por Nathânia de Medeiros Oliveira
Incapacidade de lidar com demanda de entregadores mostra mais uma vez a desconexão de liberais da realidade
O capitalismo é um eterno devir de aparências, não à toa ele se funda e se sustenta em crises.
Vivemos atualmente uma pandemia e, diferentemente do que acreditam os economistas burgueses, o coronavírus também se conecta ao capitalismo: ou seja, não é um fator exógeno, pois não dá para um humano comum simplesmente sair do planeta terra.
Com isso, muitas pessoas perderam seus empregos, e se viram sem opções (viva a liberdade no liberalismo!), senão se submeterem a péssimas condições de trabalhos, vinculando-se a aplicativos. Sim, digo trabalho, pois entregadores não são empreendedores, mas sim proletários (que empreendedores são esses que adoecem e ficam sem seus lucros?). É o auge do nosso capitalismo contemporâneo: auto exploração, auto estranhamento.
Tivemos um exemplo no dia 01 de julho, quando ocorreu o #brequedosapps, que exigiram aumento das tarifas mínimas por entregas, fim dos bloqueios praticados pela plataforma e o mínimo de assistência durante a pandemia, fornecendo materiais de proteção contra o covid 19.
A realidade dos entregadores é triste: são ciclistas e motoqueiros (as), mulheres e homens que trabalham com entregas por aplicativo e que nesse novo cenário está sendo a única fonte de renda, pois muitos foram demitidos de empregos fixos. Muitos pedalam 100 km, 12 a 14 horas por dia, no sol e na chuva: quem desconhece essa realidade, basta olhar as ruas para verificar a constância dos entregadores trafegando, dos mais variados aplicativos. Alguns alugam bicicletas por não terem condições de arcar com os custos de uma bicicleta ou moto, de modo que os entregadores, além de entregar sua força de trabalho, também precisam patrocinar o meio de transporte e sua manutenção, e tudo sai do seu bolso.
Alguns estão registrados como MEI (microempreendedor individual), e estão desprotegidos em caso de acidentes. As mulheres que trabalham como entregadoras assumem jornadas de trabalho duplas, triplas, pois devemos considerar o trabalho doméstico não remunerado, e para aquelas que são mães, a necessidades de estarem presentes nas vidas de seus filhos. Vários deles transportam comidas nas mochilas térmicas enquanto estão com fome, por não ser possível descansar e se alimentar ou porque se alimentar fora de casa é um custo a mais com o qual não podem arcar.
Como solução, alguns liberais vêm sustentando a gorjeta como opção, algo que apaziguaria o conflito, sem influência do Estado por meio dos seus entes reguladores. Mas será que isso solucionaria o cerne do problema? Obviamente que não, mas os liberais estão tão atônitos jogando seu jogo de RPG chamado capitalismo, que sequer conseguem perceber que existe vida além dele.
Aos que desconhecem o termo, RPG significa ‘Role-playing game’, e cada participante atua como um personagem e assume um papel respectivo dentro do jogo. Há uma história por trás (aqui, poderíamos considerar as mirabolantes teses sobre a natureza do homem e as teorias sobre contrato social que fundaram o Estado moderno) e existem as fichas, que poderíamos considerar nessa história de RPG liberal como princípios de micro e macroeconomia, e também os dados, que seriam a bolsa de valores e a ‘mão invisível do mercado’, ou seja, não precisa corresponder à realidade material, basta seguir as regras e as fantasias do sistema, mas animação do jogo é garantida pelas crises.
Ao pensar a partir do jogo criado, é possível criar soluções que são aparentemente plausíveis. Mas o mundo real não corresponde ao jogo. Repassar para o consumidor final as exigências dos entregadores, é fingir que tudo ficará bem, e negar toda a possibilidade de discussão sobre a modificação da forma do trabalho assalariado e a relação patrão-empregado e uma demanda por melhores condições de trabalho que não se resumem unicamente ao pagamento pelo serviço prestado. E não há necessidade de agências reguladoras intervirem nesse processo. O bom senso de pagar o devido poderia vir das empresas, que estão lucrando exponencialmente durante a pandemia.
Não à toa Marx dedicou tantos anos de trabalho e escrita para mostrar o mundo fantasioso desses economistas, que criaram as regras do jogo de RPG em tratados acadêmicos. “O concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações, portanto, unidade da diversidade”, diz Marx. Ou seja, não adianta começar observando a economia e sua estagnação em tempos de crise, achando que é necessário que ela circule para gerar valor.
O mundo real nos informa que é o trabalho humano que gera valor. São mulheres e homens que produzem o valor, e os liberais insistem em não querer enxergar isso desde o século XIX. Mas a realidade que estamos vivendo é de uma pandemia, e os cidadãos que não podem ficar em suas casas, porque se não morrerem de covid 19, morrerão de fome, desfalecem à mingua nas ruas do capital que estimula o consumo a todo custo, pois a roda do dinheiro não pode parar.
Fonte: Carta Capital