por Pedro Serrano*
Pululam na mídia notícias de que as movimentações financeiras do jornalista estariam sob investigação do Coaf
Uma das questões levantadas sobre a chamada Vaza Jato é a suposta ilegalidade das mensagens, pelo fato de que poderiam ter sido obtidas por ação de hackers. Organismos do governo federal, em especial o Ministério da Justiça e a Polícia Federal, e outra parcela da mídia se apressaram em atribuir o vazamento a conduta criminosa, conclusão, no mínimo, precipitada.
Não há dúvida de que é necessário investigar se houve efetivamente o hackeamento de aplicativos de mensagens dos envolvidos. É preciso que se esclareça se as conversas foram obtidas por interceptação de sistema informático ou vazadas de outra forma, por exemplo, por algum de seus interlocutores ou até mesmo por funcionário do próprio Ministério Público Federal que a elas tenha tido acesso.
Mais grave, porém, do que falar em hackeamento criminoso é a investida contra o jornalista Glenn Greenwald, do The Intercept Brasil. Embora ele não seja oficialmente alvo da Polícia Federal, pululam na mídia notícias de que as movimentações financeiras do jornalista estariam sob investigação do Coaf.
Como vivemos tempos em que o óbvio precisa ser dito e redito, é preciso deixar claro que qualquer tentativa de incriminar o jornalista pela divulgação das mensagens é uma arbitrariedade. No exercício da sua atividade, o jornalista não comete crime ao divulgar o conteúdo das mensagens, da mesma forma que não cometeram crime os jornalistas que divulgaram informações vazadas pela Lava Jato durante as investigações dos casos de corrupção. É da função do jornalismo, no sistema democrático, a divulgação de informações de interesse público. Quem hackeia e transfere as informações é o responsável eventual pelo cometimento de crime, nunca o próprio jornalista. Logo, essa tentativa de intimidação é uma ofensa grave ao direito à livre expressão de pensamento, à livre circulação de informações e ao direito de imprensa livre. A investigação contra Greenwald, neste contexto, vulnera frontalmente a nossa Constituição e os valores da democracia e da vida civilizada, inaceitável no plano jurídico.
De volta à ação de suposto hacker, é preciso considerar um aspecto que é apontado e que importa a uma análise mais ampla da questão. Mesmo que se confirme a ocorrência de interceptação indevida, não se pode inferir de imediato que houve conduta criminosa, pois alguns fatores tornam esse caso especial.
Deve-se ponderar é que as divulgações revelam diálogos entre servidores públicos que, inclusive, se utilizaram de equipamentos (telefones e computadores) públicos para tratar de assuntos que deveriam ter sido abordados em processos judiciais, nos quais a defesa dos investigados também tivesse acesso às informações. Curiosamente, segundo divulgado, em 2018 o próprio Deltan Dallagnol, no contexto das discussões sobre a legitimidade de vazamentos da Lava Jato, em grupo no Telegram chamado “Liberdade de expressão CF”, afirmou que “autoridades públicas estão sujeitas a críticas e têm uma esfera de privacidade menor do que o cidadão que não é pessoa pública”. De fato, no exercício da função, o agente público lida, ou deveria lidar, com o interesse público, e não com o interesse privado.
O que se extrai das mensagens “vazadas” é, ao menos, a suspeita de que houve manipulação de investigações e processos com a finalidade de se obter a condenação de alguns réus, o que implicaria condutas muito incorretas por parte dos agentes estatais que delas participaram, resultando em grave vulneração dos direitos fundamentais dos investigados.
Diante desses fatos, mesmo que tenha havido conduta ilegal por parte de um hacker, há que se levar em conta a figura da legítima defesa de terceiro. O direito reconhece como legítima a conduta, a priori ilegal, realizada para defender o próprio direito ou de um terceiro. É possível, embora não provável, que as investigações levem à conclusão de que o hacker agiu para poder revelar a atuação ilegal de agentes públicos, que se utilizaram da força do Estado contra os direitos dos cidadãos. Um eventual hackeamento em face da ofensa ao direito essencial de liberdade, que, depois do direito à vida, é o mais relevante a ser protegido, significa uma infração de potencial agressivo muito menor.
Como afirmamos, e agora fica evidente com as revelações trazidas pelo The Intercept, a Lava Jato produziu processos penais de exceção – expressão cunhada pelo professor Fernando Hideo Lacerda –, que, embora em sua forma tivessem uma aparência de cumprimento da lei, da Constituição e dos valores da democracia, traziam conteúdo autoritário, de persecução política, tratando réus como inimigos, e não como seres humanos detentores de direitos. Por tudo isso é preciso ter cautela ao se afirmar, antes de investigação e devido processo legal, que houve crime na forma de obtenção das conversas divulgadas pela mídia.
*Pedro Serrano é jurista.
Fonte: Carta Capital