criminalizada.
Falou de Dandara, travesti espancada por oito homens e alvejada com onze tiros no Ceará, em 2017. Exemplificou, em meio ao silêncio constrangedor do sessão, que ser mulher trans no Brasil é como viver em uma guerra constante.
Para ir a Brasília, Maria Eduarda contou com doações para comprar passagens, pagar estadia e outros custos da viagem.
Ela foi a primeira advogada trans que conseguiu ter o seu nome social na carteira da Ordem dos Advogados (OAB) do Rio de Janeiro. Demitida de um escritório durante a sua transição de gênero, o temor de não conseguir mais seguir na área jurídica por conta da descriminação não afetou a sua carreira. Agora, ela trabalha para amparar juridicamente a comunidade LGBT.
Sobre o julgamento, apesar de todos os votos feitos até agora pelos ministros serem favoráveis à criminalização da transfobia, a advogada preocupa-se com a suspensão por tempo indeterminado do processo, feita pelo presidente da Corte, Dias Tofolli.
“Vamos pressionar para que a sessão final seja feita o mais rápido possível. O medo é que as pressões externas façam o processo sumir. É preciso terminar com esse martírio”, diz.
CartaCapital: Como começou a sua atuação como militante da causa LGBT?
Maria Eduarda Aguiar: Me formei em 2009 e em 2016 dei entrada com o nome social na OAB. Em 2016, já trabalhava com a militância trans. Estive em um projeto que preparava travestis e trans para as provas do Enem, e achei aquilo maravilhoso. Lá eu dava todo tipo de ajuda possível, com documentos, alimentação.
Depois me envolvi com ONGs que cuidam da população trans, e nos núcleos jurídicos desses espaços trabalhava diretamente com violação de direitos e combate à violência contra a população LGBT. Minha vida, tanto pessoal quanto profissional, é toda entrelaçada pelos estudos dessas mortes, e como a gente pode fazer para diminuí-las, além de ter uma legislação que de fato nos proteja.
CC: Como foi ir ao Supremo Tribunal Federal defender a criminalização da homotransfobia sabendo que você era a primeira mulher trans a estar naquele espaço?
MEA: Fui para Brasília com ajuda de doação para pagar as despesas, passagens, e afins. Fui para dizer o que as mulheres trans e travestis sofrem e sofreram. Por aquelas que morreram e já não podem falar mais. Todas que já foram violentadas e não foram ouvidas nas delegacias, onde são muito discriminadas. Minha voz ali foi o grito das excluídas.
Falei da morte brutal de Dandara e precisei falar para que eles se sensibilizassem. Em seu voto, o ministro Alexandre de Moraes disse que ao ouvir na tribuna como são as mortes da população trans, ficou horrorizado. Isso acontece porque o Estado é omisso. Ele protege mulheres, pessoas negras, índios, idosos, crianças, mas se nega a proteger o LGBT. Não estabelecer o princípio da igualdade é inconstitucional.
Fui para dizer o que as mulheres trans e travestis sofrem e sofreram. Por aquelas que morreram e já não podem falar mais
CC: Em que momento você começou a atuar como advogada nesses processos ligados à violência contra a população LGBT?
MEA: Em 2009 me formei em direito e peguei a carteira. Mas em 2016 eu tiro uma nova carteira, dessa vez com o nome social. Fui a primeira trans do Rio a conseguir a carteira da OAB com nome social, algo que deu muita repercussão na época. A partir daí, o trabalho que eu já estava fazendo em direitos humanos e casos importantes ganhou visibilidade. Nessa época defendi um casal que tinha sido agredido na Barra da Tijuca por homofobia, que é a primeiro caso que eu conheço em que um juiz reconhece a homofobia como condição da sentença.
Entrar nessa militância foi uma forma de sair da solidão. Eu me sentia muito sozinha, sem conhecer pessoas que tivessem experiências semelhantes às minhas, com quem eu pudesse trocar. Eu quero andar livre, não quero ter o coração arrancado. Quero poder ter o meu direito a retificação civil (nome social).
Nós somos jogadas para a militância. Ou a gente se esconde, ou a gente é militante. Não tem muitas opções. Não somos pessoas que podem ter uma vida normal. Ser só uma pessoa. A gente tem que ser uma pessoa que luta, luta para existir, para ser respeitada, para ir ao banheiro. É constante.
CC: Você acredita que o judiciário é o melhor espaço para fazer essa luta?
MAE: Sempre achei que o Direito poderia ser usado para melhorar a vida das pessoas. Isso se tornou muito mais significativo quando eu tenho que engrenar a luta pelo movimento trans. Mais importante do que quando eu queria fazer uma ação pelo direito de um consumidor, por exemplo. Essa ação que eu fui sustentar no STF pode transformar a vida de muita gente, não só de uma. E já transforma quando dá esperança para as pessoas, e ainda obriga a sociedade a debater o assunto. Eu estou muita feliz, apesar de toda tensão, do trabalho. Estar ali é estar viva.
Ou a gente se esconde, ou a gente é militante. Não tem muitas opções. Não somos pessoas que podem ter uma vida normal. Ser só uma pessoa
CC: Como você avalia a atual conjuntura política, levando em conta o avanço dos conservadores e das ditas pautas da família?
MAE: Tenho esperanças na atuação do STF, que nos defendeu em outros momentos. Temos um governo que não é chegado nos direitos humanos, e quando se trata dos LGBT é pior ainda por conta do conservadorismo. E ele não é novo, não é? A bancada religiosa não nasceu ontem. Ela está crescendo e se fortalecendo a cada ano. E eles acham que a gente não precisa de política pública. Eles falam de família como se tivesse a patente. Nós temos família e valorizamos muito ela. Temos de criar redes de fortalecimento, especialmente as que protejam os ativistas de direitos humanos, porque no Brasil esse é um trabalho perigoso.Você mexe com o status quo da violência. Vejo com preocupação, sem covardia. Temos de ter um plano e superar esse conservadorismo para equilibrar as forças e não sermos engolidos por essa onda conservadora que tirou a Dilma, que elegeu o Bolsonaro, o Witzel, o Alexandre Frota. Temos que resistir a isso.
Fonte: Carta Capital