por Carlos Zacarias*
O jornalista Carlos Chagas costumava contar uma história: em meio à reunião em que se discutiu a edição do AI-5, enquanto o vice-presidente Pedro Aleixo apresenta ressalvas, o então ministro da Justiça, Gama e Silva, lhe pergunta: “Mas Dr. Pedro, o senhor tem alguma coisa contra as mãos honradas do presidente Costa e Silva que está aqui? É ele é quem vai aplicar o AI-5”, ao que Pedro Aleixo responde: “Não, das mãos honradas do presidente da República eu não tenho o menor medo, eu tenho medo é do guarda da esquina”.
Decretado em 13 de dezembro de 1968, o Ato Institucional nº 5 foi o verdadeiro tour de force do regime implantado em 1964 e na feliz expressão do jornalista Élio Gáspari, foi o momento em que a ditadura perdeu a vergonha e escancarou de vez sua verdadeira face e mandou “às favas todos os escrúpulos de consciência”, como se referiu Jarbas Passarinho, ministro do Trabalho do ditador de plantão, na mesma fatídica reunião.[i]
Apesar da extrema brutalidade, a ditadura militar existente no Brasil entre 1964 e 1985, não podia ser dita como fascista, isto pois não tinha surgido no rastro de uma crise econômica combinada com uma ofensiva contrarrevolucionária surgida da derrota da revolução mundial e também porque não conseguiu reunir em torno de si nenhuma espécie de consenso ativo em setores da sociedade civil agrupados num partido de massas e com amplo apoio popular. Por conta disso, a ditadura brasileira estava inscrita na investida que sobre o continente latino americano promoveu ditaduras de Segurança Nacional, modelos cujo tipo de violência partia essencialmente do Estado, não obstante, nas franjas do poder constituído, grupos de extermínio e milícias paramilitares não deixavam de aterrorizar a vida da população vulnerável.
Nas últimas semanas, assistimos situações em que pessoas foram atacadas, agredidas e ameaçadas por apoiadores de Bolsonaro apenas porque vestiam camisa vermelha ou se posicionavam publicamente como eleitores do PT. É certo que essa escalada de violência se relaciona com o crescente antipetismo que tomou a sociedade, algo intensificado desde o golpe de 2016 e que nos últimos meses definiu o contorno da ofensiva autocrática e contrarrevolucionária de uma burguesia retardatária que se sentiu ameaçada por pequeníssimas reformas dos tempos dos governos petistas.
Há alguns dias, a cena em que dois homens brancos e fortes seguram a placa em homenagem a Marielle Franco partida ao meio, viralizou na internet como símbolo da profanação e de uma segunda execução da vereadora, uma mulher negra, socialista e defensora dos direitos humanos. Há quem ache exagero nos que apontam os riscos que corremos com o avanço do fascismo e a possibilidade de um candidato que exorta o ódio e a violência vencer as eleições, mas exemplos históricos existem aos montes e apontam para a gravidade do momento que combina crise econômica, política e social com uma incontornável fraqueza do proletariado e de suas direções. A propósito do fenômeno, analisando as condições da Alemanha em inícios dos anos 1930, Trostky anotou:
O fascismo provém de duas condições: de um lado, de uma grave crise social; de outro lado, da fraqueza revolucionária do proletariado alemão. A fraqueza do proletariado, por sua vez, tem duas causas: primeiro, o papel histórico particular da social-democracia, que ainda é agência poderosa do capitalismo nas fileiras do proletariado; em seguida a incapacidade da direção centrista do PC em unir os operários sob a bandeira da revolução.[ii]
Obviamente que as condições observadas na Alemanha, embora semelhantes em alguma medida ao caso brasileiro, não podem ser tomadas sem cuidado, haja vista que não houve, no Brasil, nenhum grande ascenso revolucionário. Apesar disso, as jornadas de Junho de 2013 demarcam o momento de inflexão de uma conjuntura de inúmeras greves e lutas políticas, para uma outra de sinal invertido, com ofensiva de frações da burguesia que passaram a exercer a hegemonia sobre os setores médios, frente a um proletariado apassivado e incapacitado por suas tradicionais direções.
O fascismo não se caracteriza apenas pelo ódio ou pelas promessas de ordem a qualquer custo partidas das bocas dos seus chefes. A característica principal do fenômeno é que, em meio ao desespero de milhões, quando os chefes autorizam, estimulam e sugerem que tudo será resolvido de maneira simples, e que o culpado é o sempre o outro (as mulheres, os negros, os LGBTs, os refugiados e as pessoas de esquerda), hordas de indivíduos, milícias e grupamentos paramilitares decidem que vão tratar dos problemas à revelia do Estado, das autoridades e das Leis estabelecidas.
No descrito episódio da placa de Marielle, as palavras do então candidato ao senado, Flavio Bolsonaro, que defendeu o acontecido dizendo tratar-se de “restauração da ordem”, reforçam a dimensão restauradora do fenômeno e a premissa de que o fascismo não se resume aos seus chefes. Já as declarações de Jair Bolsonaro, que disse não poder controlar seus apoiadores, um dos quais assassinou o mestre capoeirista e importante personagem da cultura afro-brasileira na Bahia, Moa do Katendê, acendem a luz de alerta para a vertiginosa escalada fascista que se dá sob os nossos olhos, com a conivência da imprensa e das autoridades do judiciário, bastante mais preocupadas em acusar a corrupção do PT do que procurar deter a violência motivada por questões políticas e pelo antipetismo.
Mas esse tipo de violência são suficientes para caracterizar o momento vivido como fascista ou, no mínimo, tendencialmente fascista ou fascistizante? Por certo que o processo vivenciado permanece aberto, mas não parece exagerado sugerir aproximações com a síntese estabelecida pelo historiador Robert Paxton que definiu o fascismo como
forma de comportamento político marcada por uma preocupação excessiva com a decadência e a humilhação da comunidade, vista como vítima, e por cultos compensatórios da unidade, da energia e da pureza, nas quais um partido de base popular formado por militantes nacionalistas engajados, operando em cooperação desconfortável, mas eficaz com as elites tradicionais, repudia liberdades democráticas e passa a perseguir objetivos de limpeza étnica e expansão externa por meio de uma violência redentora e sem estar submetido a restrições éticas ou legais de qualquer natureza.[iii]
E se está claro que ao lado de Bolsonaro não existe um partido de base popular, se não estão confirmadas as intenções de expansão externa em suas propostas, não deixam de sobressair a atuação de militantes que exaltam o nacionalismo e a unidade, associados às elites tradicionais que observam coniventes, quando não emprestam apoio ativo. Tal componente, combinado com a aberta crítica aos refugiados, especialmente os venezuelanos, que são tripudiados por eleitores que exaltam a violência redentora, dão aos guardas da esquina desses novos tempos sombrios as dimensões protofascistas que não existiam em sua plenitude na ditadura instalada em 1964, mas que agora vem recheada de ódio e promessas de ordem e extinção do ativismo. Por tudo isso, contra essa escalada fascista, é preciso resistir pela democracia construindo a necessária frente única antifascista.
[i] As menções feitas aos pronunciamentos feitos na reunião do Conselho de Segurança Nacional podem ser conferidas no filme Utopia e barbárie, de Silvio Tendler . Ver em Youtube
[ii] TROTSKY, Leon. Revolução e contra-revolução na Alemanha. Lisboa, Porto, Luanda: Centro do Livro Brasileiro, s/d, p 27.
[iii] PAXTON, Robert. A anatomia do fascismo. São Paulo: Paz e Terra, 2007, p. 358-359.
*Carlos Zacarias é colunista do Esquerda Online
Fonte: Esquerda Online