por Eric Gil Dantas
Ao assumir cargos governamentais o empresário não deixa de ser empresário, geralmente aproveitando a sua estadia no Estado para valorizar o seu capital social, garantir a manutenção dos interesses do seu setor de origem, e muitas vezes, valorizar os contratos da sua própria empresa.
É o que se chama de “conflito de interesses”. O tema voltou à tona com a polêmica envolvendo o chefe da Secom (Secretaria Especial de Comunicação Social da Presidência), Fabio Wajngarten. No entanto, o caso está longe de ser um evento isolado, compondo, na verdade, um padrão do governo Bolsonaro.
Neste artigo listamos dez vezes, além desta, em que o governo topou com casos explícitos de conflito de interesses, quase sempre “ignorados” pelo presidente.
O primeiro caso foi o do, à época, presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), o general da reserva do Exército Franklimberg Ribeiro de Freitas. De volta à presidência da instituição, que havia deixado nove meses antes para trabalhar como conselheiro consultivo para assuntos indígenas, comunitários e ambientais da mineradora canadense Belo Sun Mining, sem sequer ter cumprido a quarentena exigida do cargo, o general da reserva teria que lidar, no cargo, com a tentativa dos seus ex-chefes de expandirem a exploração de ouro na Amazônia, alvo de questionamento da Justiça por conta da presença de povos indígenas no local. Mesmo saindo e entrando pela porta-giratória de uma grande mineradora, este caso explícito de problemas de conflitos de interesse não incomodou em nada Bolsonaro.
O segundo caso foi o da mudança de responsabilidade das demarcações de terra, transferidas da Funai para o Ministério da Agricultura, historicamente nas mãos dos ruralistas e dirigido pela empresária do setor, Tereza Cristina (DEM-MS). A tensão entre ruralistas e povos indígenas é explícita, e esta mudança foi justamente para entregar nas mãos dos primeiros o poder de demarcar onde é área de preservação indígena ou não.
Nomeado pela Tereza Cristina para o cargo de diretor-geral do Serviço Florestal, Valdir Colatto (MDB-SC), membro da bancada ruralista e autor de projeto de lei que libera a caça de animais silvestres no país, também é um caso explícito onde há conflito entre o objetivo de preservação ambiental e a política de devastar as reservas naturais brasileiras.
O quarto caso foi o da Reforma da Previdência dos militares. Produzida e apresentada pelos próprios militares, foi uma reforma ridícula, que aumentou enormemente os gastos públicos com os rendimentos destes servidores.
O quinto e o sexto casos são relativos a Paulo Guedes. Este personagem poderia nos ser insumo para enchermos um artigo inteiro só com suas contradições entre interesses públicos e privados, mas ficaremos aqui com dois casos específicos. A primeira é relativa à Reforma da Previdência. Fundador da BTG Pactual, banco de investimentos que lucra com a aposentadoria privada no Chile, Guedes tentou sem sucesso implementar aqui o mesmo sistema que já lhe rende alta lucratividade em terras chilenas, o de capitalização. O segundo caso envolvendo o ministro também ocorreu através do seu banco, o BTG. Em março de 2019 ocorreu a 5ª rodada de leilões de aeroportos, para retirar a sua administração da Infraero para entregar à empresas privadas. Uma das vencedoras foi a Zurich Airport, que passou a administrar os aeroportos de Vitória e Macaé. A empresa foi assessorada pelo BTG Pactual, de Guedes.
Os quatro outros casos de conflito de interesses ocorreram na área de tecnologia da informação do governo e estão relacionados também com as tentativas de privatização do Serpro e da Dataprev. O sexto caso é o do Paulo Antônio Spencer Uebel, secretário Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital. Responsável pelo andamento das tentativas de privatizar estas duas estatais, Uebel foi CEO da empresa Webforce Venture, uma incubadora que cria, desenvolve e negocia empresas, inclusive de tecnologia da informação. O sétimo é o de Luis Felipe Salin Monteiro, secretário de Tecnologia da Informação e Comunicação, que tem participação na LFM Tecnologia e Desenvolvimento de Sistemas, empresa que atua também nesta área. O oitavo caso é o do presidente do Serpro, Caio Mário Paes de Andrade, empresário na área de TI, que mantém relações com empresas americanas do setor e comandou a provedora americana PSINet no Brasil e na América Latina e é diretor e mantém relações de sociedade com o secretário Paulo Uebel na empresa WebForce, apesar de sua licença por provisão legal. Por fim, temos o caso de Christiane Almeida Edington, presidente da Dataprev. Executiva com carreira na área privada de TI e telecomunicações, durante oito anos foi vice-presidente de Tecnologia da Informação e Processos da Telefônica/Vivo, com participação em vários conselhos de administração de empresas. Sócia da Edington Estratégia e Consultoria de Negócios, onde atua junto com o marido, Luís Carlos Tourinho Edington, dono da Newcom World Comércio e Serviços, que comercializa equipamentos de informática, telefonia e comunicação, além de fazer manutenção e serviços de TI.
Poderíamos listar muitos outros casos deste governo, tal como na área econômica, mas nos limitaremos a estes dez. Obviamente isto sempre ocorreu, mas se intensifica com a relação subserviente que Bolsonaro tem com o empresariado, principal pilar de sustentação de sua política antipovo. O curioso é o completo desdém que o político de extrema-direita tem relação à isto, tal como vemos mais uma vez no caso do chefe da Secom. Tendo em vista que inegavelmente a porta-giratória tem impactos positivos na lucratividade das empresas privadas, em detrimento do Estado, como mostra uma vasta literatura da Administração Pública, este não é um problema menor do que tantos outros que estouram todos os dias desde 1º de janeiro de 2019.
Economia para os 99%
É difícil afirmar que o capitalismo deu certo vivendo em um país onde mais de um quarto da população vive abaixo da linha da pobreza. Mas se você fizer parte do “1%” mais rico por que não achar que está “tudo bem, obrigado”? Esta coluna se preocupa com temas econômicos do cotidiano: desemprego, renda, passagem de ônibus, inflação, aposentadoria e um longo etc., mas sempre na perspectiva dos 99%, afinal de contas, nenhuma análise econômica é neutra.
* Eric Gil Dantas é economista do Instituto Brasileiro de Estudos Políticos e Sociais (IBEPS) e doutor em Ciência Política. É militante da Resistência/PSOL. Artigo publicado originalmente no site Pragmatismo Político.