O valor disponível para investimentos neste ano representa um terço do gasto em 2013
Em maio, o Laboratório de Virologia da UFRJ detectou uma nova ameaça à saúde pública no Rio de Janeiro. Provocada por um vírus homônimo, “primo” da Chikungunya, a febre de Mayaro é endêmica na Região Norte e começava a fazer as primeiras vítimas entre a população fluminense. Dois meses depois, um furto colocou em risco a descoberta. Em um país no qual até mesmo os túmulos são violados por um punhado de cobre, os ladrões arrancaram os cabos de um gerador que alimentava a unidade. Resultado: dois freezers de alto custo queimaram, comprometendo parte das amostras de células e vírus mantidas a uma temperatura inferior a 80 graus Celsius.
“O estoque de Mayaro estava em um dos equipamentos danificados. Felizmente, não foi perdido. Vamos ficar até novembro ou dezembro testando as outras amostras para retomar os experimentos que dependem desse material, um retrabalho enorme”, explica Amílcar Tanuri, coordenador do laboratório. Esse é o segundo furto de cabos ocorrido na unidade desde o início do ano. Em março, um curto provocado pela ação dos criminosos queimou vários aparelhos. Dezenas de milhares de reais foram gastos para repará-los, e o laboratório investiu em câmeras de segurança. Não foi o suficiente para intimidar os ladrões, restou claro após o episódio de julho. “Pedimos a construção de uma cerca atrás do prédio, mas a reitoria não sabe de onde tirar o dinheiro para a benfeitoria. Nosso maior temor é que os serviços de limpeza e vigilância sejam interrompidos por falta de pagamento, como ocorreu em outras ocasiões.”
Mesmo com o recente desbloqueio de 44 milhões de reais, a UFRJ passa por uma situação financeira desesperadora. O valor liberado pelo Ministério da Educação na segunda-feira 30 será usado para quitar as faturas de junho e julho com empresas que prestam serviços de alimentação, limpeza e manutenção externa, bem como para pagar a conta de energia elétrica referente a fevereiro. A vigilância dos campi só foi mantida porque a universidade liquidou, na semana anterior, as parcelas relativas ao mês de junho. Funcionários terceirizados estavam sem receber os salários há 26 dias. Para honrar os compromissos com a empresa de segurança, foi preciso suplicar ao governo federal por 15 dias a liberação emergencial de 4 milhões.
O orçamento da UFRJ encolhe ano após ano. Em 2016, era de 461 milhões de reais. Neste ano, dispõe de apenas 375 milhões, e 64 milhões continuam bloqueados pelo MEC. “Aqui no laboratório ainda não fomos afetados diretamente pela suspensão das bolsas de pesquisa, embora exista a previsão de novos cortes em 2020. Mas estamos com a espada na cabeça em relação à estrutura da universidade”, lamenta Tanuri, que só conseguiu consertar um dos dois freezers queimados em julho. Os prejuízos, insiste o epidemiologista, vão muito além do impacto financeiro. “Um pesquisador analisava cérebros de camundongos infectados pelo zika, para investigar os potenciais danos do vírus no homem. Perdeu quatro meses de trabalho, as amostras estragaram. É desanimador.”
A penúria é perceptível mesmo nos setores vistos como estratégicos pelo governo. Desde o período eleitoral, Jair Bolsonaro não esconde o encantamento com o grafeno, “outra riqueza desconhecida do Brasil”. Constituído de carbono puro, ultrafino e mais resistente que o aço, o material é um potente condutor de eletricidade e calor. Coordenador do Centro de Tecnologia em Nanomateriais e Grafeno, conhecido pela sigla CTNano e vinculado à UFMG, o físico Marcos Pimenta afirma que as pesquisas com o composto também estão ameaçadas. “Por vários anos fomos muito bem financiados, mas os investimentos caem desde 2014. Neste ano, não recebemos nada do CNPq, nem 1 real. O número de bolsas despencou. Chegamos a ter 60 pesquisadores bolsistas, financiados por diferentes agências de fomento, e hoje temos apenas 5”, queixa-se. “Não bastasse, há um risco de essas bolsas não serem renovadas no próximo ano.”
No instituto de Pimenta há uma série de pesquisas envolvendo aplicações do grafeno. Uma delas é desenvolvida em parceria com a Petrobras, para desenvolver ferramentas úteis na exploração do pré-sal. Na área de energia estuda-se o uso do material na fabricação de baterias capazes de armazenar uma quantidade maior de carga. Os nanotubos de grafeno também podem ser utilizados em processos genéticos e na fabricação de vacinas. “Bem no momento em que estamos próximos de apresentar aplicações práticas para a sociedade, todo esse conhecimento acumulado está ameaçado pela falta de recursos”, lastima. “Os equipamentos estão ficando obsoletos, falta dinheiro para comprar insumos. Faço pesquisa há 30 anos e nunca passei por uma dificuldade tão grande. No passado, houve períodos de parcos investimentos, mas o número de pesquisadores era muito menor. A situação é gravíssima.”
Os números revelam a dimensão do estrago. Para 2019, o orçamento aprovado pelo Congresso previa 5,1 bilhões de reais em investimentos do Ministério da Ciência e Tecnologia. Com o contingenciamento de 42% imposto pela área econômica do governo em abril, restaram pouco menos de 3 bilhões de reais. “Depois, alguns recursos foram desbloqueados, mas a previsão é encerrar o ano com um dispêndio de 3,3 bilhões. É um valor muito baixo, representa um terço do que foi aplicado em 2013”, compara Ildeu Moreira, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. De acordo com uma nota técnica divulgada pelo Ipea no fim de agosto, o orçamento global do ministério é inferior ao de 2005, em valores corrigidos.
De autoria de Fernanda De Negri e Priscila Koeler, técnicas do Ipea, o estudo mostra que o investimento do CNPq, que financia bolsas a mais de 80 mil pesquisadores, despencou pela metade em apenas cinco anos. O valor efetivamente gasto pela agência de fomento passou de 2,6 bilhões de reais em 2013 para 1,3 bilhão no ano passado. Os recursos previstos para 2019 esgotaram-se muito antes do previsto. Na sexta-feira 27, foram desbloqueados 82 milhões de reais para o pagamento de bolsistas em outubro. Ainda assim, o órgão acumula déficit de 248 milhões, e não oferece garantia de remuneração aos estudantes e pesquisadores nos últimos meses do ano.
No caso do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, principal fonte de recursos disponível para o suporte a projetos de pesquisa, o orçamento de 4 bilhões de reais previsto para 2019 é uma peça de ficção. Cerca de 86% do valor está contingenciado e, até julho, apenas 300 milhões de reais foram executados. No plano de investimentos, estima-se que seriam necessários 1,1 bilhão de reais para custear todos os projetos aprovados em anos anteriores. Há, no entanto, pouco mais de 850 milhões de reais disponíveis, fora da chamada reserva de contingência. “Isso significa que o fundo não será capaz de custear nem mesmo os investimentos já contratados”, enfatiza a nota técnica do Ipea.
“O impacto é devastador, estamos diante de um crime de lesa-pátria. Demoramos 70, 80 anos para construir um sistema nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, e tudo isso corre o risco de se perder em pouco tempo”, indigna-se o neurocientista Sidarta Ribeiro, vice-diretor do Instituto do Cérebro, ligado à UFRN, e integrante da SBPC. “Na verdade, começou a fuga de cérebros. O governo está humilhando os pesquisadores com essa história de pagar ou não as bolsas. Então acerta um mês, mas não garante o próximo. É inaceitável. Parece haver um claro objetivo político: desmontar o Brasil naquilo que ele tem de mais estratégico. Até porque nenhum país do mundo se desenvolveu sem investir em ciência e tecnologia.”
Para Ribeiro, não faz sentido usar o argumento da austeridade fiscal para sacrificar o setor. “Em situações adversas, de crise, países como China e Coreia do Sul optaram por ampliar os investimentos em ciência e tecnologia. Deu certo, eles se desenvolveram muito. Aliás, foi isso o que Bolsonaro prometeu em campanha. Ele fazia um discurso nacionalista, dizia que este era um setor estratégico, que iria investir 3% do PIB. Agora, entrega nossos melhores pesquisadores para o exterior e tenta privatizar as universidades federais, vender as estatais a preço de banana. É um conjunto de medidas que acena para o desmonte do País”, analisa. “Hoje vejo muitos celebrando: ‘Ah, o agro é pop, o agro é vida’. Mas quem fez a produtividade do agronegócio aumentar? Foram os cientistas da Embrapa, foi o Centro de Recursos Biológicos Johanna Döbereiner, lá em Seropédica, estudando a fixação de nitrogênio por bactérias. Devemos abrir mão disso para quê? Para garantir o pagamento dos juros da dívida pública? Isso não fará o Brasil crescer em nada, em nada. É um projeto contra o País.”
O neurocientista afirma que um dos objetivos do Instituto do Cérebro, inaugurado em Natal em 2011, era justamente contribuir para a repatriação de cientistas brasileiros espalhados pelo mundo. Ele próprio passou uma temporada de dez anos nos EUA, onde se doutorou pela Rockefeller University (Nova York) e deu sequência às suas pesquisas pela Duke University (Carolina do Norte). Hoje, a instituição é dirigida pela neurocientista alemã Kerstin Schmidt. “Fico imaginando o que passa na cabeça dela quando a gente faz rateio para comprar papel higiênico, café, açúcar. Estamos com vários equipamentos quebrados, sem verba para consertar. Temos alunos sem bolsa. Estou pagando do meu bolso para que eles possam concluir o mestrado ou doutorado”, diz Ribeiro. “Por falta de equipamentos ou reagentes, tivemos de deixar de fazer experimentos ou mudar a estratégia experimental em ao menos três projetos, que estudam o funcionamento do hipocampo, como o cérebro guarda e consolida a memória, a influência do sono nesse processo.” O engenheiro Richard Stephan sabe bem o que é sacrificar as finanças pessoais em prol da ciência. Em 2014, ele apresentou à comunidade científica o protótipo do MagLev-Cobra, trem de levitação magnética desenvolvido pela Coppe/UFRJ. À época, não faltou apoio. O projeto futurista recebeu contribuições do BNDES, da Faperj, da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência, e também de grandes empresas, como OAS, Weg, White Martins e Akzo Nobel. “De 2014 para cá, o cenário mudou. Estamos seguindo aos trancos e barrancos”, conta. “Tive um pedido negado pelo BNDES, os recursos da Faperj foram congelados, até por conta da gravíssima crise política e fiscal do Rio de Janeiro. No início do ano passado, não tinha dinheiro nem para pagar a minha equipe, composta de um engenheiro, um técnico e uma secretária-executiva. O gasto mensal era de 20 mil reais, e banquei o salário deles por cinco meses. Somente depois a diretoria da Coppe e a Faperj conseguiram encontrar uma forma de garantir o pagamento pelo restante do ano.”
Stephan sabe o potencial de seu projeto. Compacto, leve e não poluente, o MagLev-Cobra flutua silenciosamente sobre os “trilhos” e transportou 18 mil passageiros na linha experimental construída na Cidade Universitária, ligando os Centros de Tecnologia 1 e 2, um percurso de 200 metros. Por ora, os brasileiros lideram a corrida pelo desenvolvimento da inovadora tecnologia de levitação magnética por supercondutividade. “Somos os únicos no mundo a ter um protótipo desses funcionando fora do laboratório, transportando até 30 passageiros por viagem”, orgulha-se o criador. Com um custo de implantação equivalente a um terço do valor gasto em um projeto de metrô convencional, o trem tem potencial para atingir 100 quilômetros por hora e ser uma alternativa de transporte em grandes centros urbanos. Não por acaso, a Southwest Jiaotong University, sediada em Chengdu, berço da engenharia ferroviária na China, manifestou interesse no projeto e firmou uma parceria acadêmica com a Coppe em 2017.
O futuro do MagLev-Cobra está, porém, ameaçado por falta de investimento. O projeto foi aprovado em um edital de financiamento à pesquisa da Agência Nacional de Energia Elétrica, mas problemas burocráticos e de natureza jurídica atrasam o início dos repasses, diz Stephan. “Tenho verba até o fim de 2019. Para o ano que vem, dependo desse edital”, explica. “Se o apoio não chegar a tempo, o projeto para. Não tenho mais condições de investir. Se colocar mais dinheiro do meu bolso, vou destruir meu casamento. Minha esposa ficou muito chateada. Agi calado, ela só descobriu depois.” Seria esse o tipo de parceria público-privada desejada pelo governo?
Fonte: Carta Capital