A destruição da Amazônia vira preocupação internacional e ameaça até as exportações do País
Ser, na mesma semana, tema da reportagem de capa da revista de economia mais influente do mundo e um dos destaques da principal publicação científica do planeta é raro, se não inédito, e ninguém poderá negar esse feito de Jair Bolsonaro, ainda que o motivo de tamanha projeção seja mais um vexame internacional. Foi preciso o governo do ex-capitão chegar a extremos no incentivo à atividade econômica predadora e questionar o conhecimento científico com truculência e obscurantismo medieval para receber a devida atenção da The Economist e da Nature. Antes tarde. “Velório da Amazônia: o Brasil tem o poder de salvar a maior floresta da Terra ou de destruí-la”, fulminou a capa do semanário econômico. “O ‘Trump Tropical’ espalha uma crise sem precedentes para a ciência brasileira: as tensões aumentam à medida que a administração Jair Bolsonaro questiona o trabalho de cientistas do Estado e determina cortes debilitantes nos fundos de pesquisa”, descreve a publicação científica.
“Tanto a redução na cobertura de árvores quanto a mudança no clima estavam colocando em risco o futuro da floresta bem antes das eleições de outubro de 2018, mas depois disso a Amazônia enfrentou outra ameaça: Jair Bolsonaro, o novo presidente e possivelmente o chefe de Estado mais perigoso do mundo para o meio ambiente”, prossegue a Economist. “Desde que assumiu o cargo, ele reduziu o cumprimento das leis ambientais e promoveu a exploração econômica das reservas indígenas. Agora, seu governo está avançando com propostas para diminuir o tamanho das áreas protegidas em regiões como a Amazônia”, sublinhou a Nature.
As publicações que provavelmente Bolsonaro, seus ministros e a horda que o defende nas redes sociais classificarão de “comunistas” chegaram aos leitores em uma data oportuna, a sexta-feira 2, dia em que o raivoso ocupante do Palácio do Planalto decidiu exonerar, sob a acusação de falsear dados, o presidente do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, Ricardo Galvão, acadêmico de reputação condizente com a respeitabilidade científica internacional do órgão que dirigia. A crise começou na quinta-feira 18, quando a mídia divulgou como de responsabilidade do Inpe dados sobre um aumento de 88% no desmatamento na Amazônia entre meados do ano passado e julho deste ano. Tratava-se, entretanto, da reprodução de uma reportagem mal fundamentada do portal G1, ligado à Globo, na página de um dos cursos de pós-graduação do instituto e que foi considerada de maneira equivocada como uma publicação da própria instituição em um processo tortuoso detalhado por Galvão na entrevista à página 18. “A questão do Inpe, eu tenho a convicção de que os dados são mentirosos, e nós vamos chamar aqui o presidente do Inpe para conversar sobre isso, e ponto final nessa questão”, afirmou o ex-capitão, naquele seu estilo que destrói mais rapidamente a língua pátria do que as queimadas são capazes de arrasar as florestas, durante um café da manhã com jornalistas estrangeiros. “Mandei ver quem está à frente do Inpe. Até parece que está a serviço de alguma ONG, o que é muito comum”, insinuou.
O autointitulado capitão motosserra esculacha a ciência e menospreza líderes europeus
Galvão não se deixou intimidar, mostram suas afirmações a jornalistas feitas desde o sábado 20 em resposta aos ataques do capitão: “Ele tomou uma atitude pusilânime, covarde, de fazer uma declaração em público talvez esperando que peça demissão, mas eu não vou fazer isso… O senhor Jair Bolsonaro precisa entender que um presidente da República não pode falar em público, principalmente em uma entrevista coletiva, como se estivesse em uma conversa de botequim…” “Isso é uma piada de um garoto de 14 anos que não cabe a um presidente da República fazer.”
O cientista explicou que os dados sobre o desmatamento da Amazônia são divulgados desde meados da década de 1970 e a partir de 1988 compõem a maior série histórica de informações de destruição de florestas tropicais respeitada mundialmente. “Ele disse que os dados do Inpe não estavam corretos, segundo a avaliação dele, como se ele tivesse qualidade ou qualificação de fazer a análise.”
Galvão aproveitou o espaço aberto na mídia pelas acusações sofridas para apresentar suas credenciais: “O presidente Bolsonaro tem que entender que eu sou um senhor de 71 anos, professor titular da Universidade de São Paulo, membro da Academia Brasileira de Ciências, fui presidente da Sociedade Brasileira de Física durante três anos, membro do Conselho Científico da Sociedade Europeia de Física durante três anos. Todos os diretores dessas unidades de pesquisa não são escolhidos por indicação política ou porque os pais deles quiseram dar um filé mignon para cada um”, disparou, em referência à indicação de Eduardo Bolsonaro para o posto de embaixador nos Estados Unidos. Em uma das inúmeras defesas do nepotismo, o ex-capitão admitiu: “Se eu puder dar um filé mignon ao meu filho, eu dou”. A respeito da insinuação de que agiria “a serviço de alguma ONG”, o físico declarou: “Nunca tive nenhum relacionamento com nenhuma ONG, nunca fui pago por fora, nunca recebi nada mais além do meu salário como servidor público”.
Galvão afirmou ainda que sua atitude foi deliberada e pretendeu chamar a atenção da comunidade científica e da sociedade em benefício do Inpe. A preocupação parece justificável, pois o governo está empenhado, segundo a Transparência Brasil, em “fazer um ‘apagão’ de dados oficiais produzidos por diferentes instituições que deveriam embasar as políticas públicas. Em vez de agir sobre a realidade, o governo prefere atacar os dados que a descrevem demonstrando pouco apreço por estudos científicos e evidências”, condenou a entidade.
Define a liberal The Economist: “Jair Bolsonaro, possivelmente o chefe de Estado mais perigoso do mundo para o meio ambiente”
O que incomoda Bolsonaro e seus apoiadores integrantes do agronegócio e do extrativismo é a alta eficiência do sistema de monitoramento e alertas sobre avanços do desmatamento emitidos pelo instituto, um instrumento consolidado de ação legal rápida para conter a devastação da Amazônia provocada pelos atos desenfreados de pecuaristas, madeireiros e mineradores.
O risco de uma hecatombe no País com reflexos no mundo é elevadíssimo e vai muito além da vital questão ecológica. Ela ameaça diretamente o agronegócio, principal fonte de divisas externas da economia brasileira, tábua de salvação do comércio exterior, e lança dúvidas sobre a conclusão do acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia. “As exportações serão violentamente afetadas se o Inpe parar de medir o desmatamento”, alertou Galvão na segunda-feira 5, em entrevista à BBC. O cientista explicou a CartaCapitalcomo a destruição da floresta afeta as vendas externas: “A maior parte dos países que trabalham com a questão da preservação do meio ambiente e principalmente com a do aquecimento global tem restrições contra os que exportam sem o que eles chamam de ‘selo verde’, uma certificação de que aquela exportação, principalmente de carne, mas também de grãos, não saiu de uma floresta virgem desmatada. Acontece que a competição para vender produtos agrícolas no mundo é muito grande e, se o Brasil desmatar a Amazônia para exportar, mesmo que seja pouco, os nossos competidores vão nos acusar de usar a floresta para plantio e exportação. Isso resultará em um corte violento nas exportações brasileiras”.
Heleno precisa ler Malba Tahan e não adianta seu chefe reclamar de Mello
As restrições estabelecidas no acordo firmado entre a União Europeia e o Mercosul a importações produzidas com danos ao meio ambiente vão nessa direção. E tendem a se tornar menos flexíveis ao longo do tempo. O exitoso desempenho dos Partidos Verdes nas eleições para o Parlamento Europeu não deixa dúvidas quanto ao peso do desenvolvimento sustentável nas discussões políticas do Velho Continente. Como explica à página 24 o ex-primeiro-ministro de Portugal José Sócrates, a preservação ambiental é um dos eixos do soft power exercido pela UE no planeta. Além disso, ressalta Sócrates, o reconhecimento do País está umbilicalmente ligado à preservação da Amazônia. “O desmatamento desenfreado é uma irresponsabilidade que conduzirá o Brasil à irrelevância e ao isolamento mundial”, anota.
A economia brasileira corre risco de perdas adicionais de 5 trilhões de reais em consequência da política ambiental do governo, calcularam pesquisadores da UFRJ, UFMG e UnB. Segundo os estudiosos, a combinação do desmonte de organismo de regulação e o desmatamento recorde afastaria compradores estrangeiros. “Maus brasileiros usam dados falsos contra a Amazônia”, insistiu Bolsonaro na segunda-feira 5. Dois dias depois, ao falar sobre questões ambientais para uma plateia de donos de concessionárias de veículos, ele reafirmou o uso de “dados imprecisos” de desmatamento, ironizou o presidente da França, Emmanuel Macron, e a chanceler da Alemanha, Angela Merkel, e autodeclarou-se “o capitão motosserra”.
Há, entretanto, reações. Em uma importante decisão, o Supremo Tribunal Federal refutou pela segunda vez, no fim de julho, a tentativa de Bolsonaro de transferir a demarcação das reservas indígenas da alçada da Funai para a do Ministério da Agricultura, levando o mandatário a queixar-se publicamente do voto do ministro Celso de Mello, para quem a iniciativa do presidente da República “traduz uma clara, inaceitável, inadmissível e perigosa transgressão” à Constituição. Uma derrota expressiva para o presidente, pois as reservas indígenas coincidem, em grande medida, com os recantos de preservação na Amazônia e incluem, por exemplo, o extenso estoque de cobre e associados situado no Nordeste da Amazônia, entre os estados do Pará e do Amapá, com uma área maior que a Dinamarca, que Michel Temer abriu à mineração e teve de recuar depois de enorme pressão interna e mundial.
“Bolsonaro tem repetidamente ridicularizado as leis ambientais como se fossem uma barreira para o progresso”, disse à revista Nature Maurício Voivodic, representante no Brasil da ONG WWF. “É por isso que estamos vendo mineradores ilegais invadindo terras indígenas e mais desmatamento.” Os resultados práticos da licença oficial para transgredir são trágicos, mostram episódios como a invasão, em julho, por garimpeiros da área indígena Wajãpi, no Amapá, com o assassinato do cacique Emyra Wajãpi e disparos sobre aqueles que procuraram reagir.
Entre os inimigos das reservas indígenas estão militares como o general Augusto Heleno, que, em uma modalidade peculiar de nacionalismo restrito ao aspecto territorial, não vê problema na entrega da estrutura industrial e tecnológica nacional centralizada na Petrobras, na Eletrobras, na Embraer e no pré-sal e de riquezas minerais a estrangeiros, mas teme a perda de soberania da União sobre as áreas habitadas pelos indígenas. Não é a sua única limitação. Perguntado no mês passado sobre a crescente preocupação internacional quanto à política ambiental do governo, reafirmou a crença bolsonarista: “Esses índices de desmatamento são manipulados. Se você somar os porcentuais que anunciaram até hoje de desmatamento, a Amazônia já seria um deserto”. Galvão ironiza e ensina: o general “simplesmente não sabe somar frações, não é? Eu até recomendaria a ele ler O Homem Que Calculava, de Malba Tahan, para aprender como é que se somam frações. O Inpe tem um histórico disponível, inclusive oferecemos para quem quiser olhar, até o governo, com todas as imagens consolidadas desde 1988, de quanto foi desmatado. Então é claro que não virou deserto. Vamos supor que a Amazônia tivesse 10 mil metros quadrados e que foram desmatados mil metros quadrados no ano passado. Se nós dissermos que houve neste ano um aumento de 10%, é 10% sobre mil, é o aumento incremental. É sempre sobre o desmatamento que já houve anteriormente e não sobre a área total”.
A ficha caiu para ao menos parte do empresariado do agronegócio. O presidente do Instituto CNA, braço da Confederação Nacional da Agricultura, Roberto Brant, disse que o governo federal prejudica a imagem da agricultura nacional: “Falar em garimpar em território indígena serve a quem? O governo deveria estar falando em métodos e processos para vigiar a Amazônia para valer”, afirmou Brant durante um evento na terça-feira 6, em referência à péssima repercussão externa das políticas ambientais. Para o líder da bancada ruralista Alceu Moreira (MDB-RS) há, no entanto, interesses externos nas críticas, que considera “absolutamente naturais do ponto de vista de quem de fora para dentro nos vê como concorrentes”.
Calcula-se que o Brasil perderia 5 trilhões de reais em exportações, se a desastrosa política ambiental seguir em frente
À obsessão por destruir a Amazônia transformada em política de Estado acrescente-se a liberação de um número recorde de agrotóxicos. Foram mais de 50 no fim de julho, 17 deles extremamente tóxicos, segundo várias entidades especializadas, e 290 desde janeiro. Nada se viu de semelhante nos últimos dez anos. A velocidade das liberações, explicam integrantes do setor, faz baixar o preço dos venenos para pragas. Conhecida como “Musa do Veneno”, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, ofereceu ao público uma explicação sui generis para a voracidade: “Às vezes, é preciso exagerar para o outro lado”.
Em clara obsessão que dá razão àqueles que o consideram um caso patológico, o autodenominado capitão motosserra voltou a provocar Merkel e Macron. “Eles não se deram conta de que o Brasil está sob nova direção”, disparou. A declaração ocorreu dias depois de Bolsonaro ter faltado a uma reunião agendada com o ministro dos Negócios Estrangeiros da França, Jean-Yves Le Drian, para ir cortar o cabelo, quando se deixou fotografar em um gesto que não deixou dúvida sobre a intenção da desfeita. Le Drian respondeu com savoir-faire. Segundo ele, o presidente brasileiro inaugurou a era da “diplomacia do barbeiro”.
O capitão voltou a ironizar Angela Merkel e fez questão de mostrar seu desrespeito ao ministro francês Le Drian
A reação do governo à avalanche de críticas no País e no exterior, além de negar os fatos e disparar contra os mensageiros, foi anunciar uma campanha, a ser veiculada principalmente na Europa, para afastar o risco de o clamor internacional contra a devastação prejudicar o comércio exterior. O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, percorrerá o continente no próximo mês para mostrar o que, no entendimento governista, seria “o Brasil de verdade”.
Salles terá de se haver com a Alemanha e a Noruega, parceiros que ameaçam deixar o Fundo Amazônia após o ministro insinuar malversação do dinheiro. Os dois países são os principais financiadores da iniciativa, que reserva mais de 3 bilhões de reais para projetos sustentáveis na floresta – e é celebrada por seu caráter inovador. Talvez ele se veja obrigado a esclarecer a adulteração de mapas ambientais para beneficiar mineradoras quando era secretário do Meio Ambiente do estado de São Paulo, motivo de uma condenação na Justiça antes da sua posse como ministro.
Brant, do Instituto CNA, expôs a preocupação do agronegócio
Nenhuma campanha será, no entanto, capaz de convencer o mundo enquanto Bolsonaro e sua turma continuarem a produzir pérolas de ignorância, desfaçatez e crendices (alguém acredita que eles conseguirão se conter?). A turma nunca perde uma oportunidade. O chanceler terraplanista Ernesto Araújo não se sentiu acuado diante das crescentes críticas e reprimendas internacionais. Em um evento no Itamaraty, o ministro deu nova contribuição mundial ao conhecimento dos fenômenos climáticos. Araújo negou o aquecimento global com base em uma experiência empírica, de campo: ao visitar Roma em abril, acabou colhido por uma frente fria. Se as temperaturas na capital italiana estavam baixas na primavera, raciocinou, o aquecimento global é uma falácia inventada pelas ONGs e pelo marxismo cultural que domina o planeta, não só o Brasil. Quem pode duvidar?
Salles quer mostrar à Europa o Brasil “de verdade”. Pausa para risos
Enquanto o núcleo do poder bolsonarista delira, as evidências dos danos da devastação da Amazônia para o Brasil e o resto do mundo acumulam-se, mostra a proliferação anormal de algas no Golfo do México e na costa dos Estados Unidos provocada principalmente pela disseminação, a partir do Rio Amazonas, de resíduos de fertilizantes usados na crescente produção agrícola em áreas desflorestadas, segundo a Universidade do Sul da Flórida. A cidade mexicana de Cancún, assolada pela super-reprodução de algas e pelo crime, é, entretanto, o modelo que inspira Bolsonaro a transformar Angra dos Reis, balneário onde possui casa e foi multado em 2012 por pesca ilegal, em um centro internacional de turismo. O capitão infrator retaliou os fiscais do Ibama, foi beneficiado recentemente pela prescrição da punição e pretende com seu projeto mudar a característica de Angra, que deixaria de ser uma área ecologicamente protegida em prol dos resorts de luxo e turistas abonados.
Na visão do governo, tudo está certo e só falta propaganda positiva do Brasil no exterior
O flagelo do governo Bolsonaro não para e as reações aumentam em todos os cantos do planeta. O dono de uma rede sueca de supermercados decidiu liderar uma campanha de boicote aos produtos provenientes do País e um professor de Harvard perguntou em um artigo de feitio neoimperialista: “Quem vai invadir o Brasil para salvar a Amazônia?” Um gaiato poderia acrescentar: “Antes disso, quem vai invadir Brasília para salvar o Brasil?”
Fonte: Carta Capital