por André Veloso
O que têm em comum centenas de revoltas populares ocorridas nas cidades brasileiras desde o Período Imperial até junho de 2013?
Foi uma manifestação que rompeu com a normalidade da cultura política do país. A revolta contra o aumento do preço do transporte público levou às ruas uma quantidade de pessoas que nunca havia participado de protestos. Sua violência surpreendeu as autoridades e acabou por estabelecer uma crise de governabilidade. Isso se deu não apenas pela questão do transporte público em si, mas pelo fato de que os acontecimentos romperam com consensos estabelecidos e com a mediação exercida pelo governo, que até então podia se dar ao direito de se relacionar apenas com atores políticos que ele mesmo reconhecia como legítimos.
Essas afirmações foram feitas por historiadores que levantaram e analisaram a Revolta do Vintém – um protesto contra o aumento de 20 réis na tarifa do bonde do Rio de Janeiro que se transformou em sublevação popular no ano de 1880 –, mas poderiam facilmente se aplicar a uma revolta iniciada contra 20 centavos, 133 anos depois.
A Revolta do Vintém começou como um protesto convocado por senadores oposicionistas, republicanos, contra a instituição do imposto de um vintém (20 réis) sobre a tarifa dos bondes. O aumento era uma medida fiscal para salvar o orçamento governamental, que viu o segundo protesto, já no dia 1 de janeiro de 1880, transformar-se em uma revolta incontrolável no centro da cidade, com manifestantes virando bondes, arrancando pedras do calçamento e criando barricadas para enfrentar a Guarda Nacional. O saldo do dia foi de 3 mortos e mais de 20 feridos, e pequenas revoltas e desobediências prolongaram-se por dias pelas ruas cariocas. A imagem de soberano de D. Pedro II foi desgastada. Seu gabinete imperial seria demitido dois meses depois, e o imposto vigoraria como letra-morta, até ser oficialmente revogado em setembro de 1880.
Desde então, “tudo permaneceu do jeito que tem sido – transcorrendo, transformando”, como diria Gilberto Gil em Tempo Rei. Nos anos que se passaram entre a Revolta do Vintém e Junho de 2013, praticamente tudo se transformou na sociedade brasileira para que algumas relações insistam em permanecer. Em 1880 éramos uma “monarquia constitucional”, com a escravidão ainda em vigor. Hoje, temos uma democracia republicana frágil e combalida, que ainda sofre os impactos estruturais da herança escravista.
No último quarto do século XIX, apenas 10% dos 10 milhões de brasileiros moravam em cidades e em apenas quatro delas havia algum tipo de transporte urbano coletivo – o bonde por tração animal, puxado por mulas ou burros, existia no Rio de Janeiro, em Recife, Salvador e São Paulo. Hoje, mais de 90% dos 200 milhões de brasileiros vivem em espaços considerados urbanos. O transporte público não só é uma realidade como também epicentro de uma crise, constrangido pelo aumento acelerado do número de carros e motos. A frota nacional ultrapassou os 100 milhões de veículos em 2018.
Mas algumas de nossas tantas permanências históricas reaparecem em uma pergunta: Por que o transporte público seguiu sendo objeto de revoltas populares?
Sublevações espontâneas, e muitas vezes violentas, fazem parte da história do transporte público brasileiro. Na primeira metade do século XX, o meio de transporte hegemônico nas cidades brasileiras era o bonde elétrico. Inaugurado em 1892 no Rio de Janeiro, em 1899 em São Paulo e em 1902 em Belo Horizonte, o bonde muitas vezes não passava de uma contrapartida para que grandes empresas de capital internacional pudessem ter monopólio sobre a geração, a transmissão e a venda de energia elétrica para as grandes cidades brasileiras. A pesquisadora Regina Pacheco constatou que, para a cidade de São Paulo, em 1909, a concessionária Light baixou e congelou as tarifas de bonde ao nível do ano de 1900 em troca da extensão de seu contrato de monopólio. Na época dos bondes, um aumento de tarifas era algo totalmente extraordinário.
Em Belo Horizonte, o primeiro reajuste se dá apenas em 1928, 26 anos após a implantação, em função de uma seca generalizada que diminuiu a produção de energia. Em São Paulo, apenas em 1947, depois de a Light entregar a concessão para o município, que se viu às voltas com um déficit acumulado virtualmente impagável. Ao constatar o rombo que não poderia cobrir sem aumentar outras fontes de receita, a prefeitura determinou um reajuste de 100%, realizado no dia 1º de agosto de 1947.
No dia seguinte, a população iniciou uma revolta surpreendente e espontânea, que foi assim narrada por José Álvaro Moisés, um dos primeiros pesquisadores da questão: “Pela manhã, os trabalhadores e a população em geral mantêm a rotina normal de vida da cidade, sem dar qualquer sinal do que iria acontecer a partir das 11 horas, quando as primeiras turmas de trabalhadores começam a deixar as fábricas para o horário de almoço e descanso. De repente, em diversos pontos da cidade […] grupos de populares tomam a iniciativa das depredações, quebrando vidros dos veículos de transporte, ateando fogo às cortinas e destruindo bancos, relógios de marcação de passagens e tudo o mais. Segundo os relatos dos jornais, as iniciativas de pequenos grupos são imediatamente acompanhadas por populares que estão nas filas de ônibus ou bondes e recebem a adesão de pedestres que passavam pelos locais. Não há, nesses fatos, indícios de organização prévia no que acontecia então. Entre as onze da manhã e as quinze horas da tarde são incendiados centenas de ônibus e bondes e, onde os veículos ardiam, começa a se juntar uma multidão que, segundo as descrições da imprensa, não esconde o seu entusiasmo com o espetáculo de veículos destruídos.”
Naquele dia, o governador do estado de São Paulo, Adhemar de Barros, abandonaria o Palácio dos Bandeirantes e fugiria para o interior. No tempo de uma tarde, mais de 500 veículos – entre bondes e ônibus – foram destruídos ou danificados: um terço da frota de transporte público da maior cidade da América do Sul. Como na Revolta do Vintém, a violência pareceu incontrolável e a espontaneidade, surpreendente. Durante muito tempo, essa espontaneidade não foi aceita pelos comentadores políticos, que insistiam em identificar líderes. Sem direção, a revolta se dissolveu rapidamente, mas a cidade demoraria cinco anos para recuperar a quantidade de veículos perdida.
Como explicar uma alteração tão drástica da normalidade em tão pouco tempo? O evento catalisador, o estopim, foi o aumento da tarifa, mas este ângulo parece insuficiente para uma compreensão satisfatória dos acontecimentos. É certo que a carestia sempre foi um problema social delicado, das revoltas camponesas contra o aumento dos alimentos na Inglaterra (descritas pelo historiador Edward Thompson como uma espécie de economia moral das multidões) aos descontentamentos da opinião pública com a inflação atualmente. Mas outras mercadorias do cotidiano também subiam de preço sem causar comoção semelhante. A resposta parece estar na própria natureza do transporte público, ou, de maneira mais ampla, na forma como a mobilidade urbana se configurou nas cidades.
A necessidade de deslocamento cotidiano sempre acompanhou o desenvolvimento urbano. Quanto maior e mais complexa uma cidade se tornava, maior também era o grau de especialização das atividades e sua divisão geográfica e social. Essa complexidade suplantou a autonomia simples com que viviam camponeses durante séculos, suprindo suas poucas necessidades com a autoprodução de alimentos e vestuário, que quando muito os fazia se deslocar excepcionalmente à cidade para obtenção de ferramentas e outros instrumentos.
Com mais especialidades geradas pelo desenvolvimento das cidades, o fluxo urbano tornou-se necessário para a sobrevivência cotidiana. Por muito tempo, e ainda hoje, predominou o deslocamento a pé. Mas novas formas surgiram à medida que as necessidades iam crescendo. O primeiro transporte coletivo moderno, o omnibus, surgiu ainda puxado por animais na Paris do começo do século XIX. Seu nome trazia um significado muitas vezes esquecido: omnibus significa “para todos”, em latim. A democratização do acesso à cidade, ainda o grande símbolo de esperança de transformação social, vem na premissa básica do transporte coletivo – está inscrita em sua origem.
Contraditoriamente à promessa democrática, no entanto, o transporte coletivo se estabeleceu de imediato como mercadoria, isto é, um serviço que é vendido e cobrado diretamente ao usuário. O desenvolvimento das cidades também definiria seu principal propósito: cada vez mais o transporte passou a se configurar como um imprescindível instrumento para o deslocamento de contingentes de trabalhadores.
Já no fim do século XIX, os sistemas de transporte público levavam uma massa urbana que se aglomerava nas bordas das cidades para as únicas formas de sobrevivência que possuíam então: o trabalho e a vida assalariada. Não só isso, o transporte público possibilitou às classes dominantes uma relativa distância desses trabalhadores, que precisavam buscar locais de moradia baratos – e, portanto, periféricos. O transporte passa a contribuir para a produção de cidades mais espalhadas e segregadas, tornando-se elemento crucial para que o cotidiano de produção se realize. Trabalhadores do subúrbio não têm alternativa a não ser o trem ou o bonde e, cada vez mais, o ônibus. Não por acaso, há um termo técnico para esse tipo de passageiro: “usuário cativo”.
Para a maioria dos habitantes de um Rio de Janeiro efervescente do fim do século XIX ou de uma São Paulo industrial da década de 1940, a possibilidade de acesso ao espaço público e à vida coletiva era substituída pelo deslocamento compulsório para a apropriação privada do trabalho. Esse deslocamento ainda se dava à custa do próprio trabalhador até o advento do vale-transporte, em 1985.
Mesmo assim, o espaço de um ônibus é, ainda hoje, espaço público dos mais democráticos que restam nas cidades. Ele nos dá a visão da diversidade pulsante em que estamos inseridos, colocando-se como um fio que percorre o urbano conectando cotidianos, espaços, pessoas, suas percepções e representações de mundo. Como simultâneo lugar de encontro e passagem, o transporte público é a primeira transição entre a vida pública e a privada, e nos repõe em uma dimensão mais ampliada do nosso lugar no mundo.
Sob essa perspectiva, um aumento de tarifa aparece, então, como aquilo que justamente é – a ampliação da barganha exigida para nos colocar nesse lugar, e a afirmação do deslocamento como necessidade e extração de valor e de trabalho. O aumento evidencia a extorsão intrínseca aos fluxos urbanos, em detrimento de suas possibilidades democráticas.
Das revoltas populares que colocaram em questão o transporte durante o breve interregno democrático brasileiro, entre 1945 e 1964, a mais violenta foi a Revolta das Barcas. Única forma de deslocamento entre as cidades do Rio de Janeiro e Niterói em 1959, o serviço hidroviário das barcas, prestado privadamente pela Cia. Cantareira, estava interrompido em função de uma greve de funcionários. Impossibilitados de acessar a capital, cerca de 30 mil manifestantes entraram em confronto com o aparato militar destacado para encerrar a greve, em uma revolta cujo maior emblema foi o incêndio da estação Cantareira. O saldo foi de 5 mortos e 118 feridos, além de veículos e prédios incendiados ou depredados, incluindo-se aí a residência dos donos da Companhia. No ano seguinte, a concessão foi entregue ao poder público. A precariedade do serviço, entretanto, continuaria, e seria lembrada no famoso Mambo da Cantareira, do compositor Gordurinha: “Só mesmo vendo como é que dói: trabalhar em Madureira, viajar na Cantareira e morar em Niterói / Ei, Cantareira, vou aprender a nadar…”.
Apesar da legitimação, em 1964, da solução por meio da força para os conflitos sociais, as revoltas populares contra o transporte dariam poucos anos de trégua. O dia 16 de outubro de 1974 marca a coincidência de duas revoltas não correlacionadas. Em Brasília, em virtude de aumento da tarifa dos ônibus para as cidades-satélite, parte da população se revolta e depreda mais de 40 veículos. Na Baixada Fluminense, a pane num trem de subúrbio faz com que 3 mil passageiros incendeiem e apedrejem os vagões da composição. Em ambos os casos foi necessária a intervenção da Polícia Militar. Em Brasília, o aumento seria revogado no dia seguinte.
Em uma sociedade que passava pelas maiores taxas de crescimento urbano de sua história, a latente precariedade do acesso dos municípios metropolitanos e das periferias às capitais começava a cobrar seu preço. Seriam então os sistemas ferroviários metropolitanos, cronicamente precarizados, o principal alvo de explosões de revolta dos passageiros. Em um levantamento dos estudos sobre a questão, foi possível identificar, entre 1974 e 1981, pelo menos 38 ocasiões de revolta nas quais veículos e, muitas vezes, edifícios foram destruídos e o aparato repressivo do Estado precisou entrar em ação. Diferentemente das revoltas anteriores, o principal motivo era a precariedade do transporte em si: atrasos, panes, acidentes, superlotação e queda de passageiros do trem em movimento.
As revoltas frequentemente eram grandes e violentas demais para serem ignoradas, e acabavam por furar o bloqueio de censura imposto à imprensa. Eram necessárias respostas do governo, e a primeira delas era, invariavelmente, a repressão: Polícia Militar, Polícia do Exército, Polícia Ferroviária, Infantaria do Exército, Corpo de Bombeiros, Infantaria da Aeronáutica e até Brigadas de Paraquedistas estão entre as forças mobilizadas para conter as revoltas ou evitá-las, nos dias seguintes. Depois do incêndio de nove estações do trem metropolitano na Baixada Fluminense, em 1975, o próprio presidente Ernesto Geisel se viu obrigado a comparecer ao Rio de Janeiro, em companhia do presidente da Rede Ferroviária Federal, para prometer medidas de melhoria do transporte.
Nesse caldo social de revolta nas grandes cidades, chama atenção a permanência de uma “ética do trabalho”. Nos relatos colhidos em reportagens, a principal angústia parece ser o medo da demissão por atraso ou a perda de mais um dia de trabalho. Parte de uma jornada de trabalho extensiva, o movimento pendular casa-trabalho era, então, colocado como de exclusiva responsabilidade do empregado. Assim, é possível classificar os quebra-quebras como parte de um conflito clássico entre capital e trabalho que pautou a maior parte das disputas políticas dos séculos XIX e XX.
A disputa pela mobilidade nos anos 1970 e 1980 era colocada nos termos apenas do acesso ao trabalho e da diminuição do tempo desperdiçado nos deslocamentos. O trabalho aparecia como algo anterior às outras possibilidades da vida urbana e do direito à cidade que a mobilidade poderia oferecer, como o lazer, o ócio, a errância.
Nesse momento de abertura política, populações periféricas passaram a se organizar nos chamados “Movimentos Reivindicativos por Transporte Coletivo” – lutas locais pela criação e por melhoria de linhas de ônibus para o centro da cidade. Abaixo-assinados, pressão pela mídia, reuniões com autoridades e empresários fizeram parte de estratégias e ações que, na época, não tinham precedentes e aumentavam a pressão pela volta da democracia.
Arecessão econômica do começo dos anos 1980, em conjunto com a abertura democrática que legitimava a pressão popular pela melhoria dos serviços, gerou uma das primeiras crises nacionais de financiamento para o setor de ônibus urbano. Práticas anteriores de precarização e aumento de tarifas já não eram tão facilmente aceitas, e falências e fusões passaram a ocorrer com maior frequência.
É nesse contexto que ocorre uma grande mudança: a criação do vale-transporte, Lei Federal nº 7.418/1985, que estabelece que o empregador deve arcar com os custos do transporte do empregado, descontando no máximo 6% de seu salário. O benefício surge como uma solução para o financiamento do transporte público e o atrelamento definitivo de sua lógica ao mundo do trabalho. O direito de deslocamento reconhecido é aquele entre a casa e o trabalho, e aos excluídos do mundo do trabalho formal não cabe questionar a restrição dos direitos de acesso ao transporte ou à cidade, representada pela tarifa, mas, sim, a própria exclusão da formalização do trabalho.
Discursivamente, ganha força o argumento de que o preço do transporte não é um problema. É preciso ganhar bem para poder pagá-lo. Criam-se, assim, categorias de legitimidade para os deslocamentos urbanos: usar o ônibus para ir trabalhar é mais válido e legítimo do que usá-lo por outros motivos, em especial o lazer. A política de transporte público reafirma a cidade como espaço de produção e retoma o espectro da “vadiagem” presente desde os primeiros regulamentos: acesso ao ônibus apenas para aqueles que se inseriram no universo da cidadania regulada.
Não é coincidência então que, como sistematizou o economista André Aranha em seu estudo Vale-transporte e construção da mobilidade excludente, publicado no Congresso de 20 anos do Observatório das Metrópoles, a década de 1990 seja simultaneamente um período de ausência de revoltas populares significativas contra o transporte e dos maiores aumentos proporcionais de tarifa da história. Em valores de 2018, a tarifa média de São Paulo passa de R$1,75, em 1993, para R$4,15, em 1999 – um aumento de 137%. Em Belo Horizonte e no Rio de Janeiro, de R$1,75 para R$3,00 no mesmo período. Em nível nacional, uma ida e volta por dia útil em um mês, somando 44 passagens, passa a representar 29% do valor de um salário mínimo em 2003, em comparação com 19%, em 1993 – um aumento agregado real de 52%.
O acordo do vale-transporte possibilita a mediação entre os três segmentos inseridos na cidadania regulada: para as empresas pagantes é possível compensar os gastos por meio da diminuição do salário pago e consequente isenção fiscal, além de selecionar empregados que morem mais perto das empresas. Para os trabalhadores formalizados e seus sindicatos, é um benefício a mais. E, para as empresas de ônibus, é uma fonte de financiamento e receita antecipada dos serviços prestados. Um pacto fordista tardio, em uma sociedade que já abandonava suas características “industriais”.
Para os demais, quando muito, o direito ao transporte passa a ser negociado por categoria de usuário, e são inúmeros os que obtêm ou pleiteiam alguma gratuidade: idosos, militares, carteiros, pessoas com deficiência, gestantes, pacientes de hemodiálise, estudantes, entre outros. Novamente a perspectiva universalista e democrática do transporte cede espaço a uma política de controle e barganha, com cada categoria em busca do próprio benefício segmentado em detrimento da população como um todo.
Anova onda de revoltas pelo transporte virá daqueles deixados de lado no novo arranjo político. Em 2003, em Salvador, as tarifas de ônibus são reajustadas de R$1,30 para R$1,50. Protestos convocados por entidades estudantis tradicionais rapidamente saem de controle e assumem uma dimensão explosiva e generalizada entre os estudantes secundaristas. Por toda a cidade, dezenas de milhares de jovens, entre eles crianças de 11 anos, fazem das escolas pontos de concentração e debate e realizam bloqueios diários das vias públicas, exigindo a revogação do aumento. Novamente, em um processo espontâneo, desta vez com menos violência, a onda de protestos dura três semanas e termina em frustração – sem a revogação do aumento, em um acordo realizado a portas fechadas entre o prefeito e algumas entidades estudantis.
A experiência, entretanto, seria marcante e fundamental para uma nova forma de organização que surgia. A juventude urbana seria sua protagonista, duplamente excluída na mobilidade urbana – incapaz de participar como consumidores e motoristas no processo de motorização que passa a ser hegemônico nas grandes cidades brasileiras, e invisível ao antigo pacto fordista do transporte público – que dimensiona linhas, horários e preços para os trabalhadores formais.
Em 2004 e 2005, tentativas de aumento de tarifa dos ônibus em Florianópolis são impedidas por uma juventude organizada que toma as ruas, convoca a população, bloqueia estações de ônibus e resiste à violenta repressão policial, que ganha repercussão nacional. A fundação do Movimento Passe Livre (MPL), ainda em janeiro de 2005, dá nova dimensão à luta pelo transporte: o primeiro movimento organizado em nível nacional passa a ter como meta a universalização do direito de acesso ao transporte público, com gratuidade geral no momento da sua utilização.
O MPL não se distinguia apenas pelo objetivo universalista. Surgido após as contradições experimentadas por governos de esquerda tanto municipal como nacionalmente, o movimento se fundava em uma prática fortemente autonomista, de inspiração anarquista, rechaçando organizações estudantis e perspectivas hierárquicas e representativas, reafirmando a busca pela horizontalidade. Mais do que isso, conforme argumentam Caio Martins e Leonardo Cordeiro, o MPL percebeu a potência das revoltas populares por transporte e fez dela uma estratégia, levando-a a seu limite lógico. Buscava-se transformar as manifestações contra aumentos tarifários em revolta, que se espalhava pela cidade em ações diretas e espontâneas, com bloqueio de vias e ataques aos patrimônios público e privado.
A repressão policial por muitas vezes só aumentava a adesão popular, e a ameaça de caos prolongado colocava em xeque o governo: a única saída para a desmobilização e o retorno à normalidade era a revogação do aumento. Conforme colocam os autores, antes de junho de 2013, essa estratégia já havia sido bem-sucedida em Vitória, Teresina, Porto Velho, Aracaju, Natal, Porto Alegre e Goiânia. A revolta popular passara a ser uma estratégia, cuja instrumentalização era possível justamente até a perda de controle almejada.
Junho de 2013 aparece aqui como auge e esgotamento dessa forma de ação. Em termos imediatos, nenhum movimento poderia ter sido mais vitorioso naquele momento. A revolta popular contra o aumento de 20 centavos no transporte público de São Paulo se espalhou e se generalizou a tal ponto no país que mais de 20 milhões de pessoas foram às ruas em duas semanas, e o preço da passagem foi reduzido em mais de 100 cidades brasileiras.
No médio prazo, porém, houve uma dupla derrota. Em um primeiro aspecto, a estratégia da revolta popular passou a ser analisada e dissecada, e a adesão espontânea passou por uma série de mediações estabelecidas pelos veículos de comunicação, que estigmatizaram o MPL. Desenvolveu-se um aparato de “gestão de motins” – polícia, judiciário, mídia, todos os instrumentos colocados para controlar a manifestação, enquadrá-la na normalidade, impedir sua disseminação. Em um segundo aspecto, faltaram raízes e base política para uma disputa à esquerda quando se deu a perda de controle estabelecida pela revolta popular. Pelo contrário, a difusão de pautas que ocorreu em junho foi apropriada nos anos seguintes por setores cada vez mais organizados da direita, que passaram a usar do simbolismo das ruas para avançar em pautas conservadoras e morais, mostrando que valores liberais e individualistas estavam profundamente arraigados em uma sociedade cuja maior transformação havia sido a expansão do mercado interno, e não a da cidadania.
O esgotamento da estratégia de revoltas populares não significou, entretanto, o esgotamento do potencial disruptivo gerado pela mobilidade urbana. Pelo contrário, as condições cotidianas de deslocamento têm se deteriorado no país e no mundo conforme aumenta a dependência de combustíveis e do transporte individual motorizado, agravando as consequências sociais da lógica privada da mobilidade. O tráfego ainda, e cada vez mais, “toma conta da tua alma e extrai dela uma porcentagem”, como escrevia Drummond em 1942. Cada piora objetiva dessas condições expõe a fragilidade do equilíbrio instável em que nos encontramos.
Foi assim com a greve dos caminhoneiros, em maio de 2018, e tem sido assim com os coletes-amarelos na França. Trata-se de lutas pela manutenção de uma lógica de deslocamento que já está estruturalmente falida e esgotada: os veículos automotivos, os combustíveis fósseis. Mesmo assim, é o que tem surgido de mais potente, um questionamento profundo daquilo que estrutura os fluxos cotidianos, ainda que suas soluções tenham pendido para um crescente conservadorismo. Urge, mais do que nunca, a disputa desses sentidos, e a afirmação da promessa de cidade que o transporte público trouxe em sua origem. O universalismo do acesso em vez da apropriação privada, a potência da partilha no lugar da solução individual. A demonstração da potência da diversidade e do encontro, que faz o que somos. A construção de uma cidade efetivamente para todos, para todas.
Economista e ativista, foi um dos fundadores do Tarifa Zero BH
Fonte: VELOSO, André. Revoltas do busão. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, número 13, página 12 – 21, 2019.