Por Gustavo Conde
Extraído de Brasil247
Muita gente diz que a esquerda perdeu e está perdendo. Eu pergunto: perdendo no quê? Essa é uma questão delicada porque vai mexer com os castelinhos de areia internos de cada um. Vamos a ela com um mínimo de coragem.
Nós estamos dando uma surra no golpe, na direita e em todo o campo dos partidos golpistas. 96% da população rejeita Temer. Lula tem de 55% a 60% de intenção de votos válidos em qualquer instituto de pesquisa. O PSDB é o partido mais rejeitado do Brasil. A Rede Globo é a emissora de TV mais odiada do país. Alckmin não sai dos magros 6% de intenção de voto para presidente. Meirelles tem 1%. Huck enfiou a sua viola desafinada no saco. Sergio Moro chafurda na lama da impopularidade. Quem está perdendo, cara-pálida?
Se a vitória se traduzir em quem tem o poder ilegítimo e em quem manipula poderes com agrados salariais corporativos, talvez a situação seja de ‘derrota’. Mas ser derrotado nisso é uma honra! Eu não quero ganhar na corrupção, na incompetência e na falta de votos. Eu não quero o poder pelo poder.
É essa falta de compreensão da vitória que obtivemos de 2 anos para cá que nos paralisa. Ficamos nos lamentando e prosseguimos cabisbaixos e assustados. Vivenciamos essa imensa sofrência como quem ouve uma música dor de cotovelo e padece pela perda da democracia amada. Por mais semelhanças e alusões que possa ter, o mundo político não é uma música de amor e nem uma partida de futebol. Essa ideia de derrota é fake, artificial, não existe.
Vou repetir com todas as letras: a derrota da esquerda não existe. A esquerda ganhou. Perdeu o mandato num golpe (100% aceito como golpe, hoje), mas ganhou de volta o protagonismo do discurso. Como linguista que estuda a história dos sentidos (e dos sentidos que constituem o poder), afirmo: isso não é pouco.
O país está sendo arrasado? Está. Pessoas estão sendo mortas? Estão. Há risco de o golpe durar mais? Há. Há o risco de cancelamento ou fraude nas eleições? Há. Há o risco de um golpe militar ipsis litteris? Há.
Mas, no campo ideológico, essa direita que devasta a estrutura de poder e canibaliza a soberania nacional não está construindo absolutamente nada senão um imenso sentimento de rejeição e ódio históricos. Ela conquista também o adesismo dos fracos e dos covardes – a primeira coisa que faz um covarde é aderir ao poder, seja ele qual for.
Claro que o nosso tempo biológico é um e o tempo histórico é outro. Muita gente acusa falta de paciência para “assistir o fim do golpe”. Primeiro: não “se assiste o fim de um golpe”, se luta. Segundo: os ‘impacientes’ costumam terceirizar a responsabilidade por sua paralisia: “ah, ninguém faz nada, só ficam na internet”.
É de toda essa desaceleração dos sentidos e dos ímpetos – misturada ao medo e aos espasmos de paralisia – que o golpe se alimenta. Aliás, o golpe se alimenta da reflexão deste missivista que vos escreve em vez de vos tomar pelos braços e empunhar nossos corações na Praça da Sé clamando por democracia. Eu me retrato e peço desculpas.
Dessa discussão sobre ‘vitórias morais’ e ‘derrotas práticas’, vem-me sempre à mente o colapso das tecnologias e seus respectivos relatos. Sean Parker, o fundador do Napster – um já antigo aplicativo revolucionário de download de músicas pela internet – fez falir todas as gravadoras gigantes que se apropriavam à vontade do direito autoral mundo afora.
A narrativa transformada em filme dá conta do imaginário que subjaz à questão. Diziam a ele: você perdeu. E ele respondia: na justiça. E emendava: “alguém quer comprar ações da Tower Records?”.
Ninguém – exceto os covardes que, admito, são muitos (mas não a maioria) – vai comprar ações desse golpe, desse judiciário ou dessa direita obtusa, com o perdão do pleonasmo. Eles já perderam. Ganharam na justiça e só.
E lamento dizer que o estrago que eles vêm fazendo e vão continuar a fazer está intimamente ligado com a nossa aceitação de uma derrota que não existe. Essa aceitação os assanha e os estimula a prosseguir nessa depredação dos sentidos da democracia e de soberania.
Cármen Lúcia, num certo sentido, é vítima. Vítima de uma conjuntura social que a faz acreditar que a justiça deve continuar em sua lógica punitivista e seletiva porque os interessados – a população que crê na democracia – estão dando essa senha diariamente, aceitando o quadro social e político como uma “derrota”.
Uma luta, um embate, uma batalha, uma guerra, seja social, espiritual, mental, ideológica ou discursiva, não se trava com a cabeça baixa. Ter a consciência prática da derrota é aceitar essa derrota.
O mundo real da política não é uma partida de futebol, nem uma luta de boxe. Mas, às vezes, as estratégias caras ao esporte podem surtir algum efeito no embate histórico das ideias.
Que não se aceite uma derrota que não existe.