Imposto sobre Livro? Para entender imposto, elasticidades e justiça tributária

por Desajuste

Foto: Reprodução da internet

Nas últimas semanas, a Reforma Tributária de Paulo Guedes foi apresentada ao Congresso. Atualmente, nosso sistema tributário estabelece uma vasta gama de alíquotas e isenções de taxação. A proposta encaminhada do governo unifica o PIS e o Cofins (dois impostos federais) numa contribuição1 única de todos os serviços e produtos, com a mesma taxa, sem isenções.

Nesse contexto, uma questão delicada veio a tona no debate público: a tributação sobre livros. A nossa Constituição isenta livros e publicações de qualquer tipo de imposto – mas não o isenta de contribuições. Por essa artimanha de juristas, é possível que, dentro da Reforma de Guedes, os livros passem a ser tributados como qualquer outro produto. O Ministro, assim como Bernard Appy, outro economista figurinha da Reforma Tributária, deram declarações na última semana a favor da tributação sobre publicações, enquanto editoras e organizações da sociedade civil criaram a campanha #DefendaOLivro, se posicionando contra a proposta.

Como, da perspectiva econômica, essa possível nova tributação pode afetar os leitores, o Estado e as editoras? Essa parece uma ótima oportunidade para entendermos melhor alguns conceitos econômicos. Vamos quebrar a discussão em partes menores para entendê-la melhor, bora lá.

Primeiro, imposto

Imposto é toda e qualquer contribuição que consumidores e produtores pagam ao Estado, seja por produzirem ou consumirem um produto ou serviço, seja pela sua renda ou riqueza. Existe um monte de imposto no Brasil e é conveniente separá-los em dois grupos:

1) Impostos diretos: são impostos aplicados diretamente sobre a renda ou sobre posses dos indivíduos e empresas. O melhor exemplo é o imposto de renda, que deve aparecer descontado do seu holerite, caso você seja assalariado. Também entram pra conta impostos sobre propriedades urbanas (IPTU) e rurais (ITR).Nesses impostos, é comum que as alíquotas variem de acordo com a grandeza da riqueza – maiores propriedades pagam mais IPTU e os mais ricos pagam maiores alíquotas de IR, por exemplo – isso significa que eles são, em essência, progressivos – cobram mais de quem tem mais.

2) Impostos indiretos: são os impostos cobrados sobre consumo das pessoas de bens e serviços. É o imposto que você paga quando compra um sanduíche, um maço de cigarro. São chamados de impostos indiretos, porque aparecem para o consumidor embutidos no preço, sendo difícil diferenciar o que lá é preço (que reflete demanda, oferta, custos de produção), e o que é imposto. Para esse tipo de imposto, é mais difícil controlar quem está pagando por ele. Como assim? Explicamos: vamos supor um livro que custe 45 reais e com o imposto custa 50, ou seja, 5 reais de imposto. Se Albertina que é classe alta e tem muita renda quer comprar esse livro, ele paga 50 reais. Ao mesmo tempo, se Francisco, de uma classe social mais baixa, quiser o mesmo livro, ele tem que pagar os mesmos 50 reais. Os 5 reais de imposto pelo livro são pagos independente do seu nível de renda. Isso significa que, para Albertina, o peso do imposto sobre sua renda é muito menor do que para Francisco.

A discussão do imposto do livro cai no segundo tipo de imposto, como você deve ter notado. Livros são bens que as pessoas compram. Como já te contamos, a carga tributária para livros, isto é, o quanto de imposto é cobrado sobre esse bem, é zero. Por ser zero, a gente fala que livros tem isenção tributária, isenção = desobrigação. O que tem sido proposto é mudar esse valor de zero para um valor comum de outros produtos. Antes de entrar em como isso afeta a demanda e a oferta e ver essas curvas mais a fundo, vamos falar sobre a carga tributária brasileira.

Carga tributária nacional

Esse é talvez um dos poucos consensos entre os economistas: nossa carga tributária é bagunçada.

A tributação brasileira é feita de maneira desigual: cada produto paga uma alíquota diferente. Quando um produto é relativamente mais tributado, ele fica mais caro, e desestimula seu consumo. Já que consumo e produção geralmente estão bem ligados, a tributação incentiva certas indústrias e desincentivando outras. Em alguns casos, esse pode até ser um instrumento importante e útil, mas o que acontece muito é que indústrias fortes pagam bons lobistas para não ter que lidar com muito imposto. Toda essa maleabilidade da carga tributária não só cria incentivos estranhos como gera desconfiança lá fora. Você abriria uma empresa num país que amanhã pode criar um imposto pesadíssimo sobre seu produto? Melhor apostar em um que tenha mais estabilidade né? Por trás do imposto do livro tem essa tentativa também: evitar que determinados produtos sejam sobretaxados enquanto outros são isentos.

Diante dessa bagunça, algumas questões podem ser relevantes. Vamos tentar responder rapidinho aqui:

Por que temos impostos indiretos, se eles criam essas distorções, e são regressivos? Os impostos indiretos, apesar de serem mais complicados, têm algumas vantagens importantes. Primeiro de tudo, são mais fáceis de ser cobrados. Como é colocada uma alíquota direta sobre os bens e serviços consumidos, o Estado têm menos trabalho em analisar o quanto precisa recolher de imposto, além de que a correção com a inflação é automática. Essa cobrança direta também torna mais difícil a sonegação. Outro ponto relevante, no Brasil, é que a arrecadação tributária sobre bens e serviços está diretamente nas mãos de estados e municípios – mas isso é toda uma outra discussão que está sendo pautada pela reforma tributária.

Tem como tributar mais os mais ricos mesmo com impostos regressivos? Se os impostos regressivos são bons por um lado, por outro ele têm a enorme desvantagem da desigualdade. Para atenuar esse problema, é possível ter alíquotas de impostos mais altas para bens comumente consumidos por pessoas de renda mais alta – os famosos bens de luxo. Seria o caso, por exemplo, de tributar coisas como iates, carros de luxo etc. O problema dessa alternativa, é que ela é muito insuficiente: os bens de luxo são consumidos em quantidade muito menor, então mesmo com uma alíquota alta sobre eles, não dão conta de sustentar toda a arrecadação que o governo precisa.

Elasticidades e efeito para produtor e ofertantes

Vamos agora para a última parte da nossa análise: o que acontece com a demanda e com a oferta quando introduzimos um imposto. Então, primeiro, importante dizer que geralmente, a incidência tributária, ou seja, quem arca com o imposto (produtor ou consumidor) é dividida entre os produtores e consumidores. Em outras palavras, geralmente os produtores não repassam todo o valor do imposto, e geralmente não represam e absorvem tudo também não. Mas como saber então quando eles seguram e tomam o prejuízo e quando passam pro consumidor? Por um mecanismo que os economistas chamam de elasticidades das curvas. Elasticidade de uma curva de demanda ou de oferta é o quanto essa demanda ou essa oferta variam quando a gente varia uma outra coisa – no nosso caso, o preço. Sabemos que isso pode ser confuso, mas não desiste da gente, vamos explicar melhor!

Vamos primeiro pensar pela demanda, com alguns exemplos. Insulina é essencial pra vida de pessoas com diabetes. Mesmo que o preço suba muito, as pessoas com diabetes continuam comprando insulina. O mesmo vale para quedas de preço: não é por que cai muito que elas vão comprar muito mais. Isso também vale para sal, por exemplo. Você não compra muito mais sal porque caiu o preço, nem compra muito menos quando está muito caro: sal é meio que essencial. Agora, olhando outro lado imagina um brigadeiro recheado na padaria. . Se o preço de um brigadeiro que numa semana era 3 passou pra 5,50, você desiste comprar. Se ele cai pra 0,50 você compra até dois, três. O brigadeiro tem, provavelmente, uma curva de demanda muito elástica – o preço afeta muito nossa escolha de compra. Já a insulina e o sal têm uma curva pouco elástica, ou talvez até mesmo inelástica – independente do preço, compramos quantidades quase fixas de sal e insulina.

A elasticidade na oferta é parecida: alguns produtores têm muita facilidade de aumentar sua produção quando o preço aumenta, ou de reduzir quando o preço diminui: um produtor de gelo, por exemplo. Se o gelo tiver valendo bem, ele produz muito mais gelo, no dia mesmo fala pra produzir mais e dá um jeito de estocar. Se o preço cair, ele ja fala pra produzir menos, no ato quase. É uma produção flexível mediante o preço – é uma a oferta de gelo é elástica. Outras ofertas não: um serviço de hotel por exemplo. O dono do hotel não consegue construir mais quartos porque o preço aumentou um pouco, e nem faz sentido ele destruir quartos quando o preço cai: a oferta de quartos de hotel é inelástica, não varia, mediante oscilações no preço.

Mas o que tem a ver com livro isso? A elasticidade das curvas de oferta e demanda em relação ao preço indicam quem arca mais com o prejuízo: os consumidores ou os produtores. Podemos tomar como regra de bolso: o imposto fica, na sua maior parte, com o mais inelástico. Para demanda elástica, o consumidor não topa pagar mais e portanto, provavelmente os produtores arcarão com esse custo e vice versa: com a demanda mais inelástica,os consumidores topam comprar a mesma quantidade a um preço mais alto, de modo que os produtores conseguem repassar o valor dos impostos para o preço final.

Pelos trabalhos científicos que encontramos, a demanda por livros no Brasil parece ser mais inelástica, talvez porque os governos e escolas sejam compradores importantes no mercado. Dessa forma, o imposto sobre livros recairia mais sobre os consumidores finais.

Da teoria a conjuntura

Agora que entendemos o que é imposto e elasticidade no mundo simplificado da teoria econômica, vamos tirar a lupa e entender como estão, no Brasil de 2020, os mercados livreiro e editorial, certamente os mais afetados por um possível novo imposto sobre o livro.

O cenário não é bonito: mercado editorial brasileiro vive uma baixa prolongada e aprofundada pela estagnação econômica dos últimos anos. Segundo dados apurados pela FIPE (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas), todos os setores de venda de livros estão em queda livre, com exceção de artigos religiosos – que na verdade, observou aumento modesto, na casa de 1%. As livrarias também não parecem caminhar bem. São tristes símbolos dessas crises a luta pela sobrevivência das redes de Livraria Saraiva e Cultura, que entraram com pedido de recuperação judicial no ano passado, acumulando prejuízo. Se as coisas estão difíceis para as gigantes, imagina para pequenas livrarias de bairro: entre 2008 e 2018, fecharam as portas mais de 21 mil livrarias. Para além disso, o valor médio do livro caiu em 33% de 2006 a 2011 – os livros têm ficado mais baratos, embora os custos dos livreiros e editoras não tenham caído.

Esse quadro de crise parece indicar que livreiros e editoras não têm capacidade de absorver o aumento no custo e vão precisar, invariavelmente, aumentar o preço ao consumidor. Guedes tem dito que a população que consome livros vem das camadas mais ricas – que pode pagar mais caro. Appy, completou: “com os recursos que são arrecadados, você pode fazer uma política que seja melhor para cultura do que manter a não tributação de livros.” Mas olhando pelo lado da demanda, essa diminuição no espaço de pessoas que podem comprar livros fará que esse mercado fique mais concentrado e deve expulsar principalmente pequenas editoras independentes e pequenas livrarias.

Cartas na mesa

Será que, como sociedade, é melhor que os livros sejam de fato mais caros e tenhamos um Estado arrecadando mais e podendo distribuir mais livros para escolas públicas, por exemplo? Será que vale a pena abrir mão das pequenas editoras? Ou o Estado deve sim proteger esse setor da economia, que já sofria com as mudanças de tecnologia, e foi ainda mais fragilizado pela crise, mas sem sombra de dúvidas importante para nosso desenvolvimento?

Esse texto não vai te dar nenhuma dessas respostas – porque ainda não as temos. Mas vamos recapitular um ponto importante que não pode ser deixado de lado nessa discussão: a diferença entre impostos progressivos e regressivos. O imposto sobre o livro é regressivo não porque elitiza seu consumo, mas porque cobra exatamente o mesmo de Albertina e Francisco, cobra o mesmo do rico e do pobre. Não é colocando ou tirando impostos no consumo que discutimos justiça tributária, mas aumentando a progressividade do sistema tributário como um todo – é nas alíquotas do Imposto de Renda, nas propostas de taxação de grandes fortunas, no imposto sobre terras e bens.

Os impostos indiretos devem ser sim ser mais simples e distorcerem menos, mas não é aí, para nós, que está o centro da questão. Mais urgente do que mobilizar a sociedade para debater o imposto sobre livros, é mobilizar a sociedade para lutar por uma revisão nas alíquotas do IR, para garantir que estejamos cobrando de quem pode e deve pagar.

FONTES

Como a Livraria Cultura e Saraiva entraram em uma crise profunda

Justiça homologa plano de recuperação judicial da Livraria Cultura

O golpe contra o livro imune

O plano de taxar livros num mercado editorial em crise

O mercado de livros em meio à crise, pandemia e risco de volta de tributos

Manifesto em defesa do livro

O impacto da variação de preços na demanda por livros no varejo

Assinam

Os membros do Desajuste Ana Paula Garcia, Beatrice F-Weber e Matheus Valentim, jovens economistas que pesquisam e acreditam numa Economia Fora da Curva.

 

 

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