Lavajatismo e bolsonarismo: o divórcio de irmãos siameses

por Gustavo Freire

Foto: Reprodução da internet

Não foram motivos republicanos que moveram o ex-juiz de Curitiba a avançar contra seu irmão siamês do Condomínio da Tijuca

A saída de Sergio Moro do governo Bolsonaro e a refrega envolvendo ele e o ex-capitão na última semana foram interpretadas por alguns analistas como o divórcio entre bolsonarismo e lavajatismo, duas forças que, conjugadas, jogaram lenha na fogueira da anti-política que contribuiu para o resultado das eleições de 2018.

É fato que o antagonismo entre Moro e Bolsonaro se tornou oficial. E não foram divergências (inexistentes) de fundo republicano que deram a largada para a disputa da hegemonia da direita. A relação simbiótica e siamesa, inseparável, entre um e outro toma forma no compartilhamento da matéria-prima ideológica dos derrotados da Segunda Guerra Mundial. Uma breve olhada no macarthismo de seu rebanho obscurantista, disposto a borrifar coronavírus na cara da democracia em nome de seus líderes, é suficiente para dimensionar o tamanho da ameaça.

Bolsonarismo e lavajatismo podem até ter se divorciado no papel, mas suas hordas terraplanistas permanecem tendo a necessidade de um duce ou um fürher que as conduza.

E não há como servir a dois senhores. Sabendo disso, Moro há tempos se tornou uma potencial liderança do Eixo do século XXI, posto (in)convenientemente ocupado com honrarias formais por seu ex-chefe. O rompimento era questão de tempo.

Tornou-se lugar comum lavajatistas justificarem a tolerância a Bolsonaro com base na suposta reserva moral e civilizatória imposta pela participação de Moro no governo. Balela. Ainda que não existisse Moro, o apoiariam do mesmo jeito, embora mais discretamente, dado o desconforto de expor ao mundo que não se incomodariam em acionar câmaras de gás. Da sexta-feira, dia 24, para cá, o novo jargão do lavajatismo é outro, qual seja, o de imputar a Bolsonaro a pecha de vilão responsável por atentar contra o republicanismo do ex-magistrado, bastião do rule of law, em conduzir a Polícia Federal nos estritos limites da lei e da Constituição.

Depois do que Moro fez na Lava Jato, realçado pelas mensagens divulgadas pelo The Intercept Brasil, só com um grau patológico de duplipensar é possível qualificá-lo como republicano. Se o ex-ministro aceitou o convite para compor o primeiro escalão do staff bolsonarista, foi, tão somente, por que comunga do ódio contra tudo que veio depois de 1789 no mundo ocidental.

Cabem aqui as reflexões do professor Rafael Mafei no artigo “Os novos crimes de Bolsonaro”, publicado no site da Piauí:

“se Bolsonaro tivesse recuado por qualquer motivo estratégico, por quanto tempo Moro guardaria segredo sobre os crimes tentados por seu chefe contra a Polícia Federal? Dos pedidos impróprios feitos por Bolsonaro à Polícia Federal, quais foram atendidos por Moro, mesmo que a contragosto?”.

Essa comunhão ajuda a explicar a forte intersecção entre seus eleitorados e, por tabela, as razões para o fim do casamento. Mostra também como lavajatismo e bolsonarismo possuem pouquíssimas diferenças em sua essência; um adentra no outro, dividindo a mesma pulsão de morte e discriminação, o mesmo desprezo às minorias e às bases iluministas das democracias liberais.

Rompimento não significa renúncia à fé uniforme. A disputa pelo pastoreio dos fiéis e a conveniência da separação têm sua prova na insuspeita declaração que Rosângela Wolff Moro, esposa do ex-juiz, deu ao Estadão em fevereiro, há apenas dois meses. Segundo ela, seu marido e Bolsonaro são uma coisa só – e continuam, sim, dividindo o mesmo CPF ideológico, só que agora cada qual no seu quadrado.

Como visto, o fato de até ontem dormirem juntos indica a dificuldade em apontar onde começa um e termina e o outro. Tal confusão se projeta, logicamente, sobre suas bases. Entre o bando brancaleônico que acompanhou o presidente em seu pronunciamento na sexta-feira, estava a deputada Carla Zambelli, uma espécie de bebê de proveta do bolsonarismo e do lavajatismo.

A parlamentar chegou a gravar um vídeo relatando a decepção com seu padrinho de casamento por ter vazado ao Jornal Nacional trechos de conversas suas no Whatsapp: na queda de braço entre a unção matrimonial e seu projeto eleitoral, o ex-juiz passou a perna na afilhada e decidiu abastecer William Bonner, que destinou um generoso espaço no horário nobre da Globo, dando, praticamente, o pontapé na candidatura de sua fonte.

Manifestante bolsonarista manifestando a aceitação de Sergio Moro para ministro da justiça.  Foto: Enfoque/MS

Moro não pediu as contas por que descobriu que Bolsonaro é tudo aquilo que nunca escondeu ser. Nesta fricção, faltam discrepâncias. Não foram as rachadinhas de Flávio e as ligações com Queiroz que o constrangeram. Tampouco as ligações familiares do ex-chefe com o crime organizado e o envolvimento de ex-colegas como Onyx Lorenzoni, Marcelo Álvaro Antônio e o próprio Mandetta com maracutaias que vão do caixa 2 a fraudes, passando por tráfico de influência e esquemas de laranjas.

Quando resolveu se manifestar sobre o assunto, foi para defender Bolsonaro – adiantando, vejam vocês, que no inquérito do laranjal não havia provas contra o presidente – e para passar a mão na cabeça de Lorenzoni, réu confesso na prática de recursos financeiros não contabilizados. Nem o ex-ministro leva a sério sua retórica salvacionista anti-corrupção.

Por mais que o lavajatismo tenha agora uma desculpa para pular do barco, não como há discordar que a figura de Bolsonaro em si nunca foi um problema. A congregação morista jamais torceu o nariz para as atrocidades fascistas das quais o líder do clã é hoje o maior porta-voz. Basta fazer uma leitura dinâmica dos capítulos da Vaza Jato onde estão as mensagens dos “filhos de Januário” sobre a ida de Lula ao velório do neto para ver como os engomadinhos do MPF bebem da mesma miséria moral e cognitiva de quem retuíta as declarações de Carlos Bolsonaro.

Moro pode, enfim, arregaçar as mangas e começar oficialmente a disputar fatias do rebanho. Uma parte já está com ele; a que sempre simpatizou com Bolsonaro, mas precisava de um pretexto para poder fazer desavergonhadas arminhas com as mãos. Esta permanecerá imersa na atmosfera feudaloide de sempre, agora, porém, sob a batuta de alguém que escova os dentes. A briga pelo gado dá todos os sinais de que não será apropriada para menores de 18 anos.

Fonte: publicado origanlamente em Carta Capital

GUSTAVO FREIRE BARBOSA é Advogado, mestre em direito constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte
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