Unidades não são capazes de gerar oportunidades para adolescente infrator; juízes, promotores e especialistas apontam sistema falido e incapaz de tirar jovem do crime
Na primeira vez em que Lucas*, de 16 anos, foi apreendido, ele estava com o primo mais velho em uma “missão”: “só repassar” drogas para um conhecido. Seria a única vez. Ele queria dinheiro para comprar um smartphone. Depois, a vontade de ter roupas de marcas e uma moto levou o jovem novamente ao crime: Lucas foi apreendido e passou um ano em um dos centros de ressocialização da capital. De lá pra cá, ele colecionou mais duas passagens pelo sistema socioeducativo: por porte ilegal de armas, tráfico e até assassinato.
Apesar do nome “ressocialização”, as 36 unidades do Estado destinadas a jovens infratores têm passado longe de conseguir resgatar os menores da criminalidade, e a grande maioria deles, assim como Lucas, volta a cometer delitos. Segundo a legislação, eles deveriam encontrar nesses espaços um atendimento multidisciplinar que, além de produzir o diagnóstico psicológico e social, estabelecesse um plano de atendimento para esse jovem sair da situação que o levou ao ato infracional.
Especialistas e autoridades ouvidos pela reportagem consideram que o sistema está falido e se aproxima mais de uma rede de prisões do que de centros de ressocialização. A juíza Valéria Rodrigues, que lida há 13 anos com crianças e adolescentes apreendidos na capital e levados ao Centro Integrado de Atendimento ao Adolescente Autor de Ato Infracional (CIA-BH), é taxativa no diagnóstico: faltam oportunidades aos menores dentro dos centros. “Vivemos um verdadeiro sistema prisional juvenil: eles passam a maior parte do tempo encarcerados. O que faz o adolescente mudar não é a medida aplicada, pois os que se propõem a melhorar o fazem por vontade própria, por questão de caráter. O sistema está falido”, sentencia.
Segundo ela, o tempo de internação também é insuficiente para a ressocialização: “Dá seis meses, o Estado quer liberar esse adolescente para ter giro de vaga. O governo é inconsequente, porque, depois de meses, eu encontro esse mesmo jovem aqui de novo. É preciso um ano e meio, no mínimo, para trabalhar e ressocializar esse jovem”, aponta.
A Secretaria de Estado de Segurança Pública (Sesp) não informou à reportagem o índice de reincidência no crime referente a menores que passaram pelos centros de ressocialização. Segundo o coordenador do Centro de Estudos em Segurança Pública da PUC Minas, Luis Flávio Sapori, um estudo está sendo conduzido para tentar chegar a esses dados.
Para os servidores de unidades ouvidos pela reportagem, a prática esportiva se resume a partidas de futebol. “Quando dá, levamos bola para eles jogarem, porque nem material temos. Eles passam a maior parte do dia vendo televisão”, diz um funcionário.
De acordo com o especialista em direito penal José Santiago, faltam itens básicos nos centros, como luz e absorventes. “O Estado lembra da punição, mas esquece da garantia de direitos”, rebate o advogado.
Com a falta de estrutura, segundo o promotor de Defesa dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes de Belo Horizonte, Marcio Rogerio de Oliveira, a tendência é que esse jovem acabe indo para o “verdadeiro” sistema prisional. “Ele vai acabar parando no sistema prisional ou vai morrer muito cedo, antes dos 24 anos”, ressalta. “A sociedade também não ajuda, acha que a solução é prender. É uma política difícil de se trabalhar, não gera voto”, lamenta.
Vínculos com o crime são fortes
A realidade dos adolescentes e dos jovens em débito com a Justiça é, em geral, marcada pela ambiguidade de sentimentos. Para a integrante do Observatório da Juventude – programa de ensino, pesquisa e extensão da Faculdade de Educação (FaE) da UFMG – Jordanna Rocha de Almeida, o anseio de reconquista da liberdade para começar uma nova vida concorre com os vínculos e os compromissos estabelecidos com o submundo do crime. “A pretensão de mudança de vida deles é minada porque o contexto já está consolidado. Além disso, seguem inseridos em um ciclo de exclusão social, expostos à violência e com seus direitos básicos violados”, afirma.
Por outro lado, de acordo com Jordanna, a culpa e a expectativa de conquista de um trabalho honesto são fatores que também integram o imaginário dos jovens infratores: “A perspectiva de enquadramento moral, que inclui o trabalho, a constituição de família e o vínculo religioso, sobrepõe-se, dessa forma, ao real entendimento sobre a inviabilidade do crime” (LF)
Lotação inverte prioridade de programa
Além da falta de estrutura, para a pesquisadora do Núcleo de Cidadania, Conflito e Violência Urbana da Universidade Federal do Rio de Janeiro Juliana Vinuto, os objetivos das unidades de ressocialização ficam comprometidos pela superlotação. “As unidades já não estão adequadas, e, com a superlotação, a rotina e a movimentação destes jovens ficam comprometidas. A prioridade vai ser sempre ele não fugir, então muitas atividades vão sendo deixadas de lado”, afirma.
Conforme reportagem de O TEMPO mostrou no último dia 23, o sistema de internação, internação provisória e semiliberdade destinado a menores infratores em Minas está 21% acima da capacidade, de acordo com a Secretaria de Estado de Segurança Pública (Sesp). Ao todo, são 1.800 jovens sob a tutela do governo.
“O trabalho deveria ser inverso: evitar que esses jovens chegassem a esses locais – é a prevenção. A lotação interdita a empatia de ambas as partes, tanto do adolescente quanto do funcionário”, analisa.
*Nome fictício
Fonte: Letícia Fontes/O Tempo