Costumes são “cortina de fumaça” que ajudam a galvanizar base e “confinar” oposição, diz antropólogo. Eleger símbolos é “típico de governos autoritários, afirma professor
O noticiário político foi tingido de azul e rosa e salpicado com palavras e termos até então estranhos ao vocabulário brasileiro – “marxismo cultural”, “oikophobia” e “ideologia de gênero”, essa já conhecida desde a campanha eleitoral. A enxurrada simbólica fez parte da blietzkrieg do presidente Jair Bolsonaro em seus primeiros dias de poder, na qual editou medida provisória suprimindo menções à população LGBTTs na pasta de Direitos Humanos além de fragilizar a situação de índios e quilombolas e abolir o Ministério da Cultura e o do Trabalho. No âmbito das cores ficou evidente o repúdio ao vermelho, associado ao PT e ao “socialismo” que dizem ter se instalado no país. A cromofobia do capitão foi do já clássico bordão “nossa bandeira jamais será vermelha”, dito na posse, à troca de cadeiras do Palácio do Alvorada por equivalentes azuis. A ministra da pasta Mulher, Família e Direitos Humanos reforçou a mensagem, estabelecendo uma paleta de cores apropriada para cada sexo: “menino veste azul, menina veste rosa”. O que está por trás dessa estratégia e quais as consequências dela, inclusive para a oposição?
“Isso tem sido uma arma de todo Governo de inspiração autoritária que deseja impor símbolos à sociedade que ele vai administrar. A idade média com a Santa Inquisição da Igreja”, e é uma tentativa de gerar símbolos que definem uma certa solidariedade e apoio a um Governo que busca legitimidade”
Em entrevistas ao Jornal EL PAÍS, analistas debateram sobre os temas. Roberto Romano, professor de Ética e Filosofia da Universidade Estadual de Campinas, a tática não é nova. “Isso tem sido uma arma de todo Governo de inspiração autoritária que deseja impor símbolos à sociedade que ele vai administrar”, afirma Romano. Segundo ele, a prática vem desde a “idade média com a Santa Inquisição da Igreja”, e é uma “tentativa de gerar símbolos que definem uma certa solidariedade e apoio a um Governo que busca legitimidade”. Romano aponta que esta estratégia foi usada “no fascismo, nazismo e stalinismo, com a manipulação de uma pletora de símbolos, que vão de gestos a cores, vestimentas, arquitetura”. “O regime autoritário depende do domínio da imagem e da linguagem. O que vemos no caso Bolsonaro é uma tentativa de passar palavras-chave que definam uma adesão aos novos governantes. É o caso do termo ‘politicamente correto’, ‘o socialismo’, ‘marxismo cultural’ e ‘ideologia de gênero’”, diz.
A efetividade deste discurso simbólico depende da criação de um “inimigo”. “Aí você joga todos os erros e fraquezas para o outro lado, e se mostra como puro. Falam em ‘desideologizar’ o Estado, como se as cadeiras azuis não fossem ideológicas. Elas são cadeiras altamente ideológicas. Escola sem partido não é ideológico? A questão é que, como dizia o cartunista Millor Fernandes, ‘ideologia é sempre a dos outros”, diz Romano.
Se no front interno, o inimigo escolhido pelo bolsonarismo é o PT e o socialismo fictício que o partido de Lula teria implementado em todos os braços do Estado, da Educação à Petrobras, o inimigo externo é o “globalismo”, criticado pelo novo chanceler Ernesto Araújo. “O presidente Bolsonaro está libertando o Brasil, por meio da verdade. Vamos libertar a política externa brasileira e libertar o Itamaraty”, disse na cerimônia de posse. “O problema do mundo não é a xenofobia, mas a oikophobia, que é odiar o próprio lar, o próprio povo, tripudiar a própria nação”. Por fim, Araújo emendou um “nossa bandeira jamais será vermelha”, em consonância com o discurso bolsonarista. Mas fez uma ressalva: “exceto se for a do Internacional”, seu clube do coração.
Para o antropólogo Piero Leirner, a estratégia simbólica de Bolsonaro também pode estar atrelada a outra, mais complexa. “É só mais um prolongamento das táticas de campanha. Mais uma dessas cortinas de fumaça que força uma polarização com setores ‘identitaristas’ e toda uma sorte de agentes, sejam políticos, blogs, imprensa, e ‘famosos”, diz Leirner, professor da Universidade Federal de São Carlos e especialista em estratégia militar. Isso teria dois objetivos finais, segundo o professor: “Em primeiro lugar oblitera todas as ações que estão sendo realizadas a toque de caixa na colonização de setores estratégicos, como energia, tecnologia, educação, geopolítica e relações exteriores, meio ambiente e bem estar da população que definem pontos críticos de soberania. Em segundo lugar continua dando combustível para a população que se galvanizou em torno dessas pautas comportamentais”.
Na avaliação de Leirner, com isso ocorre o “confinamento da oposição numa redoma que é cercada por essas pautas, o que é bastante confortável uma vez que, invariavelmente, elas são percebidas como minoritárias”, diz. “Assim fica fácil o Governo surfar no consenso criado durante a campanha”. O filósofo Romano destaca a força desta batalha simbólica. “Como Platão dizia, ‘a opinião tem um brilho excessivo’. Ela convence mais do que qualquer argumento científico, que é enfadonho. Mas para dar certo é preciso a repetição. Repetir, repetir e repetir”, diz.
Para Carlos Melo, cientista político do Insper, a impressão de que essa batalha simbólica é predominante pode ser passageira. “Acho que estamos procurando chifre em cabeça de cavalo. O que estamos vendo é total ausência de propostas concretas: estes factoides só ganharam atenção porque não houve nada mais relevante”, afirma Melo. “A parcela que se sensibiliza com essa retórica é muito pequena, mesmo entre os eleitores dele. Dentre as 57 milhões de pessoas que votaram no Bolsonaro, quantos realmente acham que a cor da roupa de crianças é relevante? Ou a cor da cadeira do Alvorada?”, diz.
O debate sobre as implicações do discurso da ministra também aconteceu nas filas da oposição, em um novo round sobre a dicotomia, para muitos intelectuais de esquerda falsa, entre as pautas de defesa das minorias e as pautas estritamente econômicas no discurso progressista. De um lado, estão os que apontam os potenciais reflexos na vida prática deste tipo de batalha discursiva – citam os professores que já sentem em sala de aula o peso da vigilância ideológica e nos casos de ataque físicos a grupos LGBT, sem falar na implicação em políticas públicas de saúde e educação. No outro, estão os que creem que a centralidade dos temas comportamentais, ao menos da forma de embate como acontece agora, cai como uma luva nas redes sociais do presidente, não agrega grandes parcelas da população e “rouba” atenção de outras pautas. A julgar pelo acontece nos Estados de Donald Trump, por exemplo, é uma disputa que não vai acabar tão cedo.
Fonte: El Pais